quinta-feira, 12 de setembro de 2013

O Poeta da Paixão em Oxford



O Poeta da Paixão em Oxford

Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu 


Acabo de passar um fim de semana extraordinário. Afinal de contas, não é a qualquer momento da vida que podemos visitar uma das universidades mais famosas do mundo que, por coincidência (brincadeira, é claro), se situa numa das mais belas cidades pequenas do planeta, ambas, de mesmo nome: Oxford. Para mim, e para muitos de nós brasileiros, Oxford nos lembra Vinicius de Moraes, que lá viveu e estudou entre 1938 e 1940. Também por coincidência (mais outra brincadeira?) para lá fui com a missão de discutir a natureza da paixão na vida do poeta e músico carioca. O assunto é longo. Quem sabe escrevo um livro sobre ele. Enquanto o desejo permanece apenas em forma de miragem, aqui segue uma amostra, e não um resumo, do que falei a outros pesquisadores neste último sábado, exatamente (mais uma coincidência)  75 anos depois de Vinicius partir de navio para a Inglaterra, a 7 de setembro de 1938.
A paixão de Vinicius de Moraes pela vida, isto é, por certos elementos que dela mais valorizava, como a aventura romântica, a amizade, e a sexualidade, se via frustrada sob o sentimento de solidão, as restrições disciplinares, e o marasmo social, aspectos de seus anos em Oxford. Em carta a um ex-colega da faculdade direito no Rio, San Thiago Dantas, publicada em obra organizada por Ruy Castro, Querido Poeta: Correspondência de Vinicius de Moraes (Cia. dads Letras 2003), o jovem Vinicius tece metáforas para descrever aquela “vida sagrada, vagamente misteriosa e envolta em mantos de realeza” (68). “Tenho que essas são coisas íntimas,” admite,  e “vivê-las é como se despojar delas” (68). O que chama de tempo da inocência ele deixou para trás. Já teve muitas experiências que o impedem de “fantasiar mais minha vida em cap and gown e me ordenar sob outra lei que não seja a da minha liberdade instantânea” (68).
Oxford parece se constituir para ele numa Victorian lady, muito bela e muito casta. “A vontade que me dá,” arrisca-se a dizer, "é traí-la, fazer molecagem como um bom brasileiro e representar personagem de aventura, mas já estou bem-educado demais para isso, e mesmo creio que não se deva ferir uma coisa tão exatamente bem-proporcionada como Oxford” (Querido Poeta 68).
Desenvolvendo uma colcha de metáforas e símiles,Vinicius argumenta que “Oxford é a carne inglesa” ou qualquer coisa “de monástico, de subterrâneo e submarino. Pode te dar tanto a impressão de um campo minado, como o de um convento, como o de uma mina de minério, como o de um aquário de belos peixes, essas coisas enfim que não querem dizer nada e cuja vida íntima não se sabe que razão têm, nem a que leis obedecem para se manter” (Querido Poeta 68). Outras imagens reforçam a mesma impressão do estéril e do anódino na famosa universidade: “Uma peça, um cisma, toda uma religião, mas nada de vivo: de lawrenciano, de rimbaudiano, de dostoievskiano, de shakespeariano ou quem mais você queira de fundamentalmente humano em si” (68).
Aos quase 25 anos o poeta pensa que a experiência de vida em Oxford o vá fazer envelhecer, “e é pena, mas por outro lado pode me fazer muito bem. Vejamos. Tenho medo dessa beleza fria, que mata em vez de fecundar. Tenho medo dessa arte de anjos, dessa arquitetura celeste, ao mesmo tempo eterna e impalpável. É tudo alto demais, inacessível” (Querido Poeta 69).
Em carta de janeiro de 1939 a um casal de amigos, o olhar poético de Vinicius não ignora, porém, a formosura do ambiente quando neva em Oxford: “É bonito de ver todas essas torres, todos esses edifícios de velhice escura, subitamente ficarem de cabeça branca” (Querido Poeta 83). Porém, em face à saudade e à sensação de displacement, exacerbada, é claro, pelos céus cinzentos e ares frios e úmidos da Inglaterra, o jovem carioca Vinicius de Moraes provavelmente ali embarcou numa viagem de paixão que, em termos práticos, o matou quatro décadas depois. Aquele quem desabafa “Ah, toda a minha poesia por um raio de sol, por um banho de mar em Copacabana!” (Querido Poeta 83), também se reposiciona: “vou vivendo aqui nessa velha cidade de gênios e de bêbados, me sentindo melhor com o contato dos segundos” (82). A solução para seus problemas em Oxford é aquela de natureza etílica: “Hoje à noite tem pileque, amanhã também. Santo estado alcoólico, tão ‘falsamente’ poético, mas tão camarada para o espírito da gente...” (84).
Evidentemente, pode-se dizer que Vinicius de Moraes viveu de paixão. Na verdade, de paixão também ele morreu, mas não foi de amores. Nesse ínterim, sua história serve para ilustrar a relação entre paixão e doença, de que trata Michel Foucault em História da Loucura na Idade Clássica (Perspectiva 1978) ao destacar a transformação pela qual passou a percepção da paixão, não mais como um fenômeno estético do ethos, como na Grécia antiga; ou moral, como nos tempos dos estóicos romanos; ou de pecado, como na Idade Média de São Tomás e Santo Agostinho; ou de insensatez animalesca, como na era do Iluminismo. Desde os meados do século XIX estuda-se diferentemente, então, aquele velho problema da paixão a partir dos anos do Positivismo e da gradativa superação das garras punitivas do poder religioso pelos bisturis higiênicos da medicina.
Vinicius era essencialmente um homem triste. Com medo da morte e com esperança de viver livre sob os auspícios do álcool, ele, durante muitos anos frequentou a Clínica São Vicente, no Rio de Janeiro, para se recuperar dos danos daquela dependência servil, compulsiva, sem, porém, jamais querer perdê-la. Bebia consciente de que o álcool o mantinha dinâmico, alegre, produtivo, e ao mesmo tempo o matava lentamente, trazendo-lhe o diabetes e a hidrocefalia. Bebia para que em torno dos amigos, dos amores e do uísque (o melhor amigo do homem, um cachorro engarrafado), não morresse de medo da solidão. Bebia para que ele pudesse afastar a solidão, que o torturava quase que diariamente. Bebia para camuflar o medo da morte, a única forma de solidão extrema, irredutível e totalizante, definida, em seu “Soneto da Fidelidade,” tão simples e tão pertinente a si mesmo, como “o fim de quem ama.”


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