domingo, 3 de maio de 2009

Ondas





Dário Borim Jr.

dborim@umassd.edu

A vida flue em variadas ondas: as de momentos difíceis, tais como aqueles criados por doenças, saudades e falecimentos; e as de momentos bons, como os de nascimentos, reencontros e casamentos. Essa última onda foi a que me levou ao Brasil no fim-de-semana passado. Meu sobrinho Alexandre e sua noiva, Bruna, se empenharam ao máximo e produziram um casamento-espetáculo dos mais memoráveis. O único expatriado da família não podia perder esse evento, e por isso organizou seus afazeres e conta bancária de modo a acomodar a extravagância de uma viagem-relâmpago ao outro lado do globo.

No caminho de ida, na quinta-feira, eu tive que lidar com o enorme estresse de chegar tarde ao aeroporto para embarcar. Não foi bem culpa minha. Os estacionamentos estavam lotados e a companhia aérea antecipou o horário de partida sem me avisar. Por um triz não me dei mal. Mesmo que tenha sido quase no último minuto, ainda consegui sair de viagem como era necessário para não perder as próximas conexões.

Em Belo Horizonte, tudo conspirava a favor de um casamento maravilhoso: tempo bom, a família toda bem disposta, e o reencontro com velhos amigos. Numa capela do condomínio Retiro das Pedras, Alexandre e Bruna foram unidos em matrimônio religioso sob os raios multicoloridos de um belíssimo pôr-do-sol iluminando a enorme parede de vidro atrás do altar. Os pombinhos programaram várias surpresas: homem vestido de anjo, palhaço, malabarista e sanfoneiro. O melhor da festa ficou por conta dos noivos sapecando uma dança bem coreografada ao som de “Sweetheart of Mine”, uma valsa cujo arranjo combinava linguagens e artistas do chorinho carioca e do jazz de Nova Orleãs.

Depois de múltiplas conversas com parentes e amigos, repetidas doses de uísque, e incansáveis danças, o casamento virou lembrança. Antes que meu fim-de-semana internacional se acabasse por completo, porém, outras ondas chegariam. No vôo de domingo à noite entre o Rio de Janeiro e Nova Iorque pude ajudar uma mocinha a não desmaiar. Karina, sentada na janela ao meu lado, era lutadora de Jiu-Jitso, uma carioca de uns 18 anos. Estava com o joelho esquerdo contundido e enfaixado. Tinha uma cachorrinha vira-lata pretinha e peluda, a tal de Sininho, resguardada embaixo do banco da frente. Sininho recebeu longos cafunés da sua dona, durante quase toda a viagem, e não a ouvi latir uma só vez.

Conversamos muito pouco. Eu curtia a leitura de um belo e estranho romance, Coiote, de Roberto Freire, quando, a certo momento, Karina pediu que chamasse os comissários. Estava passando mal e suando frio. Pus a mão na sua testa e suspeitei que estivesse mesmo com pressão baixa. Os comissários vieram e comecei a abanar seu rosto enquanto um deles passava um paninho gelado no pescoço e no tórax. Fiz-lhe umas perguntas e ela disse que aquilo era hipoglicemia, mas que não era diabética. Fui atrás de um copo de coca-cola. Ela foi melhorando aos poucos. Karina agradeceu minha ajuda, e eu lhe disse, com convicção, para acalmá-la: "Estou aqui pra te ajudar". Reagiu bem ao açúcar. Fiquei pensando como não deveria ser fácil depender da ajuda de estranhos, uma observação que certa vez ouvi de Janis Joplin.

Por coincidência, outro sério problema de joelho me esperava em casa. Meu filho mais velho, Ian, sofrera uma colisão traumática numa partida de futebol e corria risco de ter que fazer cirurgia e ficar fora dos gramados por quase seis meses, o que seria uma mini-tragédia para esse aficionado do esporte das multidões. Ele tinha acabado de chegar de uma fascinante viagem de ônibus a Nova Orleãs, com mais 44 jovens, onde trabalhara na construção de casas para os menos favorecidos. Naquela viagem de 10 dias, Ian fora eleito o “príncipe da caravana” pelas garotas adolescentes. Segundo disseram os professores responsáveis pela jornada, ele foi o trabalhador mais entusiasmado do grupo. Tudo transcorrera às mil maravilhas até voltar às suas atividades em Dartmouth, onde moramos. A vida tem desses revezes: o pico do sucesso muitas vezes é seguido de uma queda vertiginosa ao fundo do posso.

Assim foi a história de mais um fim-de-semana inusitado para mim e muitas outras pessoas, inclusive Alexandre e Bruna. O mundo pós-moderno e globalizado tem dessas coisas: a canção de maior destaque no seu casamento foi uma composição de Jelly Roll Morton interpretada por Tom McDermott, a quem eu assistira ao vivo no clube Donna, de Nova Orleãs. O seu disco, Choros do norte, a mim oferecido pelo próprio exímio pianista, eu levara ao Brasil para compartilhá-lo com José Codo, meu cunhado apaixonado por música melódica e romântica. Dessa exportação de um tesouro de Nova Orleãs altamente influenciado pelo chorinho do Rio de Janeiro veio a escolha musical dos noivos. Por coincidência, meu filho voltava daquela outra “cidade maravilhosa”, às margens do delta do Mississipi, quando, em Belo Horizonte, um belo casamento transcorria ao som de um grande artista da incomparável cidade franco-americana.

