sexta-feira, 21 de dezembro de 2007



A brasileirinha
[Foto de Ian Borim]

Faz pouco mais de uma hora que uma sopa borbulha. Ingredientes, já os levou dos mais diversos. Assim espera pelo momento de lhe ser dito:

"Chegou sua hora, brasileirinha".
E olha que é mesmo canarinha. Como há tanta certeza assim? Tudo em volta a influencia. Pelo toca-fitas sobre a mesa não me vem o som de guitarra do Neil Young, nem a voz melodiosa do John Denver.
"Boemia, aqui me tens de regresso, e suplicando te peço, a minha nova inscrição. Voltei para rever os amigos..."

Esta é a canção de uma fita cassete que viera de Paraguaçu e que agora faz ecoar a voz grave de Nelson Gonçalves pelas paredes de meu apartamento. No subsolo de um prédio isolado e um tanto afastado do centro da cidade de Torrington, Wyoming, estes versos invadem o coração do cozinheiro solitário, provocando-lhe arrepios. Como um bom conterrâneo do ex-Carmo dos Tocos, ele sente, nesta noite, o que lhe pesa de saudade da família e dos amigos do peito após passar seus primeiros dez meses fora do país.

Aqui, ao extremo sudeste do estado, aos pés das Montanhas Rochosas, nem a neve que cobre ruas e telhados ou o frio de dezoito negativos me impedem de me sentir de volta. Este apartamento-república onde moro, é americano-brasileiro em uma razão de quatro pra um ao longo do ano letivo. Mas hoje, ele é só Brasil. Não há sequer uma voz em inglês por aqui, pois estou só desde o Natal. A calefação elétrica cuida do ambiente físico, simulando o calor do dezembro tropical. A minha mente, então, voa livre e sobre suas asas chego a Paraguaçu, Minas Gerais.

Recordo-me ainda que na manhã de hoje a saudade já parecia ensaiar um golpe sobre os meus sentimentos, o meu frágil equilíbrio. Voltando a pé para casa após a missa das 10 h., o frio de oito graus negativos fazia meus lábios arderem. Em meu caminho sobre passeios cobertos pela intensa neve que caíra nos últimos dias, passei a imaginar como poderia ser Paraguaçu, se situada no Hemisfério Norte, sujeita àquele vento e àquela nevasca de dezembro. De fato, a pequena comunidade de Torrington, com pouco mais de 5.000 habitantes, é formada por um povo gentil, mas lhe faltam muitas das características de leveza e descontração típicas do meu Sul de Minas.

Horas passadas desde o entardecer, ultimamente ocorrendo pelas quatro e quinze, é que cheguei à cozinha para preparar o jantar. Surgiu-me, então, uma idéia: vou buscar meu toca-fitas e colocar música brasileira no ar — assim cozinho alguma coisa e tento viver um sonho, uma noite de fim de ano no Brasil.
Desse modo venho ouvindo a seleção de canções que recebi de meus pais recentemente. Ao som de modinhas, boleros, e dos melhores sambas que conheço, alguns golos da última garrafinha de Lowenbrau me fazem engasgar. Já sei que o problema vem da mente absorta a viajar no tempo e no espaço, a me mandar de volta para o sabor das Brahmas geladas no Bar do Vatinho e nas antológicas festas realizadas num certo apartamento à Rua Ceará, em Belo Horizonte. Não havia nada a fazer, uma vez que já permitira que esses filmes da memória me deixassem ainda mais vulnerável à solidão e à saudade.
De repente alguém canta:

"Bate outra vez, com esperanças o meu coração, pois já vai terminando o verão, enfim".
Ah, meu querido Cartola, aí de cima no céu só você sabe o quanto as suas "rosas" sempre me inspiram e, agora, me emocionam e me levam para bem longe daqui.

A noite brasileira chega ao seu momento de máxima sublimação, para em seguida me oferecer o sabor do que, de fato, tenho ali, bem pertinho de mim, já à minha espera há um bom tempo. Feijão, cenouras, salsinhas, cebolas, pimentões, tomates, carne cozida e salsichas estão cansados do fogo brando. O apetite que me toma conta também vem dos trópicos; é quase igual àqueles antes das tradicionais e celebradas feijoadas de d. Lucci. Mas chega de saudade! Finalmente é chegada a hora da bóia:

"Vem cá, brasileirinha".
[Originalmente publicada n’A Voz da Cidade, de Paraguacu, em Fevereiro de 1982]

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007


Essa tal de felicidade

Dário Borim Jr.

