sábado, 13 de dezembro de 2014

Camaleão



Biblioteca Claire T. Carney, Univ. de Massachusetts Dartmouth


Feliz como camaleão

 Dário Borim Jr.

dborim@umassd.edu

 

“Você consegue se safar da lei, apesar de cometer tantos assassinatos”, diz-me a Rosa Mignacca, uma querida amiga de infância que, em Londres, terra de Sherlock Homes, não passa de uma viciada em filmes policiais. Estou exagerando, sim, mas ela também. O negócio é o seguinte: aquilo é simplesmente uma expressão inglesa muito comum. Traduzi a frase meio que literalmente, por desconhecer uma boa versão em português para a acusação: “Darinho, you get away with murder!” Qual seria o meu crime, vocês devem estar matutando. Eu diria, não sei, são tantos. Brincadeira à parte, minha vítima da vez é sempre a mesma: a literatura! Como assim? E por quê? Bem, vamos dizer, é um crime de paixão e traição. Aparentemente, dizem, amo muito mais a música do que a literatura, a despeito do fato de que tenho um Ph.D. em Literatura Hispana e Luso-Brasileira, e de que ganho a vida como estudante de pós-graduação ou professor universitário nessa área do conhecimento há quase 30 anos.

 Valéria Souza, minha ex-aluna desta região onde moro nos Estados Unidos, vira e mexe não resiste e me pergunta: o que você tem mais, livros ou CDs? Honestamente, não sei a resposta. Essa pergunta eu também faria a meu cunhado, Dr. José Codo, que possui milhares de discos e livros em casa. Só que ele, apesar de ser um médico famoso, não suja as mãos de sangue. Sujo eu, dizem as más línguas, ao ganhar a vida com uma coisa e amar e me ocupar da outra.

Recentemente recebi a visita de Jill Gallegos, uma queridíssima amiga do Wyoming. Sou bastante intuitivo e percebi que ela sentia uma certa tentação. Parecia que ela também queria me fazer aquela mesma pergunta. No espaço em que me ajeito para trabalhar, entre as duas longas paredes do meu escritório (que mais parece um estreito minicorredor das artes literárias e musicais), tenho um bom número de livros e outro um pouco menor de CDs – ou seria o contrário? Seja lá o que for, isso não quer dizer que o mesmo ocorra em minha casa, que aqui haja mais livros que CDs – mas, talvez…  

Não importa: o que vale mesmo é a verdade, apesar dessas acusações e especulações – essa… conspiração da esquerda. E qual é a verdade? É que para mim a música está bem mais presente no dia a dia do que a literatura. Outra verdade é que quando iniciei minha carreira como professor universitário, em Minnesota, dei um curso que mesclava as duas coisas. Era sobre a música de Caetano Veloso e a literatura de seu tempo. Então, desde o começo amo, convivo e mesclo essas duas formas de arte. De qual mais gosto varia com o tempo, quem sabe, mas, honestamente, já faz bem tempo que vence a música, com a qual me ocupo, me realizo, e, modestamente, me sobressaio como pessoa e como profissional.

Nessas últimas semanas, por exemplo, me deliciei ao fazer palestras em algumas universidades onde meu assunto foi sempre… música. A satisfação foi enorme ao conseguir que a entusiasta plateia no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o famoso M.I.T., cantasse “O Samba da Minha Terra” – aquela composição sobre o samba da minha terra que deixa a gente mole, e tal – junto comigo e com Dorival Caymmi, também presente à tela, junto à letra da canção. Imaginem que na chique Universidade de Harvard fui falar sobre música… brega! Sim, brega, meus caros! E que noite divertida foi aquela, por conta das revelações pessoais e sexuais dos entrevistados pela carioca Ana Reaper, a diretora de um documentário imperdível, Vou rifar meu coração.

 Na sequência de muitos eventos musicais ou acadêmico-musicais, estou fechando a semana com chave de ouro. Há poucos dias assisti a um concerto de música asiática. A ilha de Java está muito bem representada na Universidade de Massachusetts Dartmouth por um grupo de uns vinte aprendizes. Elise Lindo e Casey Snook, duas de minhas melhores alunas de Português, fazem parte da banda que semana passada nos trouxe aquela música serena, quase nos levando a um nirvana entre paredes de concreto. 