Sem despachar mala alguma, eu chegara ao Brasil para aquela cerimônia de matrimônio, e de Belo Horizonte voltei com uma senhora bagagem de recordações: aventura, enternecimento, e orgulho do meu primogênito, principalmente. Estava, pois, um tanto mais feliz e mais forte para lidar com os desafios, dores e preocupações de pai, num cotidiano de muitas ondas, sem aviso prévio e sem trégua.

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domingo, 12 de abril de 2009

Sem espelho

Dário Borim Jr dborim@umassd.edu 

 Acabo de reler uma das mais pungentes narrativas que já encontrei nos últimos anos: "Narciso em férias”. É um conto autobiográfico de Caetano Veloso, uma jóia rara "escondida" em forma de capítulo de livro nas páginas centrais de seu enorme volume, Verdade tropical (Companhia das Letras, 1997). 

Lá se vê maravilhosamente a questão do "eu" (ou ego) em relação ao "corpo" do indivíduo. O "eu" está dentro ou fora do corpo? É o corpo parte do nosso próprio "eu"? Mas e se o corpo “desaparecer”, isto é, e se você deixar de percebê-lo? Nós, nessas circunstâncias, morremos? Enlouquecemos? E se, profundamente deprimido, você não conseguir nem chorar? E se não conseguir se onanizar? E se o corpo secar os dois fluidos humanos mais intimamente ligados à emoção, os do choro e do gozo, que não têm nada ou têm muito pouco em comum com os outros líquidos e excreções humanos, como a urina, a saliva, o suor, as fezes, as acnes, e as melecas — tudo isso é sinal barato de vida. 

Os grandes baratos do corpo são, de fato, os outros líquidos (um deles nem tão líquido): os líquidos do choro e do orgasmo. Mas, e se eles sumiram de você, e se você se sentir totalmente seco? E se você não se lembrar — como não se lembrou, Caetano — de ter escovado os dentes em dois meses? Este questionamento está todo lá, em “Narciso em férias”, um texto orientado por uma múltipla perspectiva diante das lembranças e dos traumas de uma experiência-limite: os dois meses em que Caetano Veloso passou em diferentes celas da Ditadura Militar, no Rio de Janeiro, entre dezembro de 1968 e fevereiro de 1969. 

A voz que narra e reflete sobre aquela desumana desventura legitimada pelo AI-5 se constrói ao mesmo tempo filosófica, biológica, psicológica, semiótica, e acima de tudo, confessional, questionadora de preconceitos e da distância entre o "eu" vivido, o "eu" que escreve, e o "eu" que lê aquele texto. Sob a gentil custódia da Polícia do Exército, o cantor-compositor baiano permaneceu detido durante duas semanas em uma cela solitária tão minúscula que ele era capaz de pôr as costas contra uma parede e tocar a outra em frente com seus pés. O silêncio e a solidão, o medo e a humilhação, a incompreensão do que se passava e do que estaria por vir — aquilo tudo lhe causava um processo de estranhamento que o levou a um tipo de loucura temporária. Por ora desacreditava em si mesmo (já que seu corpo se afastava de sua percepção) e em sua existência (pois a própria vida se tornara absurda, insípida, surda e muda). 

No entanto, pondera o narrador, “que benção que seria não apenas poder ser arrebatado pela tristeza ou pelo prazer mas também — e talvez principalmente — ter a experiência física das lágrimas ou de uma ejaculação!” (362). Restava ao presidiário político de apenas 26 anos uma forma de esperança. Parecia-lhe que poderia ser “salvo do horror a que fora submetido” se sentisse jorrar dele esses líquidos “que parecem materializar-se a partir de uma intensificação momentânea mas demasiada da vida do espírito” (362). Para o memorialista, o pranto e a ejaculação são “vivenciados como um transbordamento da alma quando esta a um tempo se adensa e se expande, paradoxo interdito à matéria” (362). “Narciso em férias” confirma certa percepção da condição humana explicada pelo psicanalista Jacques Lacan: o ego é basicamente um objeto, uma projeção artificial de subjetividade que se apóia nas imagens visuais que o indivíduo confronta no dia a dia, e nosso corpo faz parte desse cenário ao sentirmos que tem vida sob a pele e ao olharmos para ele diretamente ou através de um espelho. 

