A colina da Acrópole desde o Hostel Safestay (2025)
Ensaios e crônicas em português ou inglês sobre artes, literatura, viagens, e o cotidiano na Nova Inglaterra. // Personal essays and crônicas in Portuguese or English about art, literature, travel & day-to-day in New England.
A colina da Acrópole desde o Hostel Safestay (2025)
Prazeres, Riscos e Danos:
Meu Corpo Daria Mais que Uma Crônica
Aos quase 65 anos, eu sou um homem velho demais para ainda pensar que sou jovem, e jovem demais para já me sentir totalmente “idoso”. Sem qualquer pretensão de me ver entre os famosos, eu componho essa abertura pensando em um memorável romance de 1864: Notas do Subsolo, de um autor clássico, um favorito de minha adolescência: Fiódor Dostoiévski. Pobre e deprimido, o narrador anônimo de 40 anos mora na periferia de São Petersburgo. Está amargurado e ressentido, mas podemos perceber o humor irônico e satírico do narrador a partir do início da narrativa. Declara: “Sou um homem doente.... Sou um homem mau. Sou um homem nada atraente. Acho que tenho um problema no fígado: ele dói. Mas não entendo patavina da minha doença, nem sei o quê na verdade me machuca por dentro”. O narrador de Dostoiévski não vai economizar cinismo e vingança nos seus argumentos existencialistas. Faz crítica ferrenha às vaidades e contradições da sociedade progressivamente moderna na Rússia daqueles meados do século XIX, mas sobre si mesmo acha natural e necessário o prevalente declínio de suas capacidades físicas e mentais.
Também desconcertantes conflitos interiores em ambos os planos, corpóreo e emocional – além de uma dramatização dos podres de uma sociedade machista e homofóbica no Brasil dos anos 1970-80 – são os temas centrais de outra obra literária de conteúdo e título que me inspiram a escrever esta crônica. Quatro décadas atrás, isto é, 120 anos após o lançamento de Notas do Subsolo, o escritor/ativista/político mineiro Herbert Daniel publicava Meu Corpo Daria um Romance, obra que estudei na minha tese de doutorado sobre autobiografias, defendida em março de 1997 na Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos.
Uma seção do livro de Daniel é dividida em 11 segmentos. Cada um toma o nome de uma parte ou sistema do corpo humano. Cada segmento refere-se a um minuto de uma experiência traumática de onze minutos pela qual passou o narrador-protagonista no Rio de Janeiro. Ele é humilhado e ofendido por um grupo de jovens num ônibus em Copacabana. Dois deles, membros/simpatizantes do Partido dos Trabalhadores, usam uma camiseta que honra a SOLIDARNOSC, o partido polonês SOLIDARIEDADE. Além de impelir o narrador-protagonista a refletir e relatar a complexa evolução da sua própria sexualidade não convencional, o incidente no ônibus também o leva a desenvolver uma proposição teórica sobre o corpo humano como ponto de tensão psicológica e política.
Outra obra de destaque no cenário da literatura memorialista brasileira do mesmo período também é voltada para os martírios do corpo. Feliz Ano Velho, do estudante de engenharia florestal e guitarrista Marcelo Rubens Paiva, foi lançado em 1982 com imediato e estrondoso sucesso de vendas. De tom quase sempre informal e humorístico, apesar da trama se desdobrar fatídica e emotiva, o livro foi logo adaptado para o cinema, e também para o teatro (várias vezes, aliás). A composição do texto memorialista ao mesmo tempo relata e se segue logo ao gravíssimo acidente que o escritor sofreu aos 20 anos, em dezembro de 1979.
Sem perceber, e, certamente sem as melhores condições para avaliar os riscos, o universitário (da mesma idade que eu) pulou de cabeça, bêbado, de uma pedra, mas as águas eram muito rasas, de apenas meio-metro de profundidade. Bateu, violentamente, o pescoço no fundo do lago. Perto da cidade de Campinas, ali Paiva e vários amigos bebiam muito e fumavam muita maconha em plena alegria de uma confraternização de fim de ano escolar. Foi também o fim da integridade física do autor em meio a um estilo de vida típico da época, as décadas de 1960 e 1990: extravagância e indulgência sem limites nos prazeres do sexo, drogas e rock’n’roll. A partir de então Paiva ficaria para sempre paralítico por conta de uma vértebra quebrada, a quinta cervical comprimindo a medula.
Quando estava debaixo d’água, tentando
boiar para que amigos o salvassem, escreve Paiva, “não mexia os braços nem as
pernas, somente via a água barrenta e ouvia: biiiiiin” (9). Pensou na morte,
com estranhas lucidez e atividade cognitiva: “a cabeça estava a mil por hora”
(9). Apesar de não ver mais como o dono do seu corpo, pois já não mexia
qualquer membro abaixo do pescoço e nem tinha qualquer dor, pensou: “Como é que
vai ser? Vou engolir muita água? Será que vai vir uma caveira com uma foice na
mão?” (9). A morte de fato tinha surgido tragicamente na sua família várias
vezes nos dois anos anteriores. Além de três tios, dois avós e uma prima, ele
também perdera seu pai, Rubens Beyrodt Paiva, um deputado federal pelo Partido Trabalhista
Brasileiro preso, torturado e executado em 1971 pela polícia da ditadura
militar.
Ao concluir seu livro de estreia, em dezembro de 1980 (portanto, um ano após o acidente em Campinas), Paiva compreende que os anos por vir eram “uma quantidade infinita de incertezas” (231). Cadeirante, questiona como vai estar fisicamente no futuro e como vai ganhar a vida. Uma coisa afirma categoricamente: não está “a fim de passar nenhuma lição” e nem quer que as pessoas o encarem como “um rapaz que apesar de tudo transmite muita força”, pois não se faz de “modelo pra nada”. De modo humilde, mas equivocado, ele próprio talvez não tenha aprendido uma dificílima lição para a vasta maioria dos jovens: nossas escolhas têm consequências e essas podem muito bem ser seriamente adversas e mudar o rumo de nossa existência, ou mesmo terminá-la, numa fração de segundo.
Paiva declara que não é herói, que é apenas uma “vítima do destino, dentre milhões de destinos que nós não escolhemos. Aconteceu comigo. Injustamente, mas aconteceu” (231). Acredito que injusta foi a morte de seu pai, que foi punido tão somente pelas suas ideias políticas sob as garras da ditadura militar, uma enorme perda para um rapazinho de 12 anos que posteriormente pode estar relacionada com o uso excessivo de bebidas e drogas de um adolescente rebelde e extravagante. Claro que cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é, nos lembra muito bem Caetano Veloso, em “Dom de Iludir”. Acidentes podem ser de diversos tipos e graus de gravidade, mas uma clave que indiscutivelmente os distingue é aquela que diz respeito à nossa, digamos, pequena ou grande contribuição para que ocorram. Se ao momento em que nos acidentamos, temos nossas consciências alteradas por substâncias como álcool e entorpecentes, por exemplo, e conduzimos um automóvel a 140 km/hora, será que podemos considerar “injusta” qualquer fatalidade que advenha desse comportamento?
Paiva se tornou um renomado apresentador de programas televisivos e escritor de muitos romances e diretor de peças teatrais. De fato, foi logo após o seu acidente que ele encontrou na literatura uma forte aliada para muitos e imensos desafios, entre eles as armadilhas da auto-piedade, as limitações da sexualidade para um quadroplégico, e as dores da fisioterapia que o permitiria readquirir certas capacidades físicas. Infelizmente, porém, talvez tenha escrito sua famosa obra muito precocemente, antes de conseguir ver por outro prisma aquela decantada “injustiça”.