Anteontem, após produzir e apresentar uma edição especial do Brazilliance, meu programa de rádio e internet, em que toquei três horas de Tom Jobim, fui prestigiar os dois curtas de Don Burton, um amigo cineasta, e lá recebi um convite irrecusável: ir assistir a um concerto de rock progressivo de Adrian Belew, um dos maiores nomes do gênero, o principal guitarrista do lendário grupo King Crimson. Após compartilhar tantas frases melódicas simplesmente maravilhosas de Jobim com meus ouvintes, eu agora ouvia e dançava assentado aos fantásticos sons de um virtuoso da música pop. Aos cinquenta e cinco anos de idade eu curtia um dos shows de rock mais fascinantes e divertidos de toda a minha vida. Acompanhado de Julie Slick, uma atenta e competente mulher de óculos escuros no baixo, e de Tobias Ralph, um puro e virtuoso capeta na bateria, Belew foi o roqueiro cantor-instrumentista mais alegre, brincalhão, criativo e simpático que já vi até hoje.

Ontem, a noite não foi nada menos impressionante e memorável. Fui a um concerto de final de ano, com duas sessões de dois corais diferentes: um fez-se acompanhar pelos solos de um pianista e um violinista; o outro se uniu a uma pequena banda de música africana. No mesmo evento, curtimos uma sessão de canções de Natal sob uma linguagem de jazz. Para concluir, subiu ao palco uma enorme banda de alunos do Departamento de Música que apresentou, entre outras composições, uma bela – e, para mim, brasileiro, também divertidíssima – versão de “Noite Feliz” (“Silent Night” em inglês), ao ritmo de samba, um clássico apropriadamente redenominado “Silent Samba.” Até cuíca e agogô estavam a roncar nas mãos dos gringos.

O evento não parou por ali. Ao som de mais música ao vivo, por parte de um coral de alunos e ex-alunos, serviu-se um elegante jantar (tinha até lagostas) aos presentes, que se deslocaram do teatro para a nossa linda biblioteca central. Agora embalados pelo vinho, outras pessoas me questionaram sobre minha verdadeira vocação. Uma delas, Adrian Tió, o decano da Faculdade de Artes  Performáticas e Visuais, me perguntou, brincando, se eu não estaria disposto a oferecer cursos no Departamento de Música. Ainda mais gratificantes foram duas observações da própria reitora da Universidade, Divina Grossman. Ela não apenas me solicitou novas cópias dos CDs do Brazilliance, pois os que eu lhe dera meses atrás estavam cansados de tocar. Fã de minhas imagens postadas no FaceBook, ela também me perguntou quando seria minha primeira exposição fotográfica no campus.

Bem, naquele momento a minha chefe acariciou o meu ego, claro, mas aumentou minhas dúvidas sobre quem sou eu. Entrou na complicada equação de minha identidade e vocação uma terceira incógnita: sou de fato um fotógrafo? Não tem problema não. Aliás, tem mais complicação. Além de radialista, sou cronista, uai. E quem sabe ainda não descubro mais outras deliciosas máscaras – “getting away with murder” e vivendo feliz como camaleão?

sábado, 1 de novembro de 2014

Saravá, Meu Pai!



Saravá, Meu Pai!

Dário Borim Jr.


Saravá, Meu Pai!
 

Dário Borim Jr.

