Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu
Há poucos minutos eu ainda oscilava entre escrever estas
linhas em inglês ou português. Até me veio uma ideia esdrúxula: que tal compor uma
sentença inteira em uma língua e, imediatamente, sua versão na outra? Eu teria uma
crônica para cada um de dois públicos. Nunca soube de nenhum poeta que tivesse
feito algo assim. Não serei eu um pioneiro dessa verve bilíngue em prosa. A
origem da dúvida é a de que neste outono eu leciono dois cursos que me inspiram
a refletir bem além do meu normal. Um deles, na graduação, é todo ministrado em
inglês: “Gênero e Sociedade no Cinema Brasileiro”. O outro, na pós-graduação, é
um seminário que dou em português: “A Crônica Brasileira”. Ambas as turmas me
provocam a pensar de um modo livre, criativo e emocional, tanto nas aulas à
distância, via Zoom, como nas tantas vezes que depois, sozinho, sigo por aí,
pensando com os meus botões.
No curso em inglês, vimos semanas atrás o
documentário Waste Land, sobre o belo trabalho do artista plástico
paulista Vik Muniz junto a uma comunidade de coletores de recicláveis num lixão
do Rio de Janeiro. Também vimos o biofilme Kinsey, sobre o astuto e
pioneiro biólogo e sexólogo norte-americano, Alfred Kinsey. No seminário para
nossos mestrandos e doutorandos discutimos várias crônicas escritas nas décadas
de 1960 e 1970. Dedicamos grande parte do tempo a dez crônicas assinadas por
Clarice Lispector. Como aqueles dois filmes, alguns desses textos claricianos,
principalmente “Literatura e Justiça” e “Mineirinho,” nos compelem a ponderar sobre
os desafios de nossos dias, especialmente nas iniquidades socioeconômicas e nas
múltiplas formas de violência racial.
Além das ideias e confabulações partindo
diretamente das questões discutidas nas aulas, outros questionamentos
relacionados àqueles temas andam mexendo comigo. São derivados de quatro ou
cinco cenas descritas pela mídia. São situações ou desenvolvimentos recentes.
Gostaria de explorá-los um por um aqui, com alguma profundidade, mas não há
espaço nesta crônica. Vou, quem sabe, tentar elaborar alguma síntese ao refletir
sobre eles e suas interligações.
Vamos lá. Alguns dias atrás, eu li que quatro
adolescentes, dois de 12 e dois de 13 anos, abusaram sexualmente de uma garota
de 11 anos em Nova Tupi, um bairro na região Norte de Belo Horizonte. Como se já
não fosse um ato de horror e crueldade, há outros agravantes na notícia. Um
jovem de 23 anos filmou as cenas de sexo oral e penetração forçada. A seguir,
enviou o vídeo aos pais da menina via WhatsApp. Respirem fundo: tem mais uma dose
absurdo e maldade: a mãe de uns dos agressores mais jovens inocentou o filho e
declarou à imprensa que a vítima “não era de boa fama”.
Outra cena abominável da semana foi a de dois
ministros do governo Jair Bolsonaro. Assinaram um manifesto internacional (mas
não global, como gostariam) galvanizando a importância das campanhas de
condenação ao sexo que não seja entre homens e mulheres, e, exclusivamente,
dentro do casamento. Fortificaram, também, um orgulhoso combate a qualquer
forma de aborto, num gesto de aberração anacrônica assinada por autoridades
governamentais de 36 países. Coincidentemente, são todos de governos
autoritários, de direita ou ultra-direita. Essa equipe de cérebros deturpados
no poder, liderada pelo Secretário de Estado norte-americano Mike Pompeo e
patrocinada pela Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, a brasileira
Damares Alves, é formada por gente que eu gostaria de denominar “justiceiros do
mal”.
O tal time não inclui representantes de menos
que um quinto dos 167 países que constituem as Nações Unidas, mas, mesmo assim,
essa gente me dá calafrios de vergonha e medo. Os disparates são inúmeros.
Talvez valha reiterar que enquanto milhares de mulheres morrem por terem-se
engravidado, pois não têm acesso a clínicas autorizadas, gratuitas e
profissionalmente preparadas, algumas daquelas autoridades veem certa (sórdida)
missão divina tanto na salvação dos fetos, quanto na condenação de “criminosas”
e “criminosos” à pena de morte. Ao mesmo tempo, essas criaturas que falam em
nome de Deus também defendem em voz alta a abstinência sexual completa antes ou
fora do casamento como solução preventiva ao aborto. Abstinência sexual
compulsória tem seus muitos problemas, é claro, inclusive os riscos de
obsessões advindas da proibição, e os dolorosos transtornos de homens e
mulheres que se amam e se casam ainda virgens, para algum tempo depois um deles
ou ambos se reconhecerem como homossexuais.
Dentro desse cenário de restrições e
retrocessos, estão na mira dos poderosos da Polônia, Hungria, Uganda, Arábia
Saudita, Brasil ou Estados Unidos (entre outras nações ditas civilizadas), o
casamento ou o reconhecimento da união estável entre pessoas homoafetivas. Correm
enorme perigo todos os seus direitos humanos já arduamente obtidos e assegurados
por lei, entre os quais os incentivos fiscais e as vantagens de cofiliação a
planos de saúde. Membros de minha família, amigos e vizinhos estão
justificavelmente apreensivos, no momento em que o Congresso dos Estados Unidos
está pronto para confirmar Amy Barrett, uma juíza católica que lê a bíblia e a
constiuição do país literalmente, como nova membro da Suprema Corte. Ela
se apresenta e age judicialmente "originalista" – mesmo que ambos os
documentos aos quais tem professa lealdade tenham sido escritos ou em épocas em
que se queimavam e se apedrejavam homossexuais e adúlteros em praça pública, ou
se exterminavam os nativos na conquista do oeste e se mantinha viva e ferrenha
uma das instituições mais abomináveis da história da humanidade, a escravidão.
Finalmente, resta um sopro de esperança, pois
nem tudo são sombras e espinhos nessa árdua e penosa caminhada em meio a uma
pandemia sanitaria e política que avassala quase todos os cantos do mundo. De
repente ouve-se do Vaticano uma voz de solidariedade e respeito humano, em
defesa das relações homoafetivas. Papa Francisco, volta a contrariar os
conservadores de plantão, claro, os filhos, netos, e bisnetos de Deus que dão
continuidade à mesma linha de gerações que sobrevive às custas das fortunas
herdadas sob a milenar harmonia entre justiceiros do mal em nome do bem,
pontífices, monarcas, ditadores e fascistas.
PS: Entre outras
fontes, veja: 1) https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/10/22/interna_gerais,1197125/menina-estuprada-por-adolescentes-norte-bh-pais-recebem-video-whatsapp.shtml
e 2) https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/brasil-se-une-a-egito-indonesia-uganda-hungria-e-eua-em-declaracao-contra-o-aborto.shtml