Além disso, nosso ego é intrinsecamente dependente do olhar de outras pessoas sobre nós: elas criam importantíssimas imagens para aquele mesmo cenário que compõe quem nós somos. Na companhia de outras pessoas vemos nos seus olhares um jogo de espelhos que nos reflete. Se esses olhares não existirem mais, e nem sequer existir um espelho onde nos vejamos sem intermediação alheia, tendemos a perder a auto-imagem e o auto-respeito. Se aquela rotina de nunca ver ninguém era um fato que contribuía decisivamente para Caetano adquirir uma impressão de perda do “eu”, o escritor destaca outra limitação. Ela se perpetuou por todo o período de prisão, intensificando tal impressão: “não ter acesso a espelhos” (359). Era como se o corpo lhe tivesse sido abandonado de verdade, e a falta de um espelho condenasse Narciso (ele, Caetano, metaforicamente) à morte, a uma morte em horror e suspense, em meio a uma esquisita mescla de descaso e desespero. O narrador explica: “comecei a procurar por mim mesmo na pessoa que dormia e acordava no chão daquele lugar odioso cuja imutabilidade impunha-se como prova de que não havia — nunca houvera — outros lugares” (359). 

A letargia se tornara uma forma de fuga para Caetano naquelas longas semanas no cárcere, mas dela ele se afastava em certos dias de visita. Era quando surgiam no ar a voz e o choro de sua esposa, Andréa (Dedé) Gadelha, com quem estava casado há pouco mais de um ano, tentando obter o direito a uma conversa com o marido. Ouvir-lhe a voz sem poder ver-lhe o rosto, tocar-lhe a pele ou lhe dar resposta era para ele “uma experiência dilacerante” (377). Sem ser capaz de tirá-lo totalmente do estado de loucura a que fora levado, afirma Caetano, “aquela voz, vinda do passado remoto e inconvincente” que ele guardava na memória, ainda tinha o poder de enternecê-lo (377). 

Era um limitado retorno do ego despedaçado, que deixava sua tocaia. O enternecimento desequilibrava a letargia, onde normalmente se escondia. A cada tentativa de visita de Dedé, Caetano temporariamente se ressuscitava, sentindo o “ímpeto de abraçar e beijar, cheio de gratidão” aquela mulher que era a “fonte de todo o bem possível” (377). Mal sabia ele que ela estava tão próxima, apenas uma parede separando-os, e que ela jamais desistiria de pleitear até lhe conseguir melhores condições de vida naquela prisão, inclusive sua providencial saída da cela solitária. Andréa Gadelha salvou assim, por um triz, o corpo, a alma e a mente de quem se tornaria um dos maiores artistas e pensadores que o Brasil já viu.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Vinicius



Dário Borim Jr
dborim@umassd.edu



Vinicius é um documentário que muito me impressiona pela sua formosura poética. Também me faz questionar o papel das paixões românticas e do amor desenfreado pela vida. Para aqueles que ainda não o viram, digo e suplico: que o vejam o quanto antes. Aliás, quem já o viu somente uma vez deveria assistir-lhe de novo. Suas lições precisam ser reforçadas. Dirigido por Miguel Faria Jr e lançado em 2005, o filme se abre com as palavras saudosas do Braguinha. Era assim que Vinicius chamava o queridíssimo cronista Rubem Braga, seu grande amigo. Naquelas cenas iniciais do documentário Rubem Braga se dirige diretamente ao amigo morto acerca da chegada da primeira primavera numa Ipanema sem Vinicius de Moraes. Logo a seguir, surge uma vista aérea daquela praia encantada e ouve-se uma belíssima interpretação de “Se todos fossem iguais a você”, a pioneira canção composta pela genial dupla Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Quem canta é o paulista Renato Braz.


Cantor, compositor, diplomata, dramaturgo, letrista e poeta, Vinicius de Moraes (1913-1980) foi um descendente direto na linha de Xangô (saravá!), o orixá deus-rei do trovão, o justiceiro filho de Iemanjá. Educado nas melhores escolas do Rio de Janeiro no início do século XX, ele posteriormente estudou literatura na Universidade de Oxford, onde se inteirou, mais rigorosamente, da lírica inglesa. Depois de ingressar no mundo formal, prestigioso e bem pago da diplomacia, e de publicar alguns volumes de poesia bastante tradicional, esse carioca, para si mesmo “o branco mais preto do Brasil”, descobriu que o prazer maior da sua vida profissional tinha outro endereço: o domínio da música popular. Passou a escrever poemas que se encaixavam em melodias elaboradas por grandes nomes, tais como Carlos Lyra e Baden Powell. Também cedeu sonetos e outras criações poéticas para compositores que lhes cobrissem de sons e harmonias, como Tom Jobim e Toquinho.


Diga-se, de passagem, que escrever letra de música não é para qualquer um não. Tem que ser poeta e um pouquinho mais. Tem que ter ouvido de músico e conhecimento instintivo ou adquirido de nuances musicais. No fundo, Vinicius foi um grande poeta e um grande compositor. Sem parceria nenhuma, escreveu maravilhas como “Valsa de Eurídice” e “Pela luz dos olhos teus”. Vale a pena recordar alguns versos: “Quando a luz dos olhos meus / E a luz dos olhos teus / Resolvem se encontrar / Ai que bom que isso é meu Deus / Que frio que me dá o encontro desse olhar”. Porém, para se atingir a mais completa magia, é preciso suscitar maior sedução por meio de um falso desapego. Por isso o poeta pondera: “Mas se a luz dos olhos teus / Resiste aos olhos meus só p'ra me provocar / Meu amor, juro por Deus, me sinto incendiar”.