Então já se faz dois meses desde que escrevi minha crônica mais recente? Nossa! Nem acredito! Era setembro e minha vida começava um novo ciclo. O ano escolar nos Estados Unidos se inicia em agosto ou setembro. A vida de professor é assim mesmo, demarcada por esses ciclos semestrais, quando a vida parece que renasce, mas logo volta a um esquema meio parecido aos de outros semestres. Quando penso nesse intervalo, sem escrever uma única crônica, procuro explicações dos dois lados da equação: por que me afastei e por que me afastaram do que tanto gosto?
Do lado de cá, a ideia é a de que o mesmo impulso que me leva a escrever, também me leva a fotografar diariamente e a fazer radio há 13 anos! Por isso não senti tanta falta da escrita, já que aquele impulso para criar e compartilhar andou ocupado, pela imagem e pelo som, ao invés da palavra escrita. Do outro lado da equação, vejo as marcas de que minha vida andou agitada, com compromissos acadêmicos e seus privilégios, razões muito fortes para eu entrar para esse mundo universitário e nele sobreviver desde 1987, quando comecei a pós-graduação na UFMG.
Nessas últimas oito semanas foram muitos convites para festas, sessões de jazz e viagens. Pois nesse intervalo fui a um festival de cultura escocesa em New Hampshire, dei uma palestra na famosa universidade de tecnologia de ponta, o MIT, perto de Boston, e curti uma maravilhosa viagem a uma região muito distante daqui, entre as montanhas Rochosas, do Wyoming e Colorado, e as áreas desertas do Novo México. Lá no Velho Oeste, a mais de 4.000 km de distância, passei um ano e meio de minha juventude bem no início dos anos 80. Agora foi simplesmente fantástico rever aquela paisagem e reencontrar amigos que permanecem vivos e fortes em meu coração há mais de 32 anos.
A oportunidade de ir ao Velho Oeste na semana passada veio por conta de um  congresso da APSA (Associação Americana de Estudos Lusófonos) na Universidade do Novo México, em Albuquerque. Lá apresentei uma crônica-ensaio sobre a crônica em si mesma, texto que recentemente saiu publicado num livro que editei com dois colegas, Célia Bianconi Charles Perrone (Crônicas Brasileiras: A Reader). Que honra: meu texto fecha o volume e ali me põe ao lado dos gigantes do gênero: Rubem Braga, Rachel de Queiroz, Fernando Sabino, Carlos Drummond de Andrade e vários outros. 
       Esses grandes congressos acadêmicos internacionais são eventos que também marcam os limites de outros ciclos na vida do professor acadêmico. Quando vamos a um encontro desses, quase sempre encontramos alguns colegas de quem muito gostamos, mas quem não vemos ao longo de um ciclo de quatro, seis, oito, ou às vezes até mesmo 10 anos. Há ocasiões em que esse hiato é de se perder no tempo da memória ocupada com tantas outras datas e prazos a vencer. Foi mais que isso, para mim, quando vi mas não reconheci meu primeiro professor de pós-graduação, o mineiro Wander Miranda, com quem fiz na UFMG um seminário sobre a escrita autobiográfica de Graciliano Ramos, em 1987. Na segunda oportunidade que tive de vê-lo em Albuquerque, a ficha caiu. Reconheci-o. Que prazer, então!
Outros queridos colegas de velhos carnavais tornaram muito especial o evento naquela charmosa cidade rodeada de desertos, além do que pudemos, também, fazer novos amigos, entre pessoas súper interessantes e gentis, entre jovens e não tão jovens ligados à mesma vocação de promover nossa língua e nossas culturas lusofalantes.
Aliás, confesso que, para mim, trabalhar com jovens é um dos típicos privilégios da vida dos docentes desse mundo afora. Outro privilégio é poder se divertir com tais colegas de profissão mais jovens do que nós. Carregam no peito muita energia e entusiasmo contagiante. Foi isso que fiz na minha última noite no Novo México. Com um grupo de aproximadamente 12 pessoas, entre professores e alunos de pós-graduação, fui a um restaurante de sushi, jantar seguido de mirabolante noitada hispana em clube da cidade. A banda de 12 membros, chamada Nosotros, mandava brasa em belíssimas salsas e merengues, rumba e tcha-tcha-tcha. Dancei, dancei pra valer, horas a fio, seguidas de uma refeição num estranho restaurante que mescla cozinhas mexicana e grega. Lá chegamos perto das duas e meia da manhã. E rimos. E cantamos. E até dançamos nesse restaurante totalmente vazio.  Só nós ali, e os cozinheiros rindo daquilo tudo!
Que delicia! Fez-sso, confesso: adorei escrever mais essa! Enquanto isso, celebro: saravá meu pai! Amei me lembrar das homéricas noitadas em Mariana, num café-teatro chamado Sagarana, fundado por uma queridíssima professora de Francês, a saudosa Magdalena Gastelois. Nem se fala de como era bom aquilo! Cheguei a passar noites incríveis, de muita conversa e dança, na companhia de colegas e alunos da História, Educação, e Letras, até três horas da manhã, mesmo que tivesse que dar aulas às sete e meia. Algumas daquelas aulas de um professor beirando os 40 anos de idade, sobre a fantástica poesia de um Shakespeare ou de um Yeats, foram algumas das melhores que deu em toda a sua vida.
Esse período sem escrever agora me fez lembrar do famoso escritor argentino Jorge Luis Borges. Velho, cego, numa cadeira de rodas, ele chegou a uma conclusão desconcertante: devia ter escrito menos e vivido mais. Quero isso não. Tenho pique e tesão demais pela vida. Se der, um dia desses ainda escrevo mais sobre isso.

sábado, 23 de agosto de 2014

Arte e Missão: A Fotografia de Maier e Salgado



Arte e Missão: 
A Fotografia de Maier e Salgado

Dário Borim Jr.