Um terrível acidente também marcou e alterou para sempre a vida de outra pessoa naquela mesma época, o fim do século XX. Esse é o tema da autobiografia Pressinto os Anjos que me Perseguem. O que aconteceu com a poeta e romancista Helena Jobim, irmã do músico Tom Jobim, foi, entretanto, um caso de característica oposta àquele do acidente de Paiva, pois nem ela, enquanto passageira, e muito menos a sua amiga Leila, quem cuidadosamente conduzia o carro que descia a estrada extremamente sinuosa entre Teresópolis e o Rio de Janeiro, contribuiu em nada para a narrada tragédia que ocorreu em 1992. Numa curva acentuada elas foram atingidas por outro carro. A atitude da romancista, que inicia a sua narrativa logo após o acidente, aos 61 anos de idade, difere-se muita daquela de Paiva, de 21: “Eu tive sorte, muita sorte, me disseram. Nem minha cabeça, nem minha coluna foram atingidas. Sorte. Dezessete fraturas, o baço perdido, o choque hemorrágico. O fígado e o intestino feridos. Os pulmões perfurados pelas costelas quebradas” (72).
Como Paiva, Jobim também se questiona muitas vezes por que aquele martírio recaíra sobre ela, mas outra significativa desigualdade entre as mensagens de Jobim e Paiva é que a autora se faz explicita no duplo propósito de sua escrita: “o primeiro foi alertar os jovens sobre os perigos de uma estrada, de como o corpo é frágil diante das máquinas, e de como é terrível a dor e a limitação da liberdade” (11). O segundo foi mostrar, contando essa experiência que viveu, que “há mais coisas entre o Céu e a Terra do que sonha nossa vã filosofia” (11). Aproximadamente dois meses antes do seu acidente, Jobim confessou ao marido que a morte a estava rondando. Com carinho, ele procurou acalmá-la: “Nossa vida está correndo tranquila. Não vejo nada que possa levar você a pensar isso” (30). Ela então respondeu: “Não é que eu pensei. Estou sentindo”. Com o passar das semanas, foi “cada vez mais intensa a sensação e, se me perguntassem como era sentir a presença da morte, eu não saberia explicar” (31). Os espaços entre essas premonições foram se aproximando, explica Jobim, e um “abismo” acompanhava seus passos. “De noite tinha pesadelos com cidades e ruas desconhecidas e sem luz, por onde vagava perdida” (31).
Aquelas semanas de sonhos, sentimentos e mistérios desconcertantes a levariam a uma epifania, traduzida em linguagem poética e intimista. Certa tarde, fazendo compras, ela passou pela praça da sua infância em Ipanema. “Atraída pelas sombras que desciam das copas das árvores e iam se tornando mais densas com a chegada da noite”, sentou-se num banco (31). De repente, “olhando o contorno da igreja que contrastava contra o céu roxo, despertei. Afastaram-se brumas, névoas esgarçaram-se na mão de um vento desconhecido” (31). Apoderou-se de uma perspectiva existencialista. Lembrou-se “do tempo perdido em desencontros, enganos, jogado fora. Gavetas e pastas abarrotadas de trabalhos inacabados. Adiamentos, falhas, desculpas” (31). Sentada ali naquele banco de praça, “a noite caindo rápida, as luzes das ruas começando a brilhar, pareceu-me natural falar com Deus. Pedi mais tempo de vida. Nenhum dia mais, prometi, seria desperdiçado” (31).
Embora sem a ênfase com que Jobim dedica-se aos mistérios em torno da suposta casualidade dos acidentes, Paiva também menciona algo que nos faz pensar nas palavras de William Shakespeare. Eliana, irmã de Marcelo, teve um sonho revelador uma semana antes do acidente dele. Ela sonhou que ele “estava afogando e não conseguia levantar a cabeça” e que, depois de ele ser salvo, ela “só o via do pescoço pra cima” (40). Seis dias antes da tragédia, ele foi visitar a família em São Paulo e ouviu de Eliana a tal descrição da experiência onírica cheia de premonições. Ao ver o irmão, ela o “abraçou assustadíssima, quase chorando: ‘Tive um pesadelo horrível com você, ainda bem que você está vivo’” (40).
Filme # 4: Dramas Precoces
Felizmente ainda não tenho histórias de tanto sofrimento individual e/ou de conflito sócio-histórico como os narradores de Dostoiévski, Daniel, Paiva ou Jobim. Como ela e eles, porém, tenho algo a relembrar, redescobrir e expor sobre a existência desse corpo onde reside meu espírito, ou minha alma, ou sei lá o que existe dentro dessa carcaça que um dia já foi forte e saudável. Partes dela se enfraqueceram e perderam o ritmo. Outras se quebraram e jamais serão as mesmas. Pior ainda, outras partes caíram, e o vento as levou, como quase todos os cabelos castanhos e encaracolados que habitavam o topo da minha cabeça. Sobraram uns resquícios laterais e posteriores, é verdade. Tudo isso, vocês dirão, é normal. Concordo plenamente. Só não é “normal” dar tanto trabalho ao anjo da guarda para que me ajudasse a manter esta máquina humana funcionando, apesar dos pesares que hoje me assolam e me instigam a escrever uma crônica fadada a ser muito mais longa que uma crônica convencional.
Sem culpar ninguém – aliás, muito pelo
contrário – os problemas do meu corpo provavelmente se iniciaram antes de eu
dar meu primeiro choro na madrugada de 18 de setembro, 1959. Apenas seis meses após
nascer o meu irmão, José Carlos, 15 meses mais velho do que eu, dona Lucci e
seu Dário me encomendaram (ou, provavelmente, enviaram um email ao Senhor Deus
sem o perceber). O problema não foi exatamente essa agenda apertada. É que
durante essa gravidez minha mãe teve problemas de saúde e precisou de muito
remédio enquanto esperava o próximo nenê. Quando nasci, tinha absorvido um
tanto dos medicamentos, e parecia mais uma bola de vôlei do que um bebê
saudável, o que de fato era, graças a Deus.
O bebê-bola teria muitos desafios pela
frente, como me proponho a discutir aqui, e eles começaram bem cedo, um dois
anos depois da sobrecarga medicinal dos tempos uterinos. Foi um susto que
passou sem deixar sequelas. Mas que abalo foi aquele, e que providência me
salvou! Na praça Oswaldo Costa, de Paraguaçu, sul de Minas, a minha querida
tia-avó, a ilustre Sra. Noêmia Prado, passeava comigo. E não é que consegui
cair no lago da praça? Ainda bem que um bom goleiro (um dos melhores que a
cidade já viu) estava batendo papo furado com amigos ali por perto, no coreto.
Ao ouvir os pedidos de socorro de minha tia, o jovem e atlético Carlos
Taglialegna saiu correndo desembestado e conseguiu pular na água para me
retirar sem eu ter bebido muita água.
Poucos anos se passaram. O bebê-bola já não era mais nem bebê, nem
arredondado. Fazia travessuras como era normal para a idade, e foi assim que
resolveu brincar subindo em uma pilha de rolos de arame farpado deixados no
passeio em frente à nossa casa, junto a Cooperativa Agropecuária de Paraguaçu.