Pode-se inferir uma pequena dose de humor nesse “incêndio” de amor, e a vida de Vinicius realmente se desenvolveu em torno de uma série de fogueiras da paixão. Casou-se nove vezes, por exemplo. Suas esposas podiam ser de idades próximas às suas em diversas fases da vida, ou podiam ser 40 e poucos anos mais jovens. Naquela pioneira canção escrita com Tom o poeta proclamava, “Vai tua vida, teu caminho é de paz e amor / A tua vida é uma linda canção de amor / Abre os teus braços e canta a última esperança / A esperança divina de amar em paz”. A vida de Vinicius que nos mostram os roteiristas Miguel Faria Jr e Diana Vasconcelos foi uma constante busca por amar, sempre amar. A paz, porém, nunca lhe foi duradoura. A cada vez que sua paixão se esmorecia, ele sofria, e sofria muito. Como é de se imaginar, também fazia os outros sofrerem: a esposa do momento, os filhos, os parentes, e certamente alguns amigos.


O turbilhão amoroso de Vinicius não tinha fim e por isso o poeta foi acusado de depravação e outras “imoralidades”. Ele certamente viveu como muitos poetas gostariam de viver. Pouquíssimos deles o fizeram, entretanto, como bem observa Carlos Drummond de Andrade em certo momento do filme. Vinicius foi leal a si mesmo, à sua necessidade de sempre estar apaixonado, para que junto a um copo de uísque e aos amigos do peito, sua vida tivesse sentido. Longe deles, isto é, da paixão sem limites, daquele a que chamou de “cachorro engarrafado”, ou dos parceiros da música e da poesia, Vinicius de Moraes era um homem triste. Porém, bastava um de esses insumos dar força a seu vaso de flores, que seu rosto era só sorrisos e sua mão escrevia preciosidades do amor demais.


“Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”, escreveu Guimarães Rosa, mas poderia ter sido Vinicius. Por seu amor à vida e à alegria e por seus extasiados e frustrados amores lhe devemos a graça de sua obra, um elogio à loucura, se loucura for viver intensamente a vida, doa a quem doer, inclusive ao louco amante. O próprio Vinicius resume sua sina em “Como dizia o poeta”, de parceria com Toquinho: “Quem já passou por essa vida e não viveu / Pode ser mais, mas sabe menos do que eu / Porque a vida só se dá pra quem se deu / Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu”.

sábado, 28 de fevereiro de 2009

Do berimbau baiano ao trombone francês






Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu

Pois é, mais um Carnaval se foi. O que nos resta agora é esperar pela Semana Santa. Que nada: isso é brincadeira de expatriado que (sobre) vive onde a festa de Momo é coisa de minoria étnica, e a Sexta-Feira da Paixão não tem bacalhoada no almoço, porque todos seguem suas rotinas nas escolas, campos e construções, só parafrasear o quase-esquecido Geraldo Vandré.

Quem me conhece de velhos tempos convividos ao sul da linha do equador sabe: o Darinho é como o tio Delmo e a prima Lília – ele adora Carnaval! Então, a cada ano, quando chega esse feriado, as circunstâncias me levam a repensar e reavaliar os motivos pelos quais não estou aí, não moro no Brasil, nem desfrutei mais que um único Carnaval tropical nos últimos nove anos.

A crônica de hoje, porém, não vai explicar minha opção de amarrar minha égua em curral estrangeiro. Sem nostalgia, de fato ela vai ecoar lembranças muito recentes, as deste Carnaval 2009, passado aqui mesmo, na costa sudeste do estado de Massachusetts.

Sei que muitos brasileiros não gostam de Carnaval, da mesma maneira que existem franceses que não bebem vinho e italianos que não comem pizza. Bem, para esses compatriotas, não tenho muito a dizer senão, “tudo bem, meus caros—assim sobra mais cachaça pra galera do samba e do maracatu”.

Então, sexta-feira chegou e o programa noturno não foi bater pernas pelos botecos da Praça Oswaldo Costa, digo, das ruas congeladas de South Dartmouth. A atração da noite era um espetáculo de dança moderna cuja coreografia é inspirada nos movimentos da capoeira e nas danças rituais do Candomblé e alguns estilos musicais brasileiros, como o samba, o afoxé e o baião.

A trupe, chamada Dance Brazil, apresenta-se em teatros de todo o mundo, mas é exclusivamente tupiniquim. Dirigida pelo carioca Jelon Vieira, conta com uns 20 bailarinos e bailarinas de Goiás, Minas, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo, além da Bahia, de onde vem a maioria desses fabulosos artistas-atletas, ou artesões dos ares. Eles são como corpos-aviões de borracha, ou espermatozóides de carne e osso. Com muita graça, restituem em nós, brasileiros, um enorme orgulho das nossas heranças culturais ao som de canções interpretadas, ao vivo, por quatro instrumentistas, com seus violões, berimbaus de vários tipos, e bumbos baianos do tamanho de uma lua cheia, com mais de um metro de diâmetro.