Que atributo melhor nos destaca dentro do mundo animal? Será que somos mesmo os ditos “animais racionais” do  universo? Diógenes, aquele filósofo grego, estava certo? Não passamos de frangos depenados? O raciocínio, os sentimentos, e muitas outras características fazem parte tanto da vida dos cães, elefantes e pererecas, quanto da existência de lutadores de boxe, políticos e garis.
Um dos atributos que melhor nos separam dos outros tipos de animais acredito que seja a nossa relação com a arte: a capacidade para criar, evocar, representar e/ou transformar o mundo ou novos mundos que brotam de nossa imaginação, nossa necessidade de ir muito além das experiências banais, mas necessárias, como escovar os dentes e pentear os cabelos (quando ainda os temos), nos vestir ou despir pelo menos 730 vezes por ano, comer todo santo dia e quase todo santo dia ver que boa parte daquela comida gostosa estava apenas de passagem. Virou massa abominável. Invadiu os rios e oceanos.
Algum tempo atrás os tais animais racionais passaram a considerar a fotografia como forma de arte. Mais que justo, só que ela pode ser mais que isso! Recentemente mergulhei nas fascinantes histórias de dois fotógrafos cuja existência não seria a mesma se por acaso não tivessem descoberto e alimentado suas paixões e obsessões (desculpem a redundância) pela sua arte. Não há espaço aqui para ir fundo no que vejo de complexo e absolutamente fantástico na mente e no roteiro de vida de cada um. Tentarei apenas esboçar alguns contrastes e semelhanças.
Sebastião Salgado nasceu na pequena cidade de Aimorés, Minas Gerais, em 8 de fevereiro de 1944. Aos setenta anos de idade, é um dos fotógrafos vivos mais famosos de todo o mundo. Vivian Maier veio ao mundo no mesmo dia, mês e ano que minha mãe: 1o. de fevereiro de 1926. Era natural de Nova Iorque, filha de uma imigrante francesa nascida num pequenino vilarejo situado num vale dos Alpes. Maier jamais conheceu a fama em vida. Muito pelo contrário. Basicamente ninguém viu suas fotos. Nem ela, exceto as poucas que revelou! Logo após sua morte, em 21 de abril de 2009, seu enorme legado foi descoberto. Hoje ela é uma das mais celebradas fotógrafas de todos os tempos.
A vasta maioria da produção de Maier e Salgado é em branco e preto. Também há semelhanças temáticas. Embora retratem de tudo que existe na Terra, dedicam mais tempo a fotografar seres humanos, bem mais do que animais, plantas, e paisagens urbanas ou rurais. Em particular, compõem imagens de pessoas que vivem às margens do conforto material e da sensação de segurança de um lar. 
Ao trabalhar por mais de 40 anos como babá para famílias de classe média alta entre Chicago e Nova Iorque, Vivian Maier levava as crianças para passear nas periferias empobrecidas daquelas cidades. Extremamente discreta e solitária, era estranhamente viciada em coletar jornais e revistas nos seus aposentos, que sempre mantinha trancados. Sozinha ou acompanhada nas suas andanças, Maier capturava, com sua Rolleiflex, as ações e emoções de anônimos sem-tetos, desempregados, bêbados, loucos, trabalhadores braçais em inóspitas condições, crianças chorando, casais brigando, a imundice e a pobreza gritando calada que só quem gosta de pobreza é intelectual de esquerda.