“Brasileiros desistindo do sonho americano” -- esta é manchete de uma reportagem publicada por Nina Bernstein e Elizabeth Dwoskin no New York Times desta última terça-feira, dia 4 de dezembro. Sim, são brasileiros, aos milhares a cada dia, comprando passagens aéreas só de ida para nossa terra.

Lembro-me de que nos anos 80 eu pensava nesse tal de “sonho americano” com uma boa dose de suspeita. Nas aulas que dava em Belo Horizonte, debatíamos essas possibilidades de prosperidade e liberdade. Discutíamos se o prazer de comprar e possuir garantia a tal da felicidade. Não havia consenso.
Atualmente vivemos num mundo de milhões de imigrantes e retirantes. As estatísticas são assombrosas: centenas de milhões. Estariam tantas partes do mundo em apuros? A vida no chamado primeiro mundo seria muito melhor? Seria São Paulo ou Moscou um paraíso para onde deveriam mudar os destituídos e outros carentes?

Clarice Lispector — escritora de pais russos, que nasceu na Ucrânia quando sua família emigrava para o Brasil — criou uma das histórias mais pungentes sobre os nordestinos no sul do Brasil. O narrador (masculino) desse romance, intitulado A hora da estrela, se pergunta se a felicidade por acaso não passaria de uma ilusão do tipo daquelas que manipulam tantas almas nordestinas, como a de Macabéa, a protagonista. O mesmo poderíamos questionar a respeito do “sonho americano”. Não seria isso apenas uma ilusão de muitos sujeitos terceiro-mundistas?

Acho que não. E nem acho que o narrador de Lispector tivesse razão. Quando se trata de sonhos, ambições, sacrifícios, coragem para deixar a família e os amigos, a língua e a terra natal, a iniciativa e seu valor são sempre mais complexos que a ilusão inocente, descabida. Não há paraíso na terra, convenhamos, porque a vida de qualquer pessoa é uma sucessão de provas e demandas, diante das quais são necessárias abdicação e paciência nas horas de ceder e obter conveniências, mas sempre vale lutar por melhores condições para enfrentarmos os desafios.

Então se hoje é, para muitos brasileiros, hora de voltar para o Brasil, com certeza é um momento triste, porque muitos foram pegos em pleno gozo do sonho ou realização da prosperidade. Mas a verdade é que o mar não está pra peixe há algum tempo. Os nossos conterrâneos que têm que pagar um preço muito alto para permanecer neste país — tal como a tensão diária no trânsito, pois uma falha poderá resultar em prisão e deportação imediatas — têm mesmo que reavaliar sua relação com a felicidade e buscá-la em outras praias, de outras formas. Mas isso também é muito complicado, pois às vezes um dos filhos já é crescido, é cidadão americano, e nem conhece o país que terá que adotar, se seguir os passos dos pais.

As leis de imigração de qualquer país, alteradas de tempos em tempos conforme as necessidades, nunca são leis que buscam assegurar a justiça. São na verdade regulamentos que visam preservar os interesses daqueles que têm mais poder no país e conseguem argumentar que estão a defender o bem comum, o bem do povo. Mas como toda nação é composta de uma população heterogênea, os grupos no poder também se diferem entre si nos seus interesses e nos modos de como querem/dizem querer defender o seu país.

Conseqüentemente, há tremendas contradições em tais regulamentos, pois refletem um jogo de esconde-esconde, de intenções não reveladas, de (falsas) imagens que protegem o interesse desse ou daquele grupo. Há, desse modo, um jogo de braço entre os donos do poder, e o indivíduo oprimido sob múltiplos riscos quase nada pode fazer diante desses interesses “oficiais”. Ainda bem que em uma sociedade plural há também compaixão e luta por direitos humanos. Estas, somente às vezes merecem a atenção dos legisladores e dos políticos que vêem além dos ganhos eleitorais imediatos e reservam um espaço na consciência em prol do próximo — seja ele portador de documentos deste país ou de outra nação, o que, aliás, não reduz em nada o seu direito à dignidade e à oportunidade de buscar a sua própria felicidade.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Tradições


[O simpaticíssimo Dr. Guilherme Borim Mirachi sob o impacto de algumas tortas americans –
feitas por Ann e fotografadas por Ian Borim]


Tradições


Nosso sobrinho Guilherme Borim Mirachi, jovem médico brasileiro-batuqueiro, de Belo Horizonte, deu-nos a honra de apreciar conosco alguns elementos da tradição norte-americana do Dia de Ação de Graças. Como sou escritor e estudioso das culturas, tenho que fazer uns parênteses. Falei de tal tradição norte-americana, mas na verdade são muitas as formas de se comemorar o Thanksgiving nos EUA. Ontem mesmo eu ouvia a Rádio Globo, de New Bedford, e um comercial tentava atrair os ouvintes para as promoções de uma mercearia local. Quando diziam que tinham tudo para as festas de Thanksgiving decidi prestar muita atenção no catálogo de ofertas. Fiquei bastante surpreso porque o rol de produtos indicava que, segundo o comercial, nossa tradição de Thanksgiving incluía vários pratos e tira-gostos portugueses.