Um dos rolos se desprendeu e derrubou o rapazinho de aproximadamente três anos,
cravando-lhe umas três ou quatro feridas profundas nos braços. Uma delas deixou
uma cicatriz circular que até hoje, mais que 50 anos passados, ainda me
acompanha na parte superior do antebraço direito.
Outra marca de acidente que permanece
comigo há muitas décadas (quase seis) é minha surdez parcial no ouvido direito,
uns 25%, me disse um médico vários anos atrás. Já deve ter piorado! Dessa vez o
acidente criou mais um sério risco de morte. Um amigo de infância, o Romeu
Cosenza, me chamou para ver um filme pelo lado oposto da tela de cinema.
Entramos pela porta dos fundos do lendário Cine-Teatro Íris, situado na
mesma praça Oswaldo Costa. Estava bastante escuro no interior do prédio, que, aliás,
foi edificado pelo meu avô paterno, o construtor ítalo-brasileiro Virgílio Borim.
Infelizmente, não havia nenhum protetor, uma mureta ou grade, por exemplo, que
impedisse uma pessoa de cair para o piso inferior, onde havia os camarins.
Não vi, pois, o que me esperava. Pisei em falso. Minha cabeça de menino
de seis anos e pouco se projetou para frente e para baixo, como o ponteiro das
horas de um relógio passa do meio-dia às três da tarde, e a bati forte no piso
acimentado dois metros abaixo. Por sorte não houve hemorragia interna, o que
poderia ter me matado ou me deixado paraplégico. Houve, porém, graves danos. O
choque violento no lado direito da minha cabeça fraturou o osso temporal, o
chamado “rochedo”, que protege os ouvidos médio e interno, atrás da orelha. Com
isso o nervo facial foi atingido e me provocou paralisia facial. Minha boca foi
puxada para trás, até perto da orelha do mesmo lado direito. Cruelmente chamado
de Boca-Torta pelos “amiguinhos” na escola, eu fui protegido pelos meus pais, que
acharam melhor retirar todos os espelhos da casa.
Jamais vou esquecer o amor e a dedicação de meus pais nesse momento tão
difícil. Seu Dário deixou de lado a Casa Dois Irmãos, da qual era
co-proprietário com o saudoso irmão, Delmo. O ocupadíssimo comerciante foi
passar um mês inteiro comigo em Belo Horizonte, capital do estado, onde fiz um
rigoroso e penoso tratamento no hospital Arapiara. Três vezes por semana eu
tomava choques elétricos no rosto, além de receber massagens com movimentos
bruscos, intensos, de panos extremamente quentes apertando a face direita.
Fiquei bom, quase perfeito, em seis meses. Minha mãe havia feito uma promessa a Nossa Senhora. Se eu me recuperasse, ela faria um almoço bem especial a cada semana, por vários meses, para eu levar e oferecer às pessoas encarceradas em Paraguaçu. A delegacia, na época, ficava bem próxima à nossa casa. Durante os cinco ou seis anos seguintes, minha mãe ainda teve muito medo de que eu sofresse algum choque na cabeça, jogando futebol, por exemplo, e voltasse a sofrer da paralisia facial. Mas nada disso ocorreu. Nesse período eu me comportei bem, e assim dei um descanso temporário ao meu anjo da guarda.
Filme # 5: Arriscadas Aborrecências
Com a chegada da adolescência, os meus abusos voltaram. Eu pouco me importava se minha bicicleta Caloi cor marrom, marcha única, tinha freios. Eu usava o meu par de tênis para reduzir a velocidade – só quando era necessário, mesmo, porque eu adorava correr e correr muito. Certa vez inventei de fazer um “pega” com um amigo passando num Volkswagen em torno da mesma praça Oswaldo Costa, palco de tantas peripécias da juventude paraguaçuense. Consegui ultrapassar o carro, mas a esquina da casa do Sr. João Leite me apareceu rápido demais. Perdi o controle na curva e subi no passeio, onde o meio-fio me jogou alguns metros para frente, sobre os antigos paralelepípedos. Tive escoriações dolorosas, mas nada de grave aconteceu com a minha cabeça.
Nessa época, ainda mais uma vez eu teria
exagerado na velocidade naquela praça. Dessa vez foi morro abaixo. Era sábado
de Carnaval. Pela tarde, o famoso Bar do Vatinho estava repleto de futuros
foliões quando descia a rua, em frente à Igreja Matriz, um rapaz na sua Caloi
sem freios. Bem na esquina, quase em frente ao bar, ele viu que precisava reduzir
a velocidade. Já foi tarde. O pé direito cravou pressão na roda traseira, e
esta se arrastou pela força exagerada do freio nos paralelepípedos empoeirados.
Foi receita e realização de mais um desastre, claro. Novamente o anjo da guarda
me deu a mão. Tive apenas alguns arranhões nas pernas e nos braços.
Por aqueles anos, o final da década de
1970, a força da minha juventude era indiscutível, assim como era a de meu
irmão. Vivíamos a idade de quem pensa que nós jovens somos imbatíveis, que
coisas ruins acontecem é com as outras pessoas, não com a gente. Essa era uma
atitude que também fomentava rivalidade entre nós dois ao fim de nossas
adolescências. Um momento marcante dessa relação tão comum entre irmãos foi
numa tarde em quê, na capital mineira, onde morávamos, fomos ao BH Shopping
Center. Tínhamos perto de 19 anos. Vimos uma máquina onde se mediam as forças
dos braços e das pernas. Tatau, o apelido de meu irmão, me desafiou. Ele então
deu um murro numa bola de couro em forma de uma gigante gota d’água. O ponteiro
do medidor foi às alturas, quase ao seu limite. Quando foi a minha vez, dei o
meu melhor, mas não cheguei nem perto da marca deixada pelo mano pouco
mais velho. Bem, quando foi a hora de chutar a outra bola de couro da mesma
máquina, ele mais uma vez foi primeiro e atingiu uma marca altíssima, como
antes. Quando chegou a minha vez, me preparei psicologicamente melhor, com mais
confiança e determinação. Fui com tanta sede ao pote que meu chute, de tão
poderoso, quebrou a máquina. Ficamos, assim, quites e felizes com nossas
performances.
A minha adolescência estava, pelo menos
no calendário, chegando ao fim. Mas ainda haveria mais drama antes do início da
terceira década de vida. Depois daqueles tombos de bicicleta (e outros tombos
menos ridículos), chegou a era da motocicleta. Lembro-me de quando, ainda aos
19 anos, perfeitamente sóbrio, eu corria excessivamente na minha Honda 125cc
(também marrom) em uma estrada de terra. O amigo Henrique Carneiro Prado seguia
na garupa. Foi quando apareceu pela frente uma parte da estrada tomada por
muito pó acumulado nos tempos de seca e, no nosso caminho, uma pedra de uns
20x10 cm, meio que encoberta. Não houve tempo para mais nada, a não ser eu
gritar para o Henrique: “Segura, cara, porque que vamos voar”. Não sei como
explicar, mas saímos quase ilesos.
