Estereótipos e outros retratos do Brasil nos Estados Unidos:
Literatura, música e cinema
PALESTRA DE DÁRIO
BORIM JR.
NO CONEXÕES ITAÚ
CULTURAL 2017
Quarta 8 de novembro de 2017 | 18h
Literatura e outras
artes: ensino e pesquisa em chave comparada
Propostas para debate:
1) Apesar da variedade da produção nacional, fora do país o cinema,
a música e a literatura brasileiros tem um público inicial que busca
estereótipos do Brasil.
2) Existe espaço para obras que vão além, mantendo-se propriamente
brasileiras, mas alcançando dimensão universal?
3) Como essa problemática aparece no ensino e na pesquisa sobre as
artes do país?
Com: Dário Borim Jr., Saulo Neiva e Lidia V. Santos
Mediação: Fernanda Guimarães
Inicialmente, o meu muito obrigado a todos os responsáveis por
esse belo evento – em particular a Claudiney
Ferreira, João Cezar de Castro Rocha e Felipe Lindoso, que me fizeram o convite, e a Jahitza
Balaniuk, que coordenou múltiplas logísticas.
A temática proposta para esta mesa tem três partes – pela ordem
disposta, há uma asserção que relaciona duas ideias, seguidas de duas perguntas
que se entrelaçam. Vou dialogar com a proposta seguindo essa mesma ordem.
Concordo plenamente com a primeira ideia: a produção cultural
nacional é muito variada. Dos pampas temperados até o norte equatorial da
Amazônia – das mãos de indígenas que pintam os próprios corpos no Pará até os
pés agitados que dançam um partido alto no Rio de Janeiro – é vasta e cativante
a nossa expressão artística nacional.
A segunda ideia da primeira afirmativa é muito mais controversa do
que a primeira: a noção de que o cinema, a música e a literatura produzidos
neste país tenham um público inicial que busca estereótipos do nosso país fora
do Brasil.
Muito mais que nas obras de brasileiros traduzidas ou mesmo
veiculadas em português no estrangeiro, desde que se publicaram os poemas de
Gregório de Matos em Lisboa, até os nossos tempos de ensaios e narrativas de
Lya Luft em inglês e outros idiomas, os estereótipos do Brasil aparecem muito
mais frequentes nas obras literárias, autobiográficas ou etnográficas de
estrangeiros que escrevem sobre o Brasil. Isso, desde maio de 1500, com a "Carta
de Pero Vaz de Caminha", até os dias de hoje, em tantos filmes de Hollywood. O
documentário Olhar estrangeiro
(2016), da carioca Lúcia Murat, por exemplo, discute o Brasil retratado nas
películas norte-americanas e europeias. O louvável trabalho de Murat é uma
imperdível fonte de humor negro e perplexidade!
Dos escritores brasileiros com alguma repercussão crítica ou
grande sucesso comercial no mercado norte-americano, somente me recordo de
Jorge Amado como exportador de algo que se poderia entender por apelo do exótico.
Porém, não sei se esse apelo, mesmo na obra do baiano, é mais forte do que
aqueles outros, os da sensualidade e do erótico voyeur de uma Gabriela, cravo e canela, ou de uma Dona Flor e seus dois maridos.
Por outro lado, na esfera da repercussão acadêmica, estuda-se
muito a obra de Machado de Assis e de outros autores canônicos do século XIX,
os versos modernistas das três fases, o neo-realismo de Graciliano Ramos,
Rachel de Queirós, e a diversidade contemporânea de Silviano Santiago e Ana
Maria Miranda, sem destaque para o exótico, apesar do inusitado novo mundo que
esses escritos possam configurar para o leitor nacional ou estrangeiro.
Sucesso brasileiro estrondoso, na sala de aula e nos periódicos
e livros acadêmicos, é de fato a técnica narrativa diferenciada, o
existencialismo preponderante, e o feminismo sutil nas obras da instigante e
apaixonante Clarice Lispector. Sem dúvida, seu descobrimento pela crítica
feminista, principalmente a francesa e a norte-americana, se fez instrumental para
tal sucesso. Quando era estudante de doutorado na Universidade Minnesota-Twin
Cities, certa vez trabalhei como assistente de pesquisa bibliográfica para o professor
e tradutor Ronald Sousa. Em 1993, ainda no início da febre lispectoriana, encontrei
mais de 900 artigos e livros que a discutiam!