Uma obscura missão levava Maier a fotografar freneticamente esse mundo, mesmo que ela mesma não pudesse vê-lo além do visor de sua câmera. Maier não revelou quase nada dos mais de 150 mil retratos que tirou. Talvez sua obsessão com o fotografar sugasse quase todo o seu salário na compra de novos rolos. Talvez não sobrasse dinheiro para o processamento dos seus milhares de cartuchos selados, um dia descobertos num depósito de aluguel. Em função do extraordinário talento e atual reconhecimento da obra de Vivian Maier, qualquer de seus retratos revelados em vida, do tamanho de um cartão postal, ou menor, não vale menos que 4 mil reais.
O enredo do outro protagonista desta crônica também nos surpreende. Há mais de 40 anos residindo em Paris, Sebastião Salgado foi criado por fazendeiros abastados do Vale do Rio Doce. Não seguiu o destino que talvez lhe fosse mais fácil: cuidar e expandir as posses de seus pais. Sensível aos disparates econômicos e políticos do Brasil dos anos 60, rebelou-se. Enquanto estudava economia na USP, foi membro de um grupo de resistência à ditadura, a Juventude Universitária Católica. Perseguido pelos militares, exilou-se em Paris, onde continuou a trabalhar para seu grupo e cursou doutorado na prestigiada Sorbonne.
Em 1970, aos 26 anos, Salgado comprou uma Pentax Spotmatic II, para ajudar Lélia, sua esposa, em seus trabalhos de estudante de arquitetura. Não entendiam nada de fotografia. Foi paixão instantânea. Sebastião e Lélia logo tecem um novo sonho: largar tudo, comprar uma velha Kombi, montar um laboratório fotográfico nela mesma, e sair trabalhando por toda a África. Antes de terminar sua tese, ele obteve um excelente emprego junto à Organização Mundial do Café. Transferiu-se para Londres, comprou um esplêndido carro, alugou um belo apartamento ao lado do Hyde Park, e passou a viajar de graça por todo o mundo. Não podia esperar algo melhor de um emprego, mas isso veio. Realizou gratificantes projetos comunitários de enorme desenvolvimento econômico e social em Ruanda, Burundi, Congo, Uganda e Quênia.
Salgado descobriu que de fato queria fazer muito mais pela humanidade, e que queria muito mais da vida, do que conforto e prestígio próprios. Seu trabalho independente como foto-jornalista já lhe dava confiança e lhe aguçava a imaginação. Resultado: largou tudo para trás para se tornar fotógrafo do mundo. Vendeu o que possuía e investiu em equipamento fotográfico de peso. O sucesso veio rápido, ao receber inúmeros prêmios e ser muito bem pago por agências de publicidade, organizações variadas, além de grandes revistas e jornais europeus. Já retratou mais de 120 países. Seus projetos são longos e sempre de muita relevância social. A cada um deles dedica entre seis e oito anos! Vai e vive com as pessoas que fotografa nos rincões mais remotos do planeta. Mundo afora, já fotografou, por exemplo, os trabalhadores que atuam em tarefas em extinção, por conta dos avanços da mecanização e da tecnologia (Trabalhadores); os milhões pessoas em fuga massiva ou morrendo de fome (Êxodos); e os habitantes desse planeta ainda a viver como se fazia a milênios atrás, como os nômades de Mali (Gênesis, atualmente em exposição em Belo Horizonte).
Para nós, os interessados nesses fenomenais artistas, não falta informação. Recentemente foi lançado um excelente documentário, Finding Vivian Maier, certamente disponível no Brasil em breve. Também recente é o maravilhoso livro de Sebastião Salgado, Da minha terra à Terra. A custo bem baixo, foi lançado em brochura pela ed. Paralela. Tudo isso é, para mim, uma profunda fonte de inspiração sobre como ver, viver, fotografar, ensinar e aprender.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Nem Deus Brasileiro, nem Papa Argentino