Esse feriado nacional segue tradições diferentes em alguns dos sete estados onde já morei: Wyoming, Minnesota, Califórnia e Massachusetts. Não há espaço aqui (e nem suficientes neurônios na minha cabeça) para comparar os rituais e os detalhes das comilanças de um lugar com os de outro lugar, ou mesmo de uma época para outra. Mas como seriam nossas tradições familiares, hoje em dia? Bem, posso dizer que não são tão “rígidas”. De fato, cada ano é uma história diferente, talvez porque nossos filhos não têm primos, tios ou avós por perto que nos fizessem seguir a rotina de uma visita à mesma casa a cada ano para ver as mesmas pessoas, comer as mesmas coisas, e assistir a uma partida de futebol americano, o ritual de muitas famílias também seguido de uma sessão de cinema, com a barriga bem cheia. Certas vezes passamos o Dia de Ação de Graças nas casas de amigos, com filhos pequenos. Outras vez, ficamos em nossa própria casa e sem qualquer visita, de longe ou de perto. Outras vezes viajamos para uma cidade ou resort um pouco distante, compartilhando da tradição gastronômica local com totais estranhos, em um hotel ou restaurante qualquer.

Em 2007 nosso Thanksgiving foi um absoluto deleite. Começou com muitas conversas animadas (regadas a copos de Mojitos, um delicioso presente tradicional cubano ao mundo) e uma sessão de vídeo que mostrou com muitos detalhes a jornada do nosso sobrinho médico em breve período nos EUA. Vimos então cenas de um congresso de medicina em Chicago, cidade pela qual Guilherme se apaixonou (apesar dos ventos), e imagens do seu estágio de quatro semanas no Centro de Tratamento Intensivo do Hospital Rhode Island, onde seu idioma nativo, o português, permitiu-lhe diagnosticar alguns pacientes antes que seus colegas norte-americanos compreendessem que tipo de dor afligia seus pacientes. Mas em Providence nem tudo foram rosas no plano lingüístico, pois o sotaque de um senhor de São Miguel (ilha dos Açores) provou ser mais que uma simples barreira inicial: acabou desorientando o belorizontino por algum tempo. O jovem doutor nem tinha idéia de onde se encontrava o tal lugar chamado São Miguel ou tampouco entendia a explicação do enfermo sobre sua condição física ou sua terra natal.

Era apenas o começo do nosso feriado. E como Guilherme voltaria para o Brasil na manhã seguinte, a comemoração do Thanksgiving teve que ser antecipada para quarta-feira, adquirindo um sabor especial de “bota-fora”. Como minha esposa, Ann, é de Duluth, Minnesota, seguiríamos a maioria das tradições culinárias daquela região e de sua família anglo-sueca. Portanto, iniciou ela o ritual de preparação from scratch com uns rolls de canela, seguidos de uma torta de mação e outra de abóbora. Depois veio o trato especial ao peru, de sete quilos, que logo iria ao forno, e ao delicioso stuffing, com muito aipo e cebolas que piquei eu mesmo, sem verter nenhuma lágrima. Então, enquanto o marido descascava e cortava as batatas para o purê, Ann se encarregava dos oxicocos (cranberry), batata-doce, ervilhas, cebolinhas e o indispensável molho tipo gravy.

Bem, uma certa tradição do Thanksgiving logo seria alterada. Quase tudo pronto, era hora de aguardar três horas até que a tradicional ave corasse. Enquanto isso, teríamos um enorme privilégio: em vez de uma partida de futebol americano, assistiríamos ao jogo de futebol entre Brasil e Uruguai, direto do Morumbi. Sofremos. O Brasil jogou mal, mas teve sorte. O coitado do Uruguai jogou bem, mas não poderia ter sido mais azarado. Resultado: 2 a 1 para o Brasil. O vinho verde português já estava fresquinho e pronto para nossa ceia. Eram quase 11 horas da noite e, com muitas tradições seguidas à risca e outras ignoradas ou reformadas, agradecemos a Deus por isso e aquilo mas, principalmente, pela nossa paz, saúde e carinho mútuo e, para completar, por mais uma vitória do excrete canarinho. Deus às vezes é brasileiro.

