domingo, 25 de outubro de 2020

Justiceiros do Mal em Nome do Bem

 



Dário Borim Jr.

dborim@umassd.edu  

Há poucos minutos eu ainda oscilava entre escrever estas linhas em inglês ou português. Até me veio uma ideia esdrúxula: que tal compor uma sentença inteira em uma língua e, imediatamente, sua versão na outra? Eu teria uma crônica para cada um de dois públicos. Nunca soube de nenhum poeta que tivesse feito algo assim. Não serei eu um pioneiro dessa verve bilíngue em prosa. A origem da dúvida é a de que neste outono eu leciono dois cursos que me inspiram a refletir bem além do meu normal. Um deles, na graduação, é todo ministrado em inglês: “Gênero e Sociedade no Cinema Brasileiro”. O outro, na pós-graduação, é um seminário que dou em português: “A Crônica Brasileira”. Ambas as turmas me provocam a pensar de um modo livre, criativo e emocional, tanto nas aulas à distância, via Zoom, como nas tantas vezes que depois, sozinho, sigo por aí, pensando com os meus botões.

No curso em inglês, vimos semanas atrás o documentário Waste Land, sobre o belo trabalho do artista plástico paulista Vik Muniz junto a uma comunidade de coletores de recicláveis num lixão do Rio de Janeiro. Também vimos o biofilme Kinsey, sobre o astuto e pioneiro biólogo e sexólogo norte-americano, Alfred Kinsey. No seminário para nossos mestrandos e doutorandos discutimos várias crônicas escritas nas décadas de 1960 e 1970. Dedicamos grande parte do tempo a dez crônicas assinadas por Clarice Lispector. Como aqueles dois filmes, alguns desses textos claricianos, principalmente “Literatura e Justiça” e “Mineirinho,” nos compelem a ponderar sobre os desafios de nossos dias, especialmente nas iniquidades socioeconômicas e nas múltiplas formas de violência racial.

Além das ideias e confabulações partindo diretamente das questões discutidas nas aulas, outros questionamentos relacionados àqueles temas andam mexendo comigo. São derivados de quatro ou cinco cenas descritas pela mídia. São situações ou desenvolvimentos recentes. Gostaria de explorá-los um por um aqui, com alguma profundidade, mas não há espaço nesta crônica. Vou, quem sabe, tentar elaborar alguma síntese ao refletir sobre eles e suas interligações.

Vamos lá. Alguns dias atrás, eu li que quatro adolescentes, dois de 12 e dois de 13 anos, abusaram sexualmente de uma garota de 11 anos em Nova Tupi, um bairro na região Norte de Belo Horizonte. Como se já não fosse um ato de horror e crueldade, há outros agravantes na notícia. Um jovem de 23 anos filmou as cenas de sexo oral e penetração forçada. A seguir, enviou o vídeo aos pais da menina via WhatsApp. Respirem fundo: tem mais uma dose absurdo e maldade: a mãe de uns dos agressores mais jovens inocentou o filho e declarou à imprensa que a vítima “não era de boa fama”.

Outra cena abominável da semana foi a de dois ministros do governo Jair Bolsonaro. Assinaram um manifesto internacional (mas não global, como gostariam) galvanizando a importância das campanhas de condenação ao sexo que não seja entre homens e mulheres, e, exclusivamente, dentro do casamento. Fortificaram, também, um orgulhoso combate a qualquer forma de aborto, num gesto de aberração anacrônica assinada por autoridades governamentais de 36 países. Coincidentemente, são todos de governos autoritários, de direita ou ultra-direita. Essa equipe de cérebros deturpados no poder, liderada pelo Secretário de Estado norte-americano Mike Pompeo e patrocinada pela Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, a brasileira Damares Alves, é formada por gente que eu gostaria de denominar “justiceiros do mal”.

O tal time não inclui representantes de menos que um quinto dos 167 países que constituem as Nações Unidas, mas, mesmo assim, essa gente me dá calafrios de vergonha e medo. Os disparates são inúmeros. Talvez valha reiterar que enquanto milhares de mulheres morrem por terem-se engravidado, pois não têm acesso a clínicas autorizadas, gratuitas e profissionalmente preparadas, algumas daquelas autoridades veem certa (sórdida) missão divina tanto na salvação dos fetos, quanto na condenação de “criminosas” e “criminosos” à pena de morte. Ao mesmo tempo, essas criaturas que falam em nome de Deus também defendem em voz alta a abstinência sexual completa antes ou fora do casamento como solução preventiva ao aborto. Abstinência sexual compulsória tem seus muitos problemas, é claro, inclusive os riscos de obsessões advindas da proibição, e os dolorosos transtornos de homens e mulheres que se amam e se casam ainda virgens, para algum tempo depois um deles ou ambos se reconhecerem como homossexuais.

Dentro desse cenário de restrições e retrocessos, estão na mira dos poderosos da Polônia, Hungria, Uganda, Arábia Saudita, Brasil ou Estados Unidos (entre outras nações ditas civilizadas), o casamento ou o reconhecimento da união estável entre pessoas homoafetivas. Correm enorme perigo todos os seus direitos humanos já arduamente obtidos e assegurados por lei, entre os quais os incentivos fiscais e as vantagens de cofiliação a planos de saúde. Membros de minha família, amigos e vizinhos estão justificavelmente apreensivos, no momento em que o Congresso dos Estados Unidos está pronto para confirmar Amy Barrett, uma juíza católica que lê a bíblia e a constiuição do país literalmente, como nova membro da Suprema Corte. Ela se apresenta e age judicialmente  "originalista" – mesmo que ambos os documentos aos quais tem professa lealdade tenham sido escritos ou em épocas em que se queimavam e se apedrejavam homossexuais e adúlteros em praça pública, ou se exterminavam os nativos na conquista do oeste e se mantinha viva e ferrenha uma das instituições mais abomináveis da história da humanidade, a escravidão.

Finalmente, resta um sopro de esperança, pois nem tudo são sombras e espinhos nessa árdua e penosa caminhada em meio a uma pandemia sanitaria e política que avassala quase todos os cantos do mundo. De repente ouve-se do Vaticano uma voz de solidariedade e respeito humano, em defesa das relações homoafetivas. Papa Francisco, volta a contrariar os conservadores de plantão, claro, os filhos, netos, e bisnetos de Deus que dão continuidade à mesma linha de gerações que sobrevive às custas das fortunas herdadas sob a milenar harmonia entre justiceiros do mal em nome do bem, pontífices, monarcas, ditadores e fascistas.

PS: Entre outras fontes, veja: 1) https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/10/22/interna_gerais,1197125/menina-estuprada-por-adolescentes-norte-bh-pais-recebem-video-whatsapp.shtml e 2) https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/brasil-se-une-a-egito-indonesia-uganda-hungria-e-eua-em-declaracao-contra-o-aborto.shtml

 


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