Também tenho tido outras formas de aproximação e intervenção na cultura brasileira pelo contato direto ou indireto com as
comunidades dentro e fora das universidades. Durante alguns anos escrevi e
publiquei crônicas para O Jornal,
periódico semanal dos lusofalantes da região de Fall River e New Bedford, no sul de Massachusetts. A
crônica brasileira é um tipo de criação literária muito presente na minha
carreira acadêmica, e por isso tenho trabalhado nos últimos oito anos como
editor-contribuinte de uma seção do periódico Handbook of Latin American Studies da Biblioteca do Congresso em
Washington. Esse contato com o leitor transcorreu paralelo ao nosso convívio através
de múltiplos concertos musicais que produzi ao longo de mais de dez anos. Para
o campus da UMass Dartmouth, ou para seu entreposto no centro histórico de New
Bedford, levei a arte ao vivo de músicos lusofalantes residentes, por exemplo,
no Brasil, Cabo Verde, Canadá, França, Israel, Portugal e Moçambique, entre
outros. A comunidade sempre prestigiou tais eventos, e neles pudemos nos
conhecer melhor e juntos apreciar um pouco do melhor que o mundo lusófono pode
oferecer.
Fundos para esses eventos partiram da administração da Universidade, ao
nível da Reitoria e do colegiado, e, principalmente, do Centro de Estudos e
Cultura Portugueses, que permanece extremamente ativo desde sua fundação,
quatro anos antes de minha chegada a Massachusetts em agosto de 2000. Além de
patrocinar e organizar congressos e colóquios internacionais, o Centro
administra uma cátedra que anualmente contrata professores visitantes de grande
renome no mundo acadêmico e literário para trabalhar conosco por um semester, entre
eles a antropóloga brasileira Bela Feldman e o escritor angolano Ondjaki.
O Centro tem mantido, através da sua própria editora, a Tagus Press,
uma prolífica agenda e um alto calibre de publicações reconhecidas internacionalmente,
inclusive uma série de Literatura Brasileira em Tradução, onde já saíram em
inglês, por exemplo, Agosto, de Rubem
Fonseca, e O eterno filho, de
Cristovão Tezza. De fato, nos últimos 21 anos, pela editora do Centro já saíram mais de 70 volumes de
obras literárias ou teórico-críticas, cujos lançamentos levaram ao campus
figuras distintas, como José Saramago, Lídia Jorge, Silviano Santiago, e muitos
outros grandes nomes da cultura lusófona.
O Centro também desenvolve e mantém atividades em
parceria com os modernos Arquivos Lusos-Americanos Ferreira-Mendes, outra
distinta organização da UMass Dartmouth voltada para os estudos lusófonos, que
acolhe e serve a pesquisadores vindos de diversas partes do mundo. Também atrai
tais investigadores uma outra instituição local, o belíssimo Museu da Baleia,
de New Bedford. Como se sabe, foi muito significativa contribuição açoriana e
cabo-verdiana à indústria da caça à baleia, história na qual se destaca a
cidade de New Bedford como seu principal porto.
No tocante à música, em particular, a primeira assertiva da
proposta para debate nesta sessão me parece ainda menos certeira. Talvez a grande
exceção seja a da forma como a sambista de rádio e depois atriz carnavalizada
Carmen Miranda representou o Brasil nos teatros de Nova York e nos estúdios de
Hollywood. Sua representação caricatural, híper-estereotipada, entretanto, é
muito mais caracterizada pela tipo de dança, vestimenta e trejeitos do que pelo
que se poderia postular de exótico nas letras dos sambas que ela cantava em
português — letras, claro, que quase nenhum norte-americano entendia. Vale destacar um
belo e seminal estudo da imagem icônica de Carmen Miranda é a de Kathryn Bishop-Sanchez,
publicada um ano atrás: Creating Carmen
Miranda.
Em geral, a música composta por brasileiros – e interpretadas ou
não por brasileiros, nos Estados Unidos – é de alta qualidade e grande variedade.
A história registra a participação de brasileiros em festivais de jazz já no
início do século XX, como no famoso evento de Newport, Rhode Island, a 40
minutos da nossa instituição, a UMass Dartmouth. Tocava-se o tal de “tango
brasileiro”, o nome que muitos ainda davam ao que mais tarde se definiria como
choro ou chorinho.