 
Nem Deus Brasileiro, nem Papa Argentino
 Dário Borim Jr. 
 dborim@umassd.edu


Que memorável experiência foi a de assistir, in loco, a uma partida da Copa no novo Mineirão! Por si só, o contato com gente de muitos países a caminhar para o estádio, sob um belo e energizante sol belo-horizontino, foi uma oportunidade inesquecível. Lá dentro, a sensação era a de eu estar dentro de uma televisão transmitindo um match de uma liga europeia. No estádio mais tradicional das Minas Gerais, os astros de Costa Rica e Inglaterra jogavam diante de gente bricalhona, mas educada, e coloriam um universo já repleto de tons, sons, e movimentos coletivos, que às vezes acompanhavam as manifestações musicais de pilhéria sobre os ingleses, já desclassificados do torneio, ou sobre qualquer torcedor argentino que aparecesse vestido a caráter no telão. Em geral, a sensação era de júbilo ao ver que o Brasil conseguia, a trancos e barrancos, sediar uma Copa do Mundo. Hoje penso: a história da segunda Copa do Mundo no Brasil não foi, de modo algum, diferente do que eu esperava. Vejamos por quê.
Alguns anos atrás li o original em inglês de um livro que jamais esquecerei, Como o Futebol Explica o Mundo: Um Olhar Inesperado sobre a Globalização (Ed. Zahar). É de um escritor americano, Franklin Foer, editor da famosa e sofisticada revista New Republic. Trata-se de uma obra fascinante, resultado de uma interessantíssima pesquisa sociológica ao longo de dois anos. Há bastante humor: o autor confessa, desde a primeira linha da obra, que sempre foi um perneta e não entende nada de futebol. Cada capítulo é dedicado à maneira como o futebol pode ser um bom meio para se entender aspectos importantes de um dado país.
Ao discutir tal questão em relação ao Irã, por exemplo, Foer aponta o aspecto revolucionário do futebol. Numa cultura onde vigoram normas muito rígidas sobre o que as mulheres podem ou não podem fazer, o esporte é símbolo e faz parte de um movimento revolucionário. Certa vez, centenas de mulheres, até então impedidas de ver partidas de futebol, marcharam rumo a um estádio em Teerã, arrombaram as portas e presenciaram um jogo de classificação de seu país para a Copa do Mundo.
No capítulo dedicado à Espanha, discute-se a particular rivalidade entre as identidades coletivas e as ideologias políticas que orientam os torcedores do Real Madrid e do Barcelona. O intenso e complexo tipo de nacionalismo emergente entre os torcedores catalãs em oposição ao de castelhanos torna essa seção do livro uma das mais ricas e intrigantes. No capítulo sobre o Brasil, revela-se uma longa e frustrante história de corrupção dentro dos clubes brasileiros e da Confederação Brasileira de Futebol.
Em parte, a Copa do Mundo de 2014 confirmou a tese daquele capítulo sobre o Brasil. Pudemos ler e ver casos de suspeitas ou fatos verídicos de superfaturamento de obras realizadas para a Copa. Além desse triste e vergonhoso elemento inegável da história, eu gostaria de mencionar o reflexo de outras características de nosso povo, algumas dos quais me deram imensa alegria e orgulho; outras, pelo contrário.