Num próximo episódio de moto, poucos
meses depois, não tive tanta sorte. Ou, talvez, deva dizer que tive sorte, sim,
por ter sobrevivido. Como anteriormente, eu estava totalmente sóbrio sobre a
minha “magrela”, a minha humilde Honda 125, ao subir a avenida Bias Fortes rumo
à Praça da Liberdade, em Belo Horizonte, abaixei os olhos para verificar as
condições da pista. Quando levantei o rosto, dois carros tinham acabado de
parar no sinal amarelo, luz que tinha acabado de aparecer. Eu não tinha como
brecar a minha moto. A solução foi tentar passar entre os dois carros paralelos
à minha frente. Para isso precisei abrir a perna esquerda para manter o
equilíbrio. Abri demais, e meu joelho esquerdo se chocou contra o farol
traseiro direito do carro à minha esquerda. Resultado: um belo voo sobre os
dois carros e uma fratura no alto do tíbia. Dessa vez a cabeça tomou um bom
tapa no asfalto, mas eu usava capacete, que escapuliu e saiu pipocando pela
avenida. Durante 15 minutos não senti dor nenhuma, e quando passou um
motoqueiro desconhecido, mas generoso, pedi encarecidamente que me levasse para
o hospital. Concordou e seguimos para o João XXIII.
Foram dois meses de gesso, do calcanhar
à virilha, mas fiquei curado, sem sequelas, exceto a dor a cada inverno nos
seis ou sete anos seguintes. Antes disso, tive que ir de muletas regularmente à
faculdade bem distante (a Escola de Engenharia Kennedy) em ônibus apertado.
Valeu a primeira lição sobre o que passam as pessoas com deficiências físicas,
e como o mundo não está preparado para elas. Eu mesmo fui muito rebelde diante
dessa realidade. Abusei da velocidade sobre muletas e caí algumas vezes. “Eh,
Darinho!” – meu superego às vezes ralhava. Rebeldia maior ainda foi
aquela diante do enorme e pesado gesso que me dava tanta coceira no verão. Em
gesto irresponsável, numa praia do Espírito do Santo, não aguentei. Cortei e
rasguei fora toda aquela horrorosa casca branca. Quando voltei a Belo
Horizonte, um médico me repreendeu um bom bocado e me condenou a mais um mês de
martírio dentro daquela bota cansativa e tirana.
Em fevereiro de 1980, pouco mais de dois meses após o grave acidente de moto em Belo Horizonte, foi a vez de eu quase perder a vida no Volks branco que comprara de meu irmão, uma semana antes. Foi tão pouco tempo depois de retirar o gesso da perna esquerda que ela ainda estava fraca demais para controlar a embreagem. Dirigia o carro o Vitinho, um dos amigos a bordo, ambos da minha idade, quase 20. Voltávamos, nós os devassos, de Varginha para Paraguaçu, após comprarmos uma caixa de lança-perfume. Para não nos chocarmos de frente com uma Variante (outro antigo modelo da Volkswagen), tivemos que sair da pista pelo lado esquerdo, depois de bater de raspão naquele carro. O nosso carro virou lateralmente e foi se arrastando assim até parar.
Por milagre, ninguém se machucou no acidente daquele sábado de Carnaval,
mas ficamos todos muito abalados emocionalmente, e eu tive que pagar bem caro
por aquela aventura ultra-perigosa e irresponsável. Diante de tanta
infantilidade e descaso diante da possibilidade de matar alguém, morrer eu
próprio, ou me machucar para o resto da vida, eu perdi o meu primeiro grande
amor. Doeu muito, mas mereci cada lágrima que verti ao longo de uma penosa
semana em abril, quando o nosso namoro de um ano se acabou. Ivana, uma
paulista de coração bem mineiro, era de apenas dois anos a mais que eu, mas já
tinha amadurecido muito, principalmente por ter sobrevivido a um câncer. Meu
modo de viver, livre e alegre, certamente a inspirava, mas ao me ver tantas
vezes arriscando a vida, deixou de vislumbrar qualquer futuro promissor entre
nós.
Filme # 6: Desafios da Meia-Idade
Desgosto e medo me afastaram de qualquer máquina de transporte por mais de três anos. Não quis dirigir nada de carro, moto, ou bicicleta. Meu cuidado era enorme, mesmo como passageiro ou pedestre. Acontece que compartilhamos o planeta Terra com criaturas que, como as máquinas, também nos desafiam. Num daqueles invernos bem secos e poeirentos em Minas, passei um fim de semana no sítio Bella Ciao, de minha irmã Silvinha e o marido José, perto de Belo Horizonte. Dias depois estava em Paraguaçu, onde a coceira na dobra interior do joelho começou. Como era de costume, foi consultar com o famoso e estimado Dr. Zé Tourinho, um farmacêutico prático, sem curso superior, mas dono de muita conhecimento, experiência e simpatia. Olhou bem e logo me disse que não era nada para eu me preocupar. Aquela irritação da pele ia passar, mas não passou. A coceira não desapareceu, e eu voltei para os Estados Unidos em menos de uma semana.
Alguns dias depois, algo muito estranho aconteceu bem cedo, enquanto ainda permanecia na cama. Aquela “inconsequente” irritação no joelho, segundo o diagnóstico do farmacêutico paraguaçuense, agora produziu um efeito execrável: dali saiu algo parecido a uma matéria fecal. “Cruz-credo, que coisa horrível! Sai imediatamente daqui, Darinho”, se exaltou minha esposa, com toda a razão. Muitas vezes na vida um homem precisa que uma mulher lhe diga, “Vá logo atrás de um médico!” Ainda naquela manhã me dirigi ao hospital no campus da Universidade de Minnesota, onde naquela tarde eu teria uma aula de literatura espanhola com o professor grego Anthony Zahareas, no meu programa de doutorado. Na minha primeira consulta médica, não fui humilde. Disse logo que o que eu mesmo suspeitava desde os dias em Minas: o meu problema era um berne! Eu ainda desconhecia o seu nome científico, bem chique. Tratava-se da larva da mosca-do-berne, a Dermatobia hominis, que penetra na pele dos mamíferos, inclusive os seres humanos, e se desenvolve sob ela, causando um comichão intenso e um tumor doloroso.
Sei que aqueles médicos da Universidade de Minnesota (agora já eram uns três a minha volta) tiveram que consultar o dicionário e, depois, alguns manuais para me ajudarem. Mais uma vez me adiantei. Disse-lhes que o tratamento no Brasil era feito com um pedaço de bacon. Riram, embora, discretamente, desse tal remédio da medicina popular brasileira, e a seguir telefonaram para a Escola de Veterinária, para saber mais sobre o caso. Os médicos de bichos confirmaram a minha receita. Realmente constava nos anais aquela medida não-ortodoxa do povo. Concordaram comigo. Mandaram buscar um pedaço de presunto, na falta de um bacon, e me aplicaram a carne no local da picada. Pediram que eu esperasse. Esperei e esperei. Passada meia-hora vieram me examinar e me disseram que o tratamento não estava dando resultado. Eu retruquei. Calma, isso leva um tempo. Se vocês concordarem, eu vou assistir a minha aula e depois volto para cá. Assim foi feito. Saí então daquele hospital universitário famoso pelas suas pesquisas com um curativo que incluía um pedaço de presunto. E a coceira continuou. Pelas cinco e meia da tarde voltei para o hospital. A enfermeira removeu o curativo, e a imagem era clara: o bicho certamente estava pronto para sair. Apertaram gentilmente o local, e nada. Com o intuito de preservar a integridade física da larva, resolveram fazer um pequeno corte e... bingo: o bicho caiu fora. Era robusto, multicolorido, principalmente de verde-castanho brilhante, de uns dois centímetros e meio de comprimento. A surpresa e fascinação deles diante da criatura eram óbvias. A seguir começaram a discutir quem se tornaria o dono do berne. Certamente algum deles escreveria um artigo científico sobre o aparecimento de uma larva tropical em solo americano. Mais uma vez tive que intervir: “em nome da ciência, faço a doação desse raro espécime não a um de vocês, mas à Universidade de Minnesota como um todo. Assunto encerrado!”