Na própria Califórnia dos tempos de Carmen Miranda, isto é, nos
anos 40 e meados dos anos 50, nada menos que um gênio nascido no interior de
São Paulo, chamado Laurindo Almeida, encantava com seu violão as platéias que
dele ouviam música clássica, de um Bach ou Ravel, por exemplo – porém, ao ritmo
do samba, bumba meu boi e maracatu. Também ouviam do próprio Laurindo Almeida a
música brasileiríssima de fino trato nascida da imaginação de outro gênio da
nossa história, Heitor Villa-Lobos.
Para os que não sabem, tem mais: Laurindo Almeida se tornou um
exímio compositor e intérprete do jazz, ao ponto de receber não apenas quatro expressivos
prêmios Grammy em música clássica, mas também vencer a Miles Davis, Henri
Mancini e outros bambas do ofício – obtendo, ele, um filho da pequena cidade
paulista de Prainha, em 1964, um Grammy, esse na categoria Best Instrumental
Jazz Performance.
A partir do bagunçado, atropelado – e, mesmo assim, fascinante e
memorável – concerto no Carnegie Hall, no sul de Manhattan, em 1962, a história
da bossa nova nos Estados Unidos é razoavelmente conhecida no Brasil. É uma
jornada brilhante e marca indelével de uma prata fina da fornalha cultural
brasileira, que encantou e seduziu não só os norte-americanos, mas também os
japoneses, os turcos e os europeus, desde a Espanha cigana à Suécia viking.
Nem se precisa dizer, eu acho, que a bossa nova que se
imortalizou no canto de João Gilberto e nas harmonias de Tom Jobim não tem nada
de exótico, fácil ou repetitivo. Diz-se entre artistas e historiadores da música
nos Estados Unidos que não há astro do jazz norte-americano que nunca tenha
gravado ou interpretado Jobim. Por outro lado, já ouvi de uma conhecida, que,
no Japão, João Gilberto certa vez recebeu um aplauso de 42 minutos ao final de
um concerto. Muitas lendas marcam sua biografia. Essa pode ser mais uma, ou
não.
Após a chegada dos influentes percussionistas e
multi-instrumentistas do naipe de Naná Vasconcelos, Airto Moreira, Thiago de
Mello e Hermeto Pascoal, nos anos 70, chega a vez da MPB aterrissar na Terra do
Tio Sam na década de 1980, com uma ajudazinha de David Byrne, do lendário grupo
Talking Heads. Certa vez, entrei num cinema de Uptown, em Minneapolis, e o que
ouvi pelos alto-falantes antes do filme foi puro mel: a arte de Gilberto Gil,
Caetano Veloso, Milton Nascimento, Clara Nunes e Marisa Monte. A MPB estava
mais forte do que nunca nos Estados Unidos. Brasileiros a partir de então
receberiam vários prêmios Grammy na competitiva categoria world music.
Uma década depois, isto é, no fim dos anos 90, era a hora dos
Mutantes, do Tom Zé e de outros sons tropicalista – os norte-americanos
finalmente descobriam a Tropicália, mais de 20 após o movimento agitar o nosso
chão e cruzar os nossos céus ao sul do Equador. A partir de então, naquele fim
do século XX, fora do Brasil os tropicalistas passavam a exercer forte
influência sobre a música internacional lá rotulada de “world music”. Os
artigos do editor de música do New York
Times, Jon Pareles, retratam muito bem esse, digamos, Renascimento daqueles
vanguardistas baianos e paulistas.
Hoje em dia, a presença da música brasileira no mundo é distinta
referência. Uma escola de música como a Berklee, de Boston, considerada a
melhor do mundo em jazz e world music, envia agentes ao Brasil anualmente. São
caçadores de jovens talentos, para quem a escola oferece bolsas de estudos
integrais, com direito a razoáveis subsídios para moradia e alimentação. São
cantoras, percussionistas, violonistas, pianistas, etc., que nos representam muito
bem lá fora. Resta dizer que a mesma Berklee School of Music já ofereceu o
título de Doutor Honoris Causa a pelo menos dois de nossos músicos, Milton
Nascimento e Rosa Passos.
