O Poeta da Paixão em Oxford
Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu
Acabo de passar um fim de semana extraordinário. Afinal de contas, não é
a qualquer momento da vida que podemos visitar uma das universidades mais famosas
do mundo que, por coincidência (brincadeira, é claro), se situa numa das mais
belas cidades pequenas do planeta, ambas, de mesmo nome: Oxford. Para mim, e
para muitos de nós brasileiros, Oxford nos lembra Vinicius de Moraes, que lá
viveu e estudou entre 1938 e 1940. Também por coincidência (mais outra
brincadeira?) para lá fui com a missão de discutir a natureza da paixão na vida
do poeta e músico carioca. O assunto é longo. Quem sabe escrevo um livro sobre
ele. Enquanto o desejo permanece apenas em forma de miragem, aqui segue uma amostra,
e não um resumo, do que falei a outros pesquisadores neste último sábado,
exatamente (mais uma coincidência) 75
anos depois de Vinicius partir de navio para a Inglaterra, a 7 de setembro de
1938.
A paixão de Vinicius de Moraes pela
vida, isto é, por certos elementos que dela mais valorizava, como a aventura
romântica, a amizade, e a sexualidade, se via frustrada sob o sentimento de
solidão, as restrições disciplinares, e o marasmo social, aspectos de seus anos em
Oxford. Em carta a um ex-colega da faculdade direito no Rio, San Thiago Dantas,
publicada em obra organizada por Ruy Castro, Querido Poeta: Correspondência de Vinicius de Moraes (Cia. dads
Letras 2003), o jovem Vinicius tece metáforas para descrever aquela “vida
sagrada, vagamente misteriosa e envolta em mantos de realeza” (68). “Tenho que
essas são coisas íntimas,” admite, e
“vivê-las é como se despojar delas” (68). O que chama de tempo da inocência ele
deixou para trás. Já teve muitas experiências que o impedem de “fantasiar mais
minha vida em cap and gown e me
ordenar sob outra lei que não seja a da minha liberdade instantânea” (68).
Oxford parece se constituir para ele numa Victorian lady, muito bela e muito
casta. “A vontade que me dá,” arrisca-se a dizer, "é traí-la, fazer molecagem
como um bom brasileiro e representar personagem de aventura, mas já estou
bem-educado demais para isso, e mesmo creio que não se deva ferir uma coisa tão
exatamente bem-proporcionada como Oxford” (Querido
Poeta 68).
Desenvolvendo uma colcha de metáforas e símiles,Vinicius
argumenta que “Oxford é a carne inglesa” ou qualquer coisa “de monástico, de
subterrâneo e submarino. Pode te dar tanto a impressão de um campo minado, como
o de um convento, como o de uma mina de minério, como o de um aquário de belos
peixes, essas coisas enfim que não querem dizer nada e cuja vida íntima não se
sabe que razão têm, nem a que leis obedecem para se manter” (Querido Poeta 68). Outras imagens
reforçam a mesma impressão do estéril e do anódino na famosa universidade: “Uma
peça, um cisma, toda uma religião, mas nada de vivo: de lawrenciano, de
rimbaudiano, de dostoievskiano, de shakespeariano ou quem mais você queira de
fundamentalmente humano em si” (68).
Aos quase 25 anos o poeta pensa que a experiência
de vida em Oxford o vá fazer envelhecer, “e é pena, mas por outro lado pode me
fazer muito bem. Vejamos. Tenho medo dessa beleza fria, que mata em vez de
fecundar. Tenho medo dessa arte de anjos, dessa arquitetura celeste, ao mesmo
tempo eterna e impalpável. É tudo alto demais, inacessível” (Querido Poeta 69).
Em carta de janeiro de 1939 a um casal de
amigos, o olhar poético de Vinicius não ignora, porém, a formosura do ambiente
quando neva em Oxford: “É bonito de ver todas essas torres, todos esses edifícios
de velhice escura, subitamente ficarem de cabeça branca” (Querido Poeta 83). Porém, em face à saudade e à sensação de displacement, exacerbada, é claro, pelos
céus cinzentos e ares frios e úmidos da Inglaterra, o jovem carioca Vinicius de
Moraes provavelmente ali embarcou numa viagem de paixão que, em termos
práticos, o matou quatro décadas depois. Aquele quem desabafa “Ah, toda a minha
poesia por um raio de sol, por um banho de mar em Copacabana!” (Querido Poeta 83), também se
reposiciona: “vou vivendo aqui nessa velha cidade de gênios e de bêbados, me
sentindo melhor com o contato dos segundos” (82). A solução para seus problemas
em Oxford é aquela de natureza etílica: “Hoje à noite tem pileque, amanhã
também. Santo estado alcoólico, tão ‘falsamente’ poético, mas tão camarada para
o espírito da gente...” (84).
Evidentemente, pode-se dizer que Vinicius de
Moraes viveu de paixão. Na verdade, de paixão também ele morreu, mas não foi de
amores. Nesse ínterim, sua história serve para ilustrar a relação entre paixão
e doença, de que trata Michel Foucault em História
da Loucura na Idade Clássica (Perspectiva 1978) ao destacar a transformação
pela qual passou a percepção da paixão, não mais como um fenômeno estético do ethos, como na Grécia antiga; ou moral,
como nos tempos dos estóicos romanos; ou de pecado, como na Idade Média de São
Tomás e Santo Agostinho; ou de insensatez animalesca, como na era do
Iluminismo. Desde os meados do século XIX estuda-se diferentemente, então,
aquele velho problema da paixão a partir dos anos do Positivismo e da gradativa
superação das garras punitivas do poder religioso pelos bisturis higiênicos da
medicina.
Vinicius era essencialmente um homem triste.
Com medo da morte e com esperança de viver livre sob os auspícios do álcool,
ele, durante muitos anos frequentou a Clínica São Vicente, no Rio de Janeiro,
para se recuperar dos danos daquela dependência servil, compulsiva, sem, porém,
jamais querer perdê-la. Bebia consciente de que o álcool o mantinha dinâmico,
alegre, produtivo, e ao mesmo tempo o matava lentamente, trazendo-lhe o
diabetes e a hidrocefalia. Bebia para que em torno dos amigos, dos amores e do
uísque (o melhor amigo do homem, um cachorro engarrafado), não
morresse de medo da solidão. Bebia para que ele pudesse afastar a solidão, que o torturava
quase que diariamente. Bebia para camuflar o medo da morte, a única forma de solidão
extrema, irredutível e totalizante, definida, em seu “Soneto da Fidelidade,” tão
simples e tão pertinente a si mesmo, como “o fim de quem ama.”