O Carnaval no exterior pode oferecer outras surpresas, como o Mardi Gras (Terça-Feira Gorda, em francês), de que pude aproveitar aqui mesmo, em Massachusetts. Dezenove anos atrás curti pela primeira vez essa tradição francesa, uma irmã do nosso Carnaval. Foi exatamente quando participei de um congresso de literatura numa universidade em Baton Rouge (vizinha da deliciosa, charmosa e matreira cidade costeira de Nova Orleãs, no estado sulista de Louisiana). Velhos tempos: eu dava minha primeira palestra acadêmica na vida e ganhava viagem de graça à terra do jazz. Naqueles dias de festa, que a todo ano coincidem com as datas da folia no Brasil, assisti aos desfiles de carros alegóricos lotados de bêbados e fantasiados pelas ruas Canal e Bourbon, pontos mais agitados da cidade.

Encontrava-me extasiado ao ver algo tão festivo e parecido com nossas tradições em terras tão distantes e destoantes do nosso país. Na época, informei-me dos grandes bailes de máscara realizados na cidade desde 1718. Outras novidades, entretanto, eram muito mais óbvias: o uso de carruagens puxadas a cavalos e apresentações de bandas escolares, militares e de bombeiros no meio da confusão. Havia também o antigo hábito, surgido em 1870, de se jogar colares coloridos das varandas dos sobrados coloniais rumo aos foliões que passavam dançando e bebericando rua abaixo.

Agora, em 2009, lá estava eu numa galeria de arte situada no coração histórico da cidade de New Bedford (a 15 minutos da minha casa, em South Dartmouth). Num ambiente um pouco estranho ao contexto “gélido” da Nova Inglaterra, normalmente enrustida e quieta em pleno rigor de inverno, dançávamos animados ao som de dixieland e ragtime. Estas são formas de jazz bem sincopado e salpicado de extravagâncias melódicas típicas de Nova Orleãs e nela imortalizadas pela prata da casa, o genial Louis Armstrong. No Mardi Gras de New Bedford uns 10 músicos locais tocavam trombone, saxofone, gaita, trompete, violão, alguns tambores e outras percussões. Interpretavam múltiplos estilos do Sul, como o blues, o cajun, e o zydeco, e outros ritmos alegres de origem afro-americana, francesa, caribenha, ou franco-canadense.

Com toda essa dança exuberante e energia musical, do berimbau baiano ao trombone francês, o coração de um paraguaçuense na terra do Tio Sam bateu em harmonia com os astros. Ficou em paz com o destino que lhe faz saudoso da terra natal, mas, do mesmo modo, admirador das alegrias e dos remelexos de outros carnavais.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Pelo telefone do século XXI



Dário Borim Jr.

dborim@umassd.edu

Em 1916 o telefone era uma tremenda novidade, uma espécie de “coisa do outro mundo”. Quase um século atrás, a maioria da população nem podia sonhar com tal luxo. Passavam-se os anos da Belle Époque e da chamada Era de Ouro de enormes invenções humanas: o Titanic, o automóvel, o avião, etc. O telefone tornou-se logo símbolo de status e, muito depois, uma imprescindível necessidade de todos—pobres ou ricos. Porém, até os anos 90, o serviço telefônico custou o olho da cara no Brasil. Lembro-me de que uma linha chegou a valer o equivalente a uns 4 mil reais. Em nossas peregrinações por múltiplas repúblicas em Belo Horizonte nos anos 70 e 80 sempre tivemos que alugar nossas linhas e ir ao centro da cidade todo mês para saldar as contas. Ainda por cima, era preciso contar com almas generosas, como a do saudoso Ti-Tom (Gladstone Prado), para servirem de avalistas.

O governo militar, como se sabe, controlava o acesso ao serviço restringindo a competitividade e assim mantendo os preços fora de lógica e fora de alcance à maioria dos brasileiros. Então João Figueiredo desceu do cavalo e… salve Fernando Henrique Cardoso, e afasta de mim aquele “cale-se” chamado Telebrás! Que coisa horrível, não? Mas é assim mesmo que a modernidade se instaurou no Brasil: lenta e injustamente e... cheia de disparates.

Hoje o telefone celular (o “telemóvel” para os portugueses e africanos) é um dos instrumentos eletro-eletrônicos mais usados em todo o mundo. Em nosso país deve haver mais telefones celulares do que bíblias católicas ou protestantes. São milhões e milhões deles, e por isso temos um sério motivo para pensar que, como os povos de outros países, também vivemos numa forma de pós-modernidade globalizada.

Antes de falar desses nossos dias de internet, i-phone, i-pod, e GPS, eu queria recordar um samba histórico e controvertido por natureza, composição e gravação: “Pelo telefone”. Para lembrar-lhes da canção, aqui estão dois de seus famosos versos: “O chefe da polícia pelo telefone manda me avisar / Que na Carioca tem uma roleta para se jogar”.