Em primeiro lugar, aponto a excelente hospitalidade e extrema generosidade com que os estrangeiros foram recebidos no nosso país, fato destacado em várias pesquisas realizadas entre eles. Depois, o genuíno fervor e a contagiosa paixão do brasileiro pelo esporte: lotando os estádios, assistindo, torcendo e discutindo cada partida da Copa como se todos os jogos fossem da seleção brasileira. Ao longo de um mês, familiares e amigos se reuniram dezenas de vezes para comer e beber e dançar e cantar em clima de total harmonia, descontração e bom humor, tudo por conta do seu próprio jeito de ser e dos jogos cheios de gols e improváveis resultados, como a eliminação precoce de quatro gigantes do futebol: Espanha, Inglaterra, Itália e Uruguai.
Outros componentes da mesma história foram as festas e apresentações musicais organizadas nas cidades-sedes. Apesar dos raros excessos e ocasional mau comportamento, como os de alguns argentinos, o clima cordial e alegre nesses locais, como os da praça da Savassi, em Belo Horizonte, já faz parte indelével da história da cidade, a mesma que viu a equipe norte-americana vencer a inglesa na nossa primeira Copa do Mundo, a de 1950.
Ainda outras características marcantes do povo brasileiro em evidência nesta Copa do Mundo foram a tendência ao atraso e a negligência no cumprimento das obrigações, problemas que provavelmente estariam por trás dos tristes acidentes e mortes de operários na construção de alguns estádios, como também na lamentável e embaraçosa queda de um viaduto em Belo Horizonte.
Nossa bela Belo Horizonte também ficou gravada como palco do maior fiasco da história do futebol brasileiro, a notória derrota dos 7 a 1 na semifinal contra a Alemanha. O papel de Neymar naquela equipe me faz pensar na dependência de um salvador, ou na força nefasta da hierarquização da nossa nação, na nossa história de monarquia, por exemplo, onde o Rei atuou como pivô paternalista da sociedade, ou mesmo no nosso ditador “bonzinho,” Getúlio Vargas, o Pai dos Pobres. Vi também o sentimentalismo do nosso povo retratado no choro dos jogadores ao cantar o Hino Nacional. Vi a falta de preparo estratégico e tático da equipe, certamente confiante na sua capacidade de improvisar e achar um jeitinho para lidar com o imprevisto e para enfrentar as adversidades.
Grave adversidade chegou. Neymar machucou-se gravemente. Uma equipe sem esquema tático e viciada na improvisação de um jogador que, segundo o técnico, podia jogar como um coringa no campo, sem eira e nem beira, até começou bem a partida contra os alemães. Porém, ela logo se desmoronou, entrando e pânico após o segundo gol de uma seleção que fizera o oposto a nós, ao se preparar meticulosamente para vencer a Copa.
Bem, reservo para o final desta crônica o melhor da história: o fabuloso senso de humor dos brasileiros! Tiro o chapéu: rimos de nossa ruína, elaboramos centenas de piadas sobre nosso desatino em campo, e a vida ficou um pouquinho mais alegre, ainda, em plena Copa que perdemos, ao vermos os “hermanos” voltarem pra casa sem o Caneco.
Minhas piadas favoritas foram a partir de imagens do Cristo Redentor. Numa delas a estátua sobe aos céus feito um foguete, e ele grita do alto do Corcovado: “Tô caindo fora desse país.” Se, apesar das milhares de rezas, dessa vez Deus mostrou que não é brasileiro, o Papa mostrou que nem ele pôde ajudar os seus “hermanos.” 
Também sou solidário. Além da nossa tragédia em campo, para mim foi deprimente ver Messi receber o taça de Melhor Jogador da Copa sem um sorriso sequer. Ele é bom sujeito, dizem, mas aquilo deve ter-lhe parecido como um Troféu Abacaxi. Ele queria era outra coisa. Nós também. Daqui a quatro anos tem mais. Rezemos mais, mas trabalhemos, a sério e  muito mais, para de novo ganhar a Copa!

