Arte e Missão:
Arte e Missão:
A Fotografia de Maier e
Salgado
Que atributo melhor nos
destaca dentro do mundo animal? Será que somos mesmo os ditos “animais
racionais” do universo? Diógenes, aquele filósofo grego, estava
certo? Não passamos de frangos depenados? O raciocínio, os sentimentos, e
muitas outras características fazem parte tanto da vida dos cães, elefantes e
pererecas, quanto da existência de lutadores de boxe, políticos e garis.
Um dos atributos que
melhor nos separam dos outros tipos de animais acredito que seja a nossa
relação com a arte: a capacidade para criar, evocar, representar e/ou
transformar o mundo ou novos mundos que brotam de nossa imaginação, nossa
necessidade de ir muito além das experiências banais, mas necessárias, como
escovar os dentes e pentear os cabelos (quando ainda os temos), nos vestir ou
despir pelo menos 730 vezes por ano, comer todo santo dia e quase todo santo
dia ver que boa parte daquela comida gostosa estava apenas de passagem. Virou
massa abominável. Invadiu os rios e oceanos.
Algum tempo atrás os
tais animais racionais passaram a considerar a fotografia como forma de arte.
Mais que justo, só que ela pode ser mais que isso! Recentemente mergulhei nas
fascinantes histórias de dois fotógrafos cuja existência não seria a mesma se
por acaso não tivessem descoberto e alimentado suas paixões e obsessões
(desculpem a redundância) pela sua arte. Não há espaço aqui para ir fundo no
que vejo de complexo e absolutamente fantástico na mente e no roteiro de vida
de cada um. Tentarei apenas esboçar alguns contrastes e semelhanças.
Sebastião Salgado nasceu
na pequena cidade de Aimorés, Minas Gerais, em 8 de fevereiro de 1944. Aos
setenta anos de idade, é um dos fotógrafos vivos mais famosos de todo o mundo.
Vivian Maier veio ao mundo no mesmo dia, mês e ano que minha mãe: 1o. de
fevereiro de 1926. Era natural de Nova Iorque, filha de uma imigrante francesa
nascida num pequenino vilarejo situado num vale dos Alpes. Maier jamais
conheceu a fama em vida. Muito pelo contrário. Basicamente ninguém viu suas
fotos. Nem ela, exceto as poucas que revelou! Logo após sua morte, em 21 de
abril de 2009, seu enorme legado foi descoberto. Hoje ela é uma das mais
celebradas fotógrafas de todos os tempos.
A vasta maioria da
produção de Maier e Salgado é em branco e preto. Também há semelhanças
temáticas. Embora retratem de tudo que existe na Terra, dedicam mais tempo a
fotografar seres humanos, bem mais do que animais, plantas, e paisagens urbanas
ou rurais. Em particular, compõem imagens de pessoas que vivem às margens do
conforto material e da sensação de segurança de um lar.
Ao trabalhar por mais de
40 anos como babá para famílias de classe média alta entre Chicago e Nova
Iorque, Vivian Maier levava as crianças para passear nas periferias
empobrecidas daquelas cidades. Extremamente discreta e solitária, era
estranhamente viciada em coletar jornais e revistas nos seus aposentos, que
sempre mantinha trancados. Sozinha ou acompanhada nas suas andanças, Maier
capturava, com sua Rolleiflex, as ações e emoções de anônimos sem-tetos,
desempregados, bêbados, loucos, trabalhadores braçais em inóspitas condições,
crianças chorando, casais brigando, a imundice e a pobreza gritando calada que
só quem gosta de pobreza é intelectual de esquerda.
Uma obscura missão
levava Maier a fotografar freneticamente esse mundo, mesmo que ela mesma não
pudesse vê-lo além do visor de sua câmera. Maier não revelou quase nada dos
mais de 150 mil retratos que tirou. Talvez sua obsessão com o fotografar
sugasse quase todo o seu salário na compra de novos rolos. Talvez não sobrasse
dinheiro para o processamento dos seus milhares de cartuchos selados, um dia
descobertos num depósito de aluguel. Em função do extraordinário talento e
atual reconhecimento da obra de Vivian Maier, qualquer de seus retratos
revelados em vida, do tamanho de um cartão postal, ou menor, não vale menos que
4 mil reais.
O enredo do outro
protagonista desta crônica também nos surpreende. Há mais de 40 anos residindo
em Paris, Sebastião Salgado foi criado por fazendeiros abastados do Vale do Rio
Doce. Não seguiu o destino que talvez lhe fosse mais fácil: cuidar e expandir
as posses de seus pais. Sensível aos disparates econômicos e políticos do
Brasil dos anos 60, rebelou-se. Enquanto estudava economia na USP, foi membro
de um grupo de resistência à ditadura, a Juventude Universitária Católica.
Perseguido pelos militares, exilou-se em Paris, onde continuou a trabalhar para
seu grupo e cursou doutorado na prestigiada Sorbonne.
Em 1970, aos 26 anos, Salgado
comprou uma Pentax Spotmatic II, para ajudar Lélia, sua esposa, em seus
trabalhos de estudante de arquitetura. Não entendiam nada de fotografia. Foi
paixão instantânea. Sebastião e Lélia logo tecem um novo sonho: largar tudo,
comprar uma velha Kombi, montar um laboratório fotográfico nela mesma, e sair
trabalhando por toda a África. Antes de terminar sua tese, ele obteve um
excelente emprego junto à Organização Mundial do Café. Transferiu-se para
Londres, comprou um esplêndido carro, alugou um belo apartamento ao lado do
Hyde Park, e passou a viajar de graça por todo o mundo. Não podia esperar algo
melhor de um emprego, mas isso veio. Realizou gratificantes projetos
comunitários de enorme desenvolvimento econômico e social em Ruanda, Burundi,
Congo, Uganda e Quênia.
Salgado descobriu que de
fato queria fazer muito mais pela humanidade, e que queria muito mais da vida,
do que conforto e prestígio próprios. Seu trabalho independente como
foto-jornalista já lhe dava confiança e lhe aguçava a imaginação. Resultado:
largou tudo para trás para se tornar fotógrafo do mundo. Vendeu o que possuía e
investiu em equipamento fotográfico de peso. O sucesso veio rápido, ao receber
inúmeros prêmios e ser muito bem pago por agências de publicidade, organizações
variadas, além de grandes revistas e jornais europeus. Já retratou mais de 120
países. Seus projetos são longos e sempre de muita relevância social. A cada um
deles dedica entre seis e oito anos! Vai e vive com as pessoas que fotografa
nos rincões mais remotos do planeta. Mundo afora, já fotografou, por exemplo,
os trabalhadores que atuam em tarefas em extinção, por conta dos avanços da
mecanização e da tecnologia (Trabalhadores); os milhões pessoas em fuga
massiva ou morrendo de fome (Êxodos); e os habitantes desse planeta
ainda a viver como se fazia a milênios atrás, como os nômades de Mali (Gênesis, atualmente
em exposição em Belo Horizonte).
Para nós, os
interessados nesses fenomenais artistas, não falta informação. Recentemente foi
lançado um excelente documentário, Finding Vivian Maier, certamente
disponível no Brasil em breve. Também recente é o maravilhoso livro de
Sebastião Salgado, Da minha terra à Terra. A custo bem baixo, foi
lançado em brochura pela ed. Paralela. Tudo isso é, para mim, uma profunda fonte
de inspiração sobre como ver, viver, fotografar, ensinar e aprender.