Em uma de suas passagens mais engraçadas a canção se auto denomina “samba”: “Porque este samba, sinhô sinhô / É de arrepiar, sinhô sinhô / Põe a perna bamba sinhô sinhô / Mas faz gozar”. A questão é que “Pelo telefone” foi escrito em 1916 e lançado em 1917, quando a tradição do samba ainda não tinha sido estabelecida. Apesar de muitos historiadores registrarem essa canção de Ernesto Joaquim Maria dos Santos (mais conhecido como Donga) e Mauro de Almeida como se tivesse sido o primeiro samba gravado, na verdade “Pelo telefone” não foi o tal, porque essa canção não é samba. É, sim, um maxixe que fez enorme sucesso no carnaval por várias décadas.

A controvérsia, de fato, é anterior a essa questão de gênero musical, que aliás, ficou mais ou menos resolvida ao se concordar que “O telefone” seja um samba-maxixe. Segundo alguns pesquisadores, Donga foi muito “espertinho” e registrou o “samba” como se fosse somente seu. A escrita teria sido coletiva, entretanto, numa roda de cerveja e cachaça na casa da Tia Ciata, famoso reduto de boêmios na primeira capital da República.

O telefone enquanto “personagem” na canção de Donga (e companheiros) proporciona acesso a informações estratégicas ao malandro sobre roletas (provavelmente ilegais) no centro da cidade. Curiosamente a dica vem de um chefe de polícia. No poema-canção o telefone também serve para uma conversa um pouco estranha entre o malandro que canta e um dos seus rivais, que ouve uma espécie de praga do cantor-poeta: “Tomara que tu apanhes / Não tornes a fazer isso, / Tirar amores dos outros / Depois fazer seu feitiço”.

O uso do telefone no Brasil ainda é uma questão às vezes associada à ilegalidade e marginalidade, como se percebe nas discussões da mídia sobre o controle dos celulares de traficantes em liberdade ou no cárcere. Porém, a sociologia desse instrumento de comunicação no Brasil tem muitos outros aspectos. Recentemente li uma entrevista do antropólogo Roberto DaMatta a minha colega de profissão, Luci Moreira, em que o carioca discutia os efeitos da pós-modernidade e da globalização. No Brasil, afirma DaMatta, o telefone celular é muito usado para falar com a família e amigos. Sua difusão, argumenta o professor, “tem a ver com a sua capacidade de ampliar um valor tradicional, no caso, as velhas relações familiares e de amizade da sociedade brasileira”.

Sem discordar do grande antropólogo, desconfio que algo mais esteja paulatinamente acontecendo no Brasil de modo semelhante ao que se vê com mais frequência aqui nos Estados Unidos. O telefone hoje é um computador. Como tal, ele nos oferece muito mais que essa comunicação familiar. O meu telefone LG, por exemplo, me auxilia a dirigir, literalmente dizendo onde estou, onde devo virar, onde há engarrafamentos, postos de gasolina, restaurantes, farmácias, hospitais, e tal—tudo pelo sistema GPS, via satélite.

O telefone do século XXI também afasta as pessoas, entretanto. Dão-lhe entretenimento privado, particular e exclusivo. Também oferecem amizades fictícias e amores levianos, alguns deles perigosos ou abusivos. Ademais, observa-se como que adolescentes se sentem mais independentes e agem com muito menos interferência dos pais. Antigamente, com apenas um telefone em casa, pai e mãe tinham uma idéia de quem telefonava para seus filhos. Sabia-se até mais que isso, por se ouvir parte da conversa na mesma sala ou copa onde se encontrava o aparelho. Hoje, os pais têm pouquíssima consciência de quem telefona aos jovens da casa. Estes conversam, fazem planos, e muitas vezes os pais são os últimos a saber do que os filhos e amigos já combinaram de fazer.

Esse enorme acesso à comunicação também permite que o jovem viajando com os pais se mantenha em contato com os amigos que deixou na sua cidade. Ele então não se desprende totalmente do que poderia estar fazendo se não estivesse acompanhando os pais, e lá vem conflito, um conflito muito maior do que o que se conhecia no passado. Gostariam de estar em vários lugares a um só instante, o que (ainda?) é impossível. Já são capazes, porém, de fazer mil coisas ao mesmo tempo: assistir a um filme, ouvir música, escrever e enviar mensagens eletrônicas, comer chips e ainda falar com um amigo ao telefone.