Mesmo residindo em Minnesota, para mim o Brasil continuava a ser a terra dos meus maiores prazeres, maiores riscos e maiores danos. Tudo muito intenso! Após transferir residência de Minnesota para Minas Gerais, em 1997, mais uma vez eu quase desencarnei. Foi ao rodopiar numa curva fechada, em dia chuvoso, a caminho de Ouro Preto. Bati meu Fiat vermelho numa mureta de pedra. Ela impediu-me de cair numa ribanceira de mais de cem metros de profundidade. Depois disso passei a viajar de ônibus entre Belo Horizonte e Mariana, onde por três anos lecionei literatura na bela Universidade Federal de Ouro Preto.
Os desafios da meia-idade não demoraram. Casado e com dois filhos, veio a fase dos incontáveis churrascos e cervejadas. Ann, minha esposa, os meninos, Ian e Zach, e eu nos reuníamos com as famílias de amigos em restaurantes-fazendas quase todos os fins de semana. Tais múltiplas indulgências agravaram as consequências metabólicas de minha obesidade, que já durava por uns sete anos. Sem saber que eu estava com os índices de triglicérides e colesterol nas alturas, aparentemente sofri um pequeno ataque cardíaco no voo que fiz dos Estados Unidos (onde passei a morar em agosto de 2000) rumo ao Brasil. No avião, eu estava também com o coração partido (metaforicamente) naquele mês de junho, 2001, pois naquele dia falecera Ana Beatriz, minha irmã de 36 anos. Minha viagem era para participar do seu enterro.
Hospitais eram minha sina! Com a marca dos sessenta anos na espreita, ainda fui jovem (e imprudente) o bastante para me envolver em mais um acidente grave. Não, não, não: nada de carro, moto ou bicicleta! Foi jogando tênis – vê se tem cabimento? Em partida entre dois irmãos, com cerca de sessenta anos, contra Daniel Borim, o filho/sobrinho ainda nos seus trinta e tal, vencia o jovem, e de lavada. Jogávamos numa bela quadra numa cidade vizinha a Belo Horizonte. No momento em que a partida poderia simplesmente terminar, confirmando o franco favoritismo do rapaz, ela terminou, sim, mas quase em tragédia. Daniel forçou a bola no fundo da quadra e eu corri de costas para rebatê-la. Desequilibrado por um estômago cervejeiro em alta velocidade, tropecei em meus próprios pés e me projetei para trás com violência.
Tentei diminuir os estragos do impacto me apoiando com o braço esquerdo sobre o piso de terra batida da quadra, mas não houve como evitar um choque muito pior: o topo de minha cabeça contra uma parede de tijolos, não muito distante. Honestamente, eu nem pensei no meu próprio acidente no cinema de Paraguaçu. Eu havia perdido um de meus melhores amigos, Roberto Reis, o meu orientador no doutorado em Minnesota, em condições semelhantes, ao jogarmos futebol de salão em 1994. Meu pavor naquela noite em Minneapolis foi enorme. Agora, tudo se repetia, mas comigo mesmo. Já totalmente ensanguentado, acabei desmaiando segundos depois da queda.
Naquele novo episódio entre a vida e a morte numa inócua quadra de tênis, meu anjo da guarda se mostrou eficaz. Fui logo levado para o hospital Madre Teresa, em Belo Horizonte, onde outro sobrinho, o dr. Guilherme Borim Mirachi, não mediu esforços para me ajudar. Então se confirmou que eu não tinha tido traumatismo craniano que deixasse sequelas. Tive, sim, três cortes no topo da cabeça (de quase quatro cm cada), além de três faturas no pulso esquerdo, por conta das quais usei gesso por dois meses.
Assim como aconteceu quando eu quebrara o joelho, tive múltiplas oportunidades para repensar a importância da integridade física e como penam as pessoas com suas deficiências e desconfortos crônicos. Tarefas corriqueiras como dar um laço no sapato ou abotoar uma camisa se tornaram um desafio. Um médico especialista em mãos, aqui nos Estados Unidos, quase que me garantiu que minha mão não ficaria muito prejudicada para o resto da vida. Acertou. Hoje, oito anos passados, consigo fazer muitas atividades com ela, mas não todas e nem sempre sem dor. Mas não reclamo. Pelo contrário: agradeço a sorte e a boa vontade dos anjos que me rodeiam em momentos difíceis.
Filme # 8: Mais Visitas Indesejadas
Ainda antes dos sessenta, chegou-me à saúde mais uma visita indesejada.
Essa veio para ficar dentro de mim até eu partir desse mundo: a malfadada
síndrome do intestino irritável, a SII, que chamamos pela sigla IBS (irritable
bowel syndrome) aqui nos Estados Unidos, feitiço dos tubos e nervos que não
ainda tem cura. Gases abundantes, cólicas abdominais agudas, outras dores
vigorosas em variadas partes do corpo, e uma embaraçosa dificuldade para
controlar dejeções fecais, com ou sem diarreia – estes são alguns dos sintomas
e malefícios. Hoje a ciência acredita que a SII é consequência direta do
“desentendimento” entre os neurônios cerebrais e os neurônios do sistema
digestivo. Por isso, é tanto uma questão física quanto emocional.
No pacote de inconveniências, os portadores de SII têm que conhecer e
lidar com uma longa lista do que não comer – ou ter que submeter àqueles
sintomas que, quando graves, podem impedir uma pessoa, por exemplo, de
sair para trabalhar ou passear. Minha completa constatação dessa nefasta
companheira adveio de um episódio patético quando comi feijão todos os dias (no
almoço e no jantar) e pãezinhos de sal no café da manhã e da tarde por sete
dias em seguida, em Paraguaçu. Era minha primeira semana no país, depois seis
meses diretos nos Estados Unidos. Passei um dia inteiro de cama, com dores
agudas por todo canto. O que me tirou daquela aflição foi um
fortíssimo anti-inflamatório receitado pelo meu cunhado, o Dr. José
Coda Albino Dias.
Sem sequer uma definição irrefutável da medicina anterior aos anos 90
sobre o que ela é exatamente, ou como surge no organismo, a SII se esconde em
tabus. Pouca gente tem coragem de revelá-la. Sabe-se muito bem, entretanto, que
ela é um processo metabólico, mas está sujeita, como disse antes, às emoções da
pessoa, como estresse, medo, preocupação, susto, tensão, tristeza, etc. Estamos
cientes, também, que podemos evitar o pior, como a paralisação completa do
corpo em função das dores por todos os lados, ou mesmo as crises mais leves e
ocasionais, se tomarmos probióticos (recomendação certeira que recebi do Dr.
Francis Magalhães, outro médico da família) e não consumirmos quaisquer entre
muitos alimentos e bebidas de uma longa lista. Para complicar a síndrome, a
lista não se aplica igualmente a todas as pessoas com a SII. O rol de agentes
maléficos à saúde e ao bem-estar dos doentes inclui alimentos e bebidas
extremamente saudáveis para as outras pessoas, as “normais”. Por exemplo,
pêssegos, melancia, brócolis, couve-flor, repolho, couve, leite, feijão, trigo,
molho de tomate, refrigerante, chocolate, molhos cremosos, pizza, e muitos
outros itens merecem atenção, moderação, ou exclusão total.