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Um Delicioso Caos de Lembranças do Cairo e Istambul

Um Delicioso Caos no Cairo e Istambul



Camelos no Cairo

Dário Borim Jr
dborim@umassd.edu

Há dias tão intensos de emoções e estímulos para reflexões e, ao mesmo tempo, tão repletos de aventura e de novidades, que nos vemos incapazes revivê-los e avaliá-los em retrospectiva organizada e sensata. Vivemos então um delicioso caos de momentos memoráveis.
Ainda à espera de uma conexão no aeroporto de Istambul, em viagem de volta a Massachusetts, tento encontrar uma síntese para um turbilhão de experiências. Impossível! Até mesmo escolher um tópico para essa crônica, a primeira sobre minha viagem de uma semana a Turquia e também de uma semana ao Egito, parece-me tarefa além de minha capacidade. Viajar para países muito distantes de onde vivemos, sociedades de costumes e línguas muito diferentes dos nossos e dos que conhecemos, é algo extremamente desafiador e gratificante.
Em Istambul, a quinta maior cidade do mundo, ocorre o meu primeiro contato com uma sociedade acentuadamente muçulmana (talvez 50% de seus habitantes reverenciem Alá). Para cá viajei com o principal propósito de apresentar um trabalho acadêmico sobre a canção “O que Será,” de Chico Buarque de Holanda, e o filmeDona Flor e Seus Dois Maridos, de Bruno Barreto, baseado no romance homônimo de Jorge Amado. Aqui encontrei uma belíssima cidade em profunda e acelerada transição, marcada tanto por prosperidade e acentuados contrastes sócio-econômicos quanto por ativismo politico e violência policial sob acirrados conflitos ideológicos.
No cerne desses conflitos, de uma parte se quer uma cidade e um país moderno, de muitos shopping centers, e uma Istambul recortada por viadutos e autopistas. Por outro lado, preocupa-se com a preservação do patrimônio cultural, a efetivação de transporte público de qualidade, a manutenção de ruas e avenidas arborizadas (tomadas por gente, e não por velozes carros), a sustentação e expansão de muitos parques e praças, e a imagem de uma cidade onde os arranha-céus têm que se restringir a determinas áreas apenas. Por conta dessas diferenças, protestos e confrontos com a polícia têm deixado manchas sangrentas na história do país.
Após uma semana na maravilhosa Turquia, era hora de ir visitar o Ian, o filhote mais velho, que acabava seu ano escolar na Universidade Americana do Cairo naquele mesmo dia da minha chegada, 18 de maio. Na maior capital do mundo árabe também tem havido lutas sangrentas entre manifestantes e policiais. Se em Instambul há dinheiro sobrando, pois a economia do país anda firme e forte faz mais de dez anos, aqui também há desentendimento sobre como usar esses recursos. Na capital dos egípcios, entretanto é a falta de dinheiro e as desavenças políticas entre religiosos e militares o que faz o barco balançar. Sofrendo as consequências de dois golpes de estado em menos de quatro anos, o país agora atravessa uma de suas maiores crises econômicas e sócio-políticas. As forças militares e para-militares têm reagido com violência aos protestos dos muçulmanos e outros descontentes.
Comparados com os da Turquia, os problemas do Egito são muito mais vastos e profundos. Enquanto a antiga Istambul se tornou uma nova “moda,” a cidade mais procurada por turistas europeus, o oposto ocorreu ao Cairo. A cidade africana vive as nefastas consequências da sua péssima imagem na mídia internacional. O chocante número de mortes nos conflitos políticos nas ruas dessa e de outras cidades (duas mortes desse tipo ocorreram enquanto estive no país) e o desconforto dos toques de recolher impostos por soldados carregando metralhadoras por todos os cantos da cidade afastaram os turistas. Esse é um peso enorme nos ombros de uma população que, em grande número, vive da economia informal do turismo. Um quarto da economia do Egito, aliás, depende da presença de turistas, e estes sumiram. A falta de dinheiro é recompensada por pães distribuídos gratuitamente e por outros subsídios governamentais. Para muitos egípcios, só mesmo Alá poderá dar jeito numa situação sufocante, e em nome de Alá muitos vão às caóticas ruas do Cairo protestar contra a ilegitimidade do governo instaurado à força, e contra a falta de liberdade e de emprego.
Apesar das marcantes diferenças entre as duas maiores cidades daquela parte do mundo, ambas me encantaram. Lá vivem pessoas que adoram conversar, descontrair tomando um chá, fumando suas shishas nos seus narguilês (o tabaco por meio de cachimbos de água), ou jogando gamão, a sorrir por quase nada e ajudar a quem precise. Ambas são, com certeza, fontes inesgotáveis de surpresas para um viajante ocidental. É como se estivéssemos nós mesmos em um filme que retratasse a vida como ela era milhares de anos atrás.
Como esquecer o charme e a aventura de um cotidiano jamais visto? São as roupas coloridas das mulheres ou suas burcas negras, ou mesmo seus véus e cachecóis. São os turbantes de todos os matizes de homens e meninos. É a roupa tradicional masculina do dia a dia – preta ou acizentada – que mais parece a velha batina abandonada pelos padres no Brasil há várias décadas. São as casas, palácios, igrejas e mesquitas de arquitetura inesquecivelmente variada porque elevadas ao longo dos séculos por gente de origens e valores muito díspares. São os cheiros das ervas e especiarias, dos peixes assados na chapa, e de tantas outras comidas feitas sobre os passeios ou mesmo junto a eles, mas nas próprias ruas.
São os animais, tais como camelos, cavalos, coelhos, galinhas, bodes, gatos e cães – todos convivendo com gente deitada em camas em plena rua, com transeuntes e seus telefones celulares (caros e baratos), com músicos, artesões, pescadores e vendedores ambulantes de sucos e chá. Lá estão eles entre centenas de barracas de toalhas, tapetes, frutas, pães e roscas, milhares de antenas parabólicas, motos, bicicletas, lambretas, charretes, e carros de todos os valores, de um BMW novinho em folha a um sedam russo caindo aos pedaços. São todos os seres e coisas movidos ou situados em meio à forte poluição do ar e aos sons de canções tradicionais, buzinas incessantes, sirenes de carros da polícia e do exército, sem falar das melódicas chamadas para a reza muçulmana cinco vezes ao dia através de altofalantes espalhados por todos os cantos. O Cairo e Istambul nos levam a um mundo que tão fascinantemente mescla os milênios enquanto desorienta e reorienta o ser ocidental rumo à beleza da diversidade humana, com suas múltiplas culturas, hábitos e habitats.


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