Este mundo pós-moderno tem muitas maravilhas, sim, mas causa muitos danos, também. É lamentável a noção de “direito” que muitas crianças e adolescentes vêm adquirindo. São jovens que crescem pensando que filmes, canções, jogos eletrônicos e conversas constantes com os amigos fazem parte de um mundo de privilégios com os quais nasceram e que tudo o mais nas suas vidas deverá ser assim: fácil, rápido, eletrizante, colorido e digital, como é a vida pelo telefone no século XXI. Não sei não, mas desconfio que muita decepção também virá em forma de correio eletrônico, por um i-phone, i-pod, ou coisa parecida. Um dia a ficha vai cair e muitos jovens vão saber que sem trabalho e sem luta não se chega a lugar algum, pois nada cai do céu. Apesar de todo o avanço da tecnologia, ainda mais importante são a fé em quem realmente somos e a determinação para se trabalhar e construir uma vida concreta, bem menos cintilante, mas bem mais firme, que a etérea e fantasiosa realidade virtual online, desse outro mundo de alta tecnologia—instantâneo e falsamente sem limites.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Enchentes, falências e batucadas

Enchentes, falências e batucadas

 

Dário Borim Jr. 

dborim@umassd.edu

Em um de seus mais engraçados e lendários sambas, “E o mundo não se acabou”, o irreverente Assis Valente (1911-1958) ironiza o medo do povo diante da suposta destruição do mundo. Carmen Miranda foi quem primeiro gravou essa canção em 1938, portanto há pouco mais de setenta anos. Nas mentes de milhões de pessoas, a aflição tinha surgido por conta da aproximação e possível colisão do cometa Halley com o planeta Terra. Assim escreve o cantor-compositor nascido sobre as areias quentes de uma praia baiana: “Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar / Por causa disto a minha gente lá em casa começou a rezar / Até disseram que o sol ia nascer antes da madrugada / Por causa disto nesta noite lá no morro não se fez batucada”.

Nesse quase incrível fim de ano, não tem havido muita batucada na Terra do Tio Sam. Uma nova desgraça em pleno mês de setembro começou a furar e queimar os tesouros dos cofres eletrônicos de Wall Street – exatamente sete anos depois dos covardes ataques terroristas matarem milhares de inocentes de muitas nacionalidades e etnias. Desta vez houve uma implosão de bombas globalizadas e pós-modernas que vêm atingindo as bolsas de valores do mundo inteiro. Dão término a empregos e à paz de trabalhadores que nada têm com o que está acontecendo, a não ser as funções de “operários alienados” e consumidores de bens manufaturados.

Na verdade, a melhor metáfora para uma das causas primordiais desse pandemônio transnacional talvez seja a da bolha. Antes de arrebentar a bolha do mercado imobiliário foi crescendo e fazendo crescer a especulação financeira em plena era do dinheiro virtual, dinheiro que não existe enquanto cédula e que não corresponde às antigas barras de ouro. É dinheiro que percorre milhões de quilômetros em forma de bits informáticos por meio de cabos, internet sem fio e telas de computador antes de fabricar poucos bilionários e muitos subempregados ou desempregados. É dinheiro embalado em forma de títulos financeiros de investimento em ações virtuais de compra e venda daquilo que não existe fora dos circuitos eletrônicos de comércio.

Sem ligação com os homens ricos e poderosos, a voz (provavelmente de mulher) inventada por Assis Valente narra sua própria história fictícia, dramatizando suas reações nem um pouco desatinadas àquele anúncio apocalíptico: ela quer se divertir como nunca antes. Ela, na verdade, não quer perder uma oportunidade sequer nesse planeta antes que ele se torne um gigante cemitério: “Acreditei nessa conversa mole / Pensei que o mundo ia se acabar / E fui tratando de me despedir / E sem demora fui tratando de aproveitar / Beijei a boca de quem não devia / Peguei na mão de quem não conhecia / Dancei um samba em traje de maiô / E o tal do mundo não se acabou”.

Quem bom seria que se por somente uns dias as pessoas pudessem pôr de lado seu medo e insatisfação diante desse mundo explosivo no Iraque; sangrento na Índia; nuclear no Paquistão; retirante, doente e esfomeado na África; alagado em Santa Catarina, e falido nos Estados Unidos! Por outro lado, vale também refletir sobre plausíveis reações diante de novos rumores apocalípticos. Seriam tantos os focos de apreensão no mundo atual que, de tão preponderantes, já não há nem mais espaço nas mentes para se temer o fim do mundo?

A personagem de Assis Valente não se abateu. Muito pelo contrário: “Peguei um gajo com quem não me dava / E perdoei a sua ingratidão / E festejando o acontecimento / Gastei com ele mais de quinhentão.” Isso foi antes de a persona saber do engano geral do povo, do falso final da vida na Terra. Era tarde. Já tinha jogado fora muito dinheiro e posto de lado qualquer inibição: “Agora soube que o gajo anda / Dizendo coisa que não se passou / Ih, vai ter barulho e vai ter confusão / Porque o mundo não se acabou”.

A questão é que mesmo diante dos barrancos caindo no sul do Brasil e do número de bancarrotas subindo a cada momento nos Estados Unidos, não se teme o fim do mundo. Há, porém, grande receio de não podermos nem honrar nossas contas nem oferecer a nossos queridos o conforto que merecem. Apesar disso, sou contra o que se tem feito neste país, os Estados Unidos: o cancelamento de milhares de festas e recepções de fim de ano. O mundo não vai se acabar (e ninguém fala disso por enquanto), mas, quem sabe, uma boa batucada (ou sessão jazzística, como queiram) não seja a saída para essa dor geral diante dos barrancos deslizantes e das bancarrotas avassaladoras? A vida tem que continuar, e deixem o povo falar o que quiser. O que importa é valorizar o que temos – fé na vida e potencial para nos adaptarmos a novas vidas, se possível, ao som de uma cuíca de chorar intenso ou de um saxofone cantador de galo. Como diz Manoel Bandeira, “A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.”


terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Esquiar ou nao esquiar?