Infelizmente, o panorama dos meus dramas não acabou. Nos últimos 18
meses, em plena reta final para a gloriosa idade dos 65, me apareceram quatro
novos desafios. Primeiro, a síndrome do túnel do carpo na mão direita, e,
depois e mais grave, na mão esquerda. Como percebem, mais uma síndrome na vida
deste cronista! Dessa encrenca me curei, pelo menos dos seus episódios de estreia
quando digitei um longo trabalho acadêmico. Exagerei no tempo de trabalho sobre
o teclado e não me preocupei com a adequada e necessária postura corporal,
principalmente a dos braços sobre a mesa. No inverno passado, mais duas
novidades foram seguidas de outra – a pior delas.
Uma daquelas preocupações apareceu no consultório do meu médico atual, o
Dr. Hugo Jauregui, um simpático boliviano-americano que morou algum tempo no
Brasil e fala o português muito bem. Ele me alertou sobre minha pressão arterial
alta, medida ali mesmo. Fiz vários exames, inclusive aquele de estresse físico
sobre uma esteira eletrônica. Em menos de dois minutos tive que parar. Quase
tive um evento cardíaco, pois a pressão chegou a mais que 27. Dr. Jauregui
também pediu que eu a medisse em casa regularmente por um mês e lhe enviasse os
resultados. Não deu outra. O veredito foi: “O Sr. Dário de agora par frente
precisa controlar o consumo de sal e tomar remédio diário para controlar a
pressão”. O quê?, pensei eu. Nunca tinha tido qualquer problema de pressão. Por
muitos anos esses índices foram meu motivo de orgulho diante de vários outros
números tão piores no meu perfil médico. Aos sessenta e quatro lembrei-me de
meu pai, que por décadas disse-nos que a idade dele estava chegando, mas nunca
chegava. Continuava trabalhando de segunda a sábado, horário integral. Um
fenômeno! Com a graça de Deus, ele só pôde pensar que de fato que estava velho
quando já tinha quase 97 anos, meses antes da pandemia do corona-vírus e três
anos antes de falecer.
Ferrugem nunca dorme, diz uma canção do canadense Neil Young, um dos
compositores que mais admiro. Bem cedo, numa manhã do mesmo inverno em que de
repente soube-me hipertenso, saí de casa, aqui em Dartmouth, para caminhar com
a minha adorada loira e peluda, a Minnie, uma bela e elegante golden-retriever.
Para minha surpresa, logo passei a ver nas extremidades do meu campo de visão
umas flechas brancas disparadas em rápida sequência. Ainda estava um pouco
escuro lá fora. Cheguei ao absurdo de pensar que eram flocos de neve que, com o
vento, se desprendiam das folhas das árvores, mas achei aquilo muito esquisito.
Quando estava de volta em casa, a claridade do dia nas janelas me mostrou que o
céu estava azul, e que não havia neve nenhuma. O sintoma surgiu ainda outras
vezes, quando eu também passei a perceber alguns bichinhos, como pequenas
minhocas, que flutuavam nas mesmas extremidades da minha visão. Nada fiz por
uns dias, até que em outra manhã, ao acordar, me vi com a metade do olho
direito tomado por um forte vermelhão, sem dúvida uma pura camada de sangue
tomando metade da esclera (a parte normalmente branca do olho humano).
Era passada a hora de eu procurar uma oftalmologista. Após conduzir uma
variedade de exames, a Dra. Haylee McQuay me confortou: a hemorragia não era
nada para me preocupar, e deveria desaparecer em uma duas semanas. Elas
acontecem de vez em quando, com o rompimento de algum pequeno vaso sanguíneo
sob a pressão de um espirro forte, por exemplo, ou coisa assim. Quanto às
flechas e minhoquinhas nos cantos do olho direito, deveríamos ficar em alerta.
Vinham de um desgaste da retina, de rugas que se formaram ali, ela constatou.
Se piorassem bastante nos próximos meses, teria que ser operado. Por enquanto,
que me acostumasse com os parceiros flutuantes, e bola pra frente.
O verdadeiro, o extravagante, o mais cruel diabo que já habitou meu
corpo veio a seguir. Com a ocorrência de múltiplos focos de dor corporal
causados pela SII, demorei a desconfiar, mas meu novo companheiro de encrenca
tem nome conhecido por muita gente: nervo ciático. Existem dois tipos desse
sufoco criado pelo mais longo nervo do corpo humano. Um tipo vem de problemas
na espinha dorsal, e o outro surge mais para o meio de uma das duas bochechas
do nosso bum-bum. O meu tipo é o segundo. Atualmente (inclusive enquanto
escrevo essa interminável crônica), o nervo ciático me maltrata bastante, ali
no ponto acolchoado e curvo de sua origem, e também na encruzilhada
óssea, nervosa e muscular da virilha esquerda. Caramba!
E por falar em virilha, são tantos os meus “causos” médicos que até me
esqueci: também tive uma hérnia na virilha do outro lado, o direito. Foi
quando, uns 15 anos atrás, passei a usar amiúde a metáfora da “hérnia” para me
referir a qualquer inconveniente na vida. Nem sabia de quanto aquela hérnia
literal não era nada se comparada com as enormes hérnias metafóricas com que
convivo atualmente: a SII e o nervo ciático.
Pronto! Chega de lamentos! É hora de concluir essa crônica meio desvairada e um tanto desregrada, sem nenhum respeito aos limites de tamanho imposto pelo gênero jornalístico-literário tão enobrecido por Machado de Assis, Rachel de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade e tantas outras penas. Peço perdão pelo abuso do tempo a quem me acompanhou até aqui e, ao mesmo tempo, desejo que vocês não encontrem na vida nem um quinto dos percalços aqui arrolados. Se cuidem!
Filme # 9: As Cortinas
Eu não devia reclamar não, e não estou aqui para isso, pois muita gente
sofre muito mais do que eu, com dores constantes, outros maçantes desconfortos,
e acentuadas restrições físicas e mentais ao longo da vida. Pergunto: por quê,
então, quis eu narrar todo esse queixume? Não sei exatamente. Talvez para
extravasar minhas atuais frustrações, que, atualmente, incluem o nervo ciático.
Para quem não sabe, pressão no nervo ciático, um dos maiores flagelos ao longo
de nove anos para a escritora Jobim, pode doer mais que uma fratura óssea. Talvez
eu esteja escrevendo esse testamento para ser modestamente útil a quem ainda
não sabe da existência e possibilidade de algumas armadilhas e asneiras onde
caí ou tropecei. Talvez eu tenha simplesmente desejado me entreter e ao mesmo
tempo torcer pelo mesmo efeito sobre vocês.
Uma última hipótese talvez seja a mais realista: quero dizer aqui,
afinal, que sou extremamente grato pela saúde que tive e pela enorme e
recorrente ajuda que me deram os anjos. Jamais verei uma pessoa que anda, fala ou
respira com dificuldade da mesma maneira que as via antes de eu passar por
certas marcas descritas nessa narrativa de contratempos e pesares. Com certeza,
não há nela nada estritamente sociopolítico ou aterrador. São um tanto
diferentes, pois, do que fizeram Fiódor Dostoiévski, Herbert Daniel, Marcelo
Rubens Paiva e Helena Jobim, mas me sinto honrado de poder compartilhar com
vocês a história de uma vivência tão aventurosa quanto desastrosa, sem ter sido
letal. Além do mais, confesso que me cansei de conviver com os perigos por trás
dos prazeres desregrados, como a volúpia da bebida, da comida, das drogas, e da
velocidade sobre rodas. Além do mais, me arrependo dos temores que causei a
meus pais, meus irmãos (especialmente o Tatau), esposa, ex-namoradas, filhos e
amigos.