Ademais, a paixão pela música brasileira entre as pessoas que
moram nos Estados Unidos, Itália, Espanha e Portugal, entre outros países,
sustenta inúmeras turnês tanto de um fantástico conjunto de choro, como o das
irmãs Ferreira, o Choro das Três, quanto da arte sem rótulo de uma Céu, de uma
Luíza Maita, ou mesmo de um Seu Jorge – quem recebeu, no ano passado, um
registro para a posteridade: o Dia de Seu Jorge, no calendário oficial da
cidade de Boston. A honraria não é pra muitos santos.
Em relação ao cinema, sustento a mesma posição, a de que, pelo
menos no mundo de hoje, o cinema brasileiro não depende de estereótipos ou
exotismo para atrair público no exterior. A dinâmica que me parece estar dando
algum resultado é o múltiplo patrocínio de agentes públicos e privados do
Brasil em complementar parceria com produtores estrangeiros.
Quanto à pergunta sobre a existência ou não do espaço para obras que
vão além do exotismo e do estereótipo, mantendo-se propriamente brasileiras,
mas alcançando dimensão universal, penso que sim, que há tal espaço, dentro de vários
limites e oportunidades criados por diversos parâmetros.
No caso da literatura, gosto muito das conclusões a que chega Carlos
Minchillo em sua tese de doutorado defendida na USP e publicada pela EDUSP em 2015
sob o título de Erico Verissimo, escritor
do mundo. O pesquisador paulista explora magistralmente os impasses e entraves
que escritores vivem num tempo de massificação do consumo de tudo, e por que
não, de bens culturais. A inserção do livro brasileiro num cenário
transnacional, em plena era deste mercado globalizado, enfrenta o que Minchillo
chama de “fatores intra e extratextuais que interferem no trânsito de obras
pelos mercados editoriais” (21). Nesses mercados ocorrem a aceitação, rejeição
ou indiferença por toda uma “cadeia de atores sociais e profissionais –
editores, agentes literários, pareceristas, marqueteiros, capistas,
resenhistas, críticos, acadêmicos etc – que atuam na avaliação e triagem de
títulos” (21).
Concordo sem restrições com a síntese de Minchillo: o sucesso ou
fracaço de uma obra ou de um escritor, com sua maior ou menor inserção no
mercado nacional e internacional, “não são determinados exclusivamente pelas
linhas do texto literário” (21). De fato, “derivam de um feixe de ações e
discursos de múltiplas naturezas – política, econômica, mercadológica,
diplomática, ideológica – e constituem, portanto, uma história escrita por
diversas mãos e que ecoa diferentes vozes” (21-22).
A resposta para a última pergunta sobre ensino e pesquisa fica
para esses dois últimos minutos da minha fala e, também, para o que nos restar
de tempo para discussão.
Bem além de algo extremamente importante para mim mesmo, isto é, a
concretização de um de meus maiores sonhos na vida, meu programa de radio
dedicado a música luso-afro-brasileira, o Brazilliance,
tem atingido metas que jamais imaginei. No ar nos últimos 16 anos, o Brazilliance tem veiculado muitas edições
temáticas. Por exemplo, um programa com três horas de canções compostas
exclusivamente por mulheres brasileiras. Outro, de canções gravadas por músicos
da diáspora de lusofalantes. E um terceiro, com discussão e leitura de
narrativas do século XIX que tematizam a própria música na literatura
brasileira.
Alguns de meus programas funcionam como espécie de trilha sonora dos
cursos que ensino, como um totalmente dedicado a Caetano Veloso, e outro,
exclusivamente enfocado em Vinicius de Moraes. O Brazilliance também tem estabelecido laços entre minha pessoa
pública e a comunidade de ouvintes através de entrevistas com músicos locais ou
visitantes, jornalistas, líderes politicos, e pesquisadores das humanidades
voltados para o mundo lusófono. Também tenho levado para os estúdios da rádio,
a WUMD, vários dos meus alunos de todos os níveis de proficiência, desde a
tábula rasa do Português 101 até os seminários do nosso programa de
doutoramento em Estudos Luso-Afro-Brasileiros e Teoria. Meio por acaso descobri
a Luso-América do Norte em agosto de 2000, uma região com seis cidades onde
metade da população descende de brasileiros, cabo-verdianos e portugueses. E
por lá fiquei, com um pé dentro, e um pé fora, no país que me viu nascer e que,
na verdade, dentro do peito, nunca deixei.
É isso aí. Obrigado!