Dário Borim Jr.


dborim@umassd.edu



A pergunta inscrita no título desta crônica é superficialmente filosófica, no que se parece vagamente com a dúvida cruel do personagem shakespeariano Hamlet: “Ser ou não ser, eis a questão”. Minha resposta hoje à noite, num quarto de hotel com decoração bem britânica, na cidadezinha de Woodstock, estado de New Hampshire, é: “Não esquiar”. Minha posição é menos filosófica do que pragmática. Poderia ser diferente, pois me encontro aqui junto à bela estação de esqui chamada Loon Mountain para acompanhar meu filho Zach, de 13 anos. Enquanto que ele é um esquiador nato (pois nasceu na gelada Minnesota), eu não me iludo: com quase 50 anos de idade e quase cem quilos de peso, para mim não é hora de brincar com fogo—ou com neve e gelo, pra ser mais preciso.

Minha necessidade de perder peso é evidente. Além disso, a chance de praticar um esporte tão gostoso em lugar tão esplendoroso nas Montanhas Brancas da Nova Inglaterra é tentadora. Entretanto, tenho medo de me machucar por estar distante dos esquis há muitos anos, por já não ser mais jovem e, principalmente, por estar tão acentuadamente fora de forma. Advertências em tom crítico por parte do meu médico agora me ecoam na mente: “Sr. Dário Borim, o senhor é um bem sucedido professor universitário que precisa ter disciplina em outras áreas além da literatura e da música: comer menos e exercitar mais.” Caramba, tem razão o Dr. Altschuller, um cardiologista russo formado em Harvard. Só que não vai ser hoje que vou me empenhar, o que poderia me ajudar perder uns quilinhos e, quem sabe, aumentar minhas chances de viver uma vida mais longa e mais saudável.

Quando morei no oeste montanhoso do país, no Wyoming, as estações de esqui de lá e do estado vizinho, o Colorado, me encantavam. Eu admirava o alto astral das pessoas—sempre a sorrir e sempre a mostrar sua satisfação em percorrer trilhas íngremes apesar do vento frio. Pra ser honesto, devo dizer que este esquiador tropical naquela época de vez em quando caía dos esquis e até daquelas cadeirinhas dos teleféricos que nos levavam aos picos dos morros. Entretanto, com entusiasmo e determinação cheguei de fato a atingir o nível intermediário de habilidade, o que me proporcionava oportunidades inesquecíveis de subir até pontos bastante altos das Montanhas Rochosas.

A vista do cume da montanha era memorável: incluía lagos azul-turquesa, pinheiros de um verde forte e coeso, rochas e chapadões em variados tons acinzentados, e o distinto contraste entre o branco da neve e o azul do céu. Contribuindo para esse festival de cores naturais ainda havia o efeito espetacular das roupas e gorros coloridos dos esquiadores, além do recorrente reflexo de luz solar que advinha dos próprios esquis e hastes de aço. Tudo valia a pena ver lá de cima, desde os momentos que antecediam à descida paulatina e cuidadosa, em curva e em ziguezague, até o fim da trilhas sobre a encosta do morro acobertado de neve fofa e reluzente.

Pois é, os esportes são importantíssimos em todas as fases da vida. Depois de certa idade, acredito eu, eles continuam importantes, mas têm que ser dosados e, acima de tudo, levados a sério como fatores de risco. Nossos corpos já não são mais os mesmos, e seria um erro sobre-estimar nossas capacidades físicas somente para que pudéssemos manter o orgulho intacto. Já perdi dois amigos brasileiros, na faixa dos quarenta e poucos anos de idade, que me fizeram pensar nessa questão. Ambos faleceram em função de certo abuso nos esportes: um deles teve um acidente fatal durante uma partida de futebol de salão, em Minneapolis; o outro partiu desse mundo após uma parada cardíaca causada por um extenuante passeio ciclístico em Belo Horizonte.

Amanhã, ao pé da serra, estarei dentro de uma sala aquecida e fechada, mas mesmo assim exposta, por meio de paredes de vidro, às cores estáticas e em movimento da concorrida estação de esqui Loon Mountain. Vai me acompanhar este computador portátil, e nele poderei trabalhar ou me comunicar com amigos via internet. Terei saudade dos velhos tempos e um pouco de vergonha por não poder encarar as corridas morro abaixo com meu filho. Por outro lado, vou desfrutar da paz de pensar que não correrei qualquer risco de quebrar uma perna ou sofrer um ataque cardíaco. Que esse gesto de precaução seja seguido de mais disciplina, como quer o meu médico, e assim, quem sabe, poderei encarar as trilhas de neve na próxima estação.

Mirem-se nas cenas de Atenas

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