O que está pela frente? Não sei. Ninguém
sabe. O que sei que é um dia a gente pode estar muito bem de saúde, até mesmo
ao fim de uma noite, e, no dia seguinte, não conseguir sair da cama. Passei por
isso quase vinte anos atrás (portanto, antes da SII e do nervo ciático me
declarem guerra). Foi mais um evento ortopédico um tanto estranho de que não me
lembrei de lhes contar antes. Depois de passar cinco horas assistindo a um jogo
de futebol americano, assentado em uma cadeira de alumínio, vestindo apenas um
par de jeans e uma jaqueta de inverno sob temperaturas abaixo dos vinte graus
negativos, fui dormir ainda pensando que tudo estava bem. Na manhã seguinte, eu
não conseguia mover qualquer membro do meu corpo. O susto e a dor foram
intensos. Depois de uma consulta médica que Ann fez por telefone, veio a
solução. Uma dose maciça de ibuprofeno (bem mais de 1000 mg) me liberou os
movimentos poucas horas depois.
Como se viu por aqui, dentro de nossos corpos e mentes há chances de
muitas tramas, intrigas e artimanhas atuar no silêncio, na ausência de
quaisquer sinais, e certamente precisamos ser gratos por poder ver o sol nascer
a cada dia. Finalmente, quero confessar algo mais: uma de minhas maiores
ingenuidades na vida foi uma noção equivocada que sustentei por várias décadas,
mas que foi se exaurindo a cada marco significativo de declínio que constatei
na minha saúde e na saúde de alguns de meus melhores amigos e amigas. Quem sabe
essa nebulosa ofuscou o meu radar por eu nunca ter convivido intimamente, isto
é, sob o mesmo teto, com pessoas idosas. Quem sabe pela falta de uma avó
octogenária, ou mesmo com um pai ou mãe decadente, não pude me abrir os olhos, como
deveria, para perceber e sentir empatia pela sua crescente
fragilidade física e/ou mental, e, assim, criei e alimentei um mito.
O mito é esse de pensar que a vida transcorre assim mesmo: nascemos e um
dia simplesmente morremos. Errado! Esse até pode ser o enredo de alguns seres
humanos, mas a maioria da humanidade, penso, é forçada, pelas circunstâncias, a
lutar contra e, a algum momento, aceitar que vamos morrendo aos poucos,
perdendo nossas forças e nossos talentos até que a cortina do teatro se feche,
e quem sabe, passemos a atuar em outros filmes ainda desconhecidos aqui no
planeta Terra: os filmes do além. Não gostaria de ver ou atuar nessas películas
tão cedo, mas proceder vivendo levianamente pode ser o ingresso, sem direito a
pipocas. No outro lado da tela de um cinema em minha cidade natal, como disse
anteriormente, eu não vi nada, e de lá saí perigosamente ferido, mas fui salvo
por meu infalível anjo da guarda, depois de eu brincar com fogo à beira de um
precipício e nele cair brutalmente. Meu anjo deve
estar muito cansado. Basta, Dário!
Vejo-me numa
encruzilhada de cenas implorando para virarem trechos de uma narrativa que já
vem nascendo neste exato momento, sem plano, sem rumo, e sem guião. Já faz
tanto tempo que não escrevo uma crônica. De repente sinto essa forte
necessidade de compartilhar um arrastão de ideias, causos e sentimentos nesta
noite de sexta-feira, aqui em San Diego, ao extremo sul da Califórnia. Por
conta de um congresso da BRASA (Associação de Estudos Brasileiros) na
Universidade Estadual de São Diego, estou hospedado há três dias num hostel bem
arrumadinho – um albergue da juventude, como se diz no Brasil. Com o sugestivo
nome de Stay Classy (Fique com Classe), ele se encontra localizado na Market
Street, dentro do histórico bairro Gaslamp Quarter (Distrito do Lampião de
Gás), a umas quinze pequenas quadras do principal porto pesqueiro da cidade,
uma área de inúmeras atrações turísticas, como o Seaside Village e as vizinhas
embarcações-museus, de antigos e charmosos barcos a vela, como a Star of Índia
(Estrela da Índia, de 1863), a gigantes navios da Segunda Guerra Mundial, como
o porta-aviões USS Midway (Meio Caminho, 1945).
No fundo, eu
estava resistindo ao impulso de escrever, sem saber exatamente o porquê dessa
repressão. Mas aí veio uma tentação mais poderosa. Quando meia-hora atrás desci
até a cozinha no primeiro andar do Stay Classy, para encher minha garrafinha de
água potável, lá estava uma mulher à porta, no meu caminho. Então pude ouvir o
que ela dizia a um rapaz preparando seu jantar:
“Meu marido e
eu estamos aqui neste hostel por
alguns dias enquanto terminamos uma obra no nosso apartamento.”
Percebendo
que alguém se dirigia à cozinha, ela se afastou um pouquinho da porta, me
abrindo espaço para prosseguir. Foi quando me reconheceu e imediatamente mudou
de assunto. Com incontidas risadas, disse ela ao rapaz, referindo-se a mim:
“Aqui está um
homem abençoado. Muito abençoado. Depois te explico”
Eu sabia do
quê ela estava falando, claro. Tinha sido com esses termos que ela reagira
ontem, quando, assustada, viu que eu abria a porta de um banheiro designado gender neutral (de
gênero indeterminado). Nesse instante me dava de cara com uma mulher em pé, em
frente a um espelho bem junto à porta. A mulher, provavelmente de 30 e tal
anos, tinha deixado a porta destrancada, com o sinal verde do lado de fora
indicando vacant (isto
é, vazio), mas o real problema era que ali ela se encontrava completamente nua.
Por reflexo, por autodefesa, por talvez querer me deixar menos embaraçado, ou,
sei lá, por outro impulso qualquer, ela gritou:
“Blessed, blessed, you’re
very blessed, for having seen this black pearl,” o que quer dizer,
“abençoado, abençoado, você é muito abençoado por ter visto esta pérola negra.”
Posso dizer
que sou um sujeito viajado, pois já visitei 30 países até hoje – entre eles, 16
onde fiz palestras acadêmicas. Not
too shabby, ou em bom mineirês, tá ruim não. O problema é que, no fundo, eu
sou apenas o resquício de um menino do interior, que depois de completar 64
anos ainda se surpreende com as coincidências e interconexões do acaso e,
principalmente, com o imprevisto e o insólito do comportamento humano. Em San
Diego tem sido assim: uma viagem de muitas (e boas) surpresas, muito além da
anormal “benção” que recebi de uma risonha e ruidosa Pérola Negra.
A Califórnia,
um dos berços da contracultura nos Estados Unidos, também tem, se não me
engano, uma certa fama de acolher ou mesmo gerar tipos humanos um tanto
anti-convencionais, seja pro bem, seja pro mal. Por quase um ano morei em Los
Angeles e lá pude constatar um certo grau de verdade nesse estereótipo. Que
espécie de “bem-vindo à Califórnia” foi aquele que recebi de uns rapazes
levianos e, talvez, de mau-caráter, quando, pelas duas da madrugada, eu
descarregava o caminhão que eu dirigira por cinco dias seguidos desde
Minnesota, com nossa mudança? Passaram de carro uns três ou quatro gaiatos,
que, aos gritos de não sei o quê, atiraram ovos na minha direção. Por pouco não
me atingiram a cabeça. O carinho e a ajuda que minha família recebeu posteriormente
dos novos amigos, que fizemos em Los Angeles, inclusive os queridos Randal e Aparecida
Johnson, com certeza me fizeram esquecer aquele groceiro incidente na noite de
chegada.
Por aquela
ocasião, quase 28 anos atrás, eu já ensinava Português e Literatura Brasileira
na Universidade da Califórnia Los Angeles. Alguns meses depois, num fim de
semana tipicamente ensolarado, minha esposa, Ann, e eu viemos conhecer o
extremo sul do estado. Queríamos conhecer e mostrar o famoso San Diego Zoo às
nossas crianças, Ian e Zach, que tinham então três anos e seis meses,
respectivamente. Não vimos quase nada da cidade, além daquele famoso
hotel/cárcere de animais. Desta vez, entretanto, tenho tido a chance de visitar
múltiplos pontos de meu interesse na cidade, inclusive o World Beat Center
(Centro de Ritmos Internacionais) e Centro Cultural de la Raza situados no
Parque Balboa. Posso, pois, hoje testemunhar o meu apreço por essa bela,
multicultural, limpa e ensolarada cidade situada a quase 3.000 milhas
(4.800 quilômetros) de Dartmouth, Massachusetts, onde hoje moro há 24 anos.
As surpresas
e oportunidades desta segunda visita a San Diego têm sido rememoráveis. Não que
eu precisasse de quaisquer insumos químicos or orgânicos, mas na Market Street
mesma, a cem metros de distância da entrada deste albergue, encontrei uma
pequena loja de produtos para fumantes de tabaco e usuários de substâncias
menos convencionais, principalmente aquelas de lazer individual assegurado por
lei, como aqui na Califórnia e em Massachusetts, mas ainda ilegais em outros
estados mais conservadores deste país.
E por falar
em vícios, ou semi-vícios, nem acreditei no que vi em um supermercado na mesma
rua: vinhos argentinos, chilenos e californianos por menos de cinco dólares a
garrafa. Como assim? Vinhos mais baratos que um galão de gasolina neste
estado? Dali eu saí para outro mercado, bem menor, onde eu planejava
comprar algo quentinho para comer num solitário jantar aqui no Stay Classy.
Gostei de uma meia-pizza exposta que lá encontrei. Pedi a um rapaz que a
embrulhasse. Ele então me disse que não recomendava que eu a comprasse. Já
estava muito velha, disse. Insisti em levá-la, pois me parecia ainda bastante
boa. Me surpreendi quando o vendedor me respondeu assim,
“Ah... então
pode levar, de graça.” Não recusei.
Mais uma
novidade veio logo. A poucos metros do mercado da pizza gratuita, a caminho do
albergue, notei a presença de alguns carros de polícia piscantes e a veloz e a
retumbante chegada de um caminhão de bombeiro. Então me dei conta de que um
carro parado na esquina estava bem amassado. Perguntei a um estranho por perto
o que tinha ocorrido. Disse que, aparentemente, o motorista do carro não viu
que estava dirigindo sobre os trilhos do trolley elétrico, e contra um deles se
chocou. Caramba!
Por aquela
mesma esquina, anteontem, eu tinha visto passar uma estranha espécie de bonde
do prazer. Nele, um veículo todo aberto, umas 22 mocinhas assentavam em bancos
de madeira individuais rodeando duas torneiras de chopp. Ao mesmo tempo,
aquelas jovens (provavelmente universitárias) bebiam cerveja, sorriam, cantavam
e gritavam saudando os transeuntes. Cada uma delas também contribuía para
erradicação das crises climáticas, pedalando para dar impulso àquele alegre e
inebriante meio de transporte de urbano.
As ironias do
cotidiano continuaram em San Diego. Pela manhã seguinte eu soube de um
terremoto com epicentro em Nova Jersey, junto a Nova York. Foi sentido também
em Massachusetts e um tanto além, na Nova Inglaterra. Como é que é? Então eu
venho para a região dos Estados Unidos mais susceptível a tremores de terra bem
quando eles resolvem visitar a minha sismicamente calma região tão distante
daqui? Realmente tem sido uma ótima semana para se estar fora do Nordeste dos
Estados Unidos, concluí. Além desse terremoto, ao mesmo tempo, também houve por
lá uma tempestade de volumosas chuvas e ventos que deram muito medo a Minnie, a
nossa adorável golden-retriever.
Enquanto
isso, continuei aqui a cruzar meu caminho com muitos tipos humanos de
aparências que também me inspiraram a escrever esta crônica. Para não prolongar
muito, cito apenas dois. Um senhor idoso, talvez de setenta e tal, bem alto e
grisalho, vestia bermudas que expunham suas pernas tatuadas. Ele caminhava a
passos largos com um tal montante de aparelhos eletrônicos conectados aos
quadris, olhos, ombros e ouvidos, que eu mal entendia do que se tratavam. Outra
pessoa que me chamou bastante a atenção foi uma senhora loira um pouco mais
nova, de uns sessenta anos, mas já sem alguns dentes. Passou por mim às
pressas, ouvindo e cantarolando um hip-hop em volume tão alto que mesmo eu,
meio surdo, não podia entender para quê tanta fanfarrice.
Nem só diante
de estranhos eu me deparei com mais motivos para compor esta crônica. Sem
conhecimento a priori de sua presença na cidade, pude rever grandes e velhos
amigos, como os professores Vivaldo Santos, mineiro da gema que escreve livros
infantis e professor da Universidade de Georgetown, em Washington, e José Luiz
Passos, romancista premiado de Pernambuco e professor da Universidade da
Califórnia Los Angeles, a mesma onde lecionei entre 1995 e 1996. Através deles,
ontem conheci e fiz um novo amigo, Francisco Rogido, um tradutor e contista
carioca, quando fomos os quatro nos descontrair num restaurante de comida indiana
e nepalense, o Bhojan Grilha, situado em outro bairro pitoresco de San Diego, a
Cidade Velha.
Com essa
gente simpática, tomei uma deliciosa cerveja local, a Stone IPA. Antes de
falarmos bem e mal da vida acadêmica e lembrarmos nostalgicamente dos velhos
bons tempos, como os de outras conferências país afora, pudemos dramatizar
alguns termos de nossa fase de vida. Em vez de falarmos de literatura, amores
ou futebol, trocamos confidências e conselhos para com os desafios da idade,
como insônia, dores no corpo, diabetes, pressão alta, e, sim, infelizmente,
alguns casos doenças mais graves, além de outras assuntos de quase-velhos, ou
quase-quase-velhos.
Desse filme
compacto de emoções, fortaleceu-se a minha certeza de que viajar, conhecer nova
gente e novos lugares, e, principalmente, reencontrar depois de muitos anos
alguns de nossos velhos amigos, continua valendo a pena, apesar da idade. É a
chance de sairmos da nossa área de conforto e mesmice para aproveitar a vida
com mais sabor, antes que seja tarde demais, ainda que (e talvez porque)
sejamos expostos ao imprevisível e ao inusitado. Amém!
A colina da Acrópole desde o Hostel Safestay (2025) Ei, senhor Chico Buarque de Holan...