Dário Borim
dborim@umassd.edu

segunda-feira, 19 de novembro de 2007



Idioma Global

Dário Borim Jr.

dborim@umassd.edu

[Arte de Zach Borim e colegas da turma da Profa. Doe, Cushman Elementary School, maio 2006]

A partir de janeiro de 2008, Brasil, Portugal e demais países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor Leste) terão a seu dispor uma ortografia portuguesa quase completamente unificada. Não há um dia marcado para que as mudanças ocorram e especialistas estimam que seja necessário um período de dois anos para a sociedade se acostumar.

Mas a previsão é que a modificação comece mesmo em 2008. No Brasil, por exemplo, o Ministério da Educação prepara a próxima licitação de livros didáticos para dezembro, pedindo já a nova ortografia. O edital será para os livros que serão usados em 2009. Carlos Alberto Xavier, assessor especial do MEC, declarou à Câmara Brasileira do Livro que será preciso um intervalo de, no mínimo, um ano após o início da vigência do acordo para que os livros didáticos distribuídos contenham as mudanças ortográficas. “Teremos também um período de dois anos para adaptação à nova ortografia. Durante esse tempo, as duas formas ortográficas serão consideradas corretas”, afirmou.


Segundo uma nota distribuída por todo o mundo através dos portais oficiais das embaixadas brasileiras, as modificações propostas afetarão 1,6% do vocabulário de Portugal. No Brasil, a mudança será bem menor: 0,45% das palavras terão a escrita alterada. As mudanças ortográficas não terão quaisquer efeitos sobre as pronúncias típicas de cada região dos países lusófonos. Justamente por isso certos estudiosos consideram as alterações desnecessárias, pois as diversidades maiores são fonéticas, e nisso não se vai mexer.

Porém, prevaleceu uma linha de raciocínio oposta, a dos que concordam com Antônio Houaiss (1915-1999). A unificação da ortografia não implica uniformização dos vocabulários ou homogeneização dos sotaques. Para Houaiss, “Portugal, Brasil e os cinco países africanos de língua portuguesa reconhecem que a inexistência de uma única ortografia oficial traz não apenas dificuldades de natureza lingüística, mas também de natureza política. Daí o esforço desses países em efetivar o novo acordo”.

Segundo o Banco de Dados da Língua Portuguesa, da Universidade de São Paulo, isto é o que vai mudar na ortografia em 2008:

1) As paroxítonas terminadas em "o" duplo, por exemplo, não terão mais acento circunflexo. Ao invés de "abençôo","enjôo" ou "vôo", os brasileiros (e os outros) terão que escrever "abençoo", "enjoo" e "voo."

2) Mudam-se as normas para o uso do hífen no meio das palavras. O hífen vai desaparecer do meio de palavras, com excepção daquela em que o prefixo termina em “r”, casos de "hiper-", “inter-" e "super-". Assim passaremos a ter "extraescolar", "aeroespascial" e "autoestrada".

3) Não se usará mais o acento circunflexo nas terceiras pessoas do plural do presente do indicativo ou do substantivo dos verbos "crer", "dar", "ler","ver" e seus decorrentes, ficando correta a grafia de "creem", "deem", "leem" e "veem".

4) Criação de alguns casos de dupla grafia para fazer diferenciação, como o uso do acento agudo na primeira pessoa do plural do pretérito perfeito dos verbos da primeira conjugação, tais como "louvámos" em oposição a "louvamos" e "amámos" em oposição a "amamos".

5) O trema (brasileiro) desaparece completamente. Estará correto escrever "linguiça", "sequência", "frequência" e "quinquênio" ao invés de “lingüiça”, “seqüência”, “freqüência” e “qüinqüênio”.

6) O alfabeto deixa de ter 23 letras para ter 26, com a incorporação de "k", "w" e "y".

7) O acento deixará de ser usado para diferenciar "pára" (verbo) de "para" (preposição).

8) No Brasil, haverá eliminação do acento agudo nos ditongos aberto "ei" e "oi" de palavras paroxítonas, como "assembléia", "idéia", "heróica" e "jibóia". O certo será “assembleia”, “ideia”, “heroica” e “jiboia”.

9) Em Portugal, desaparecem da língua escrita o "c" e o "p" nas palavras onde ele não é pronunciado, como em "acção", "acto", "adopção" e "baptismo". O certo será “ação”, “ato”, “adoção” e “batismo”.

10) Também em Portugal elimina-se o "h" inicial de algumas palavras, como em "húmido", que passará a ser grafado como no Brasil: "úmido".

11) Portugal mantém o acento agudo no “e” e no “o” tônicos que antecedem “m” ou “n”, enquanto o Brasil continua a usar circunflexo nessas palavras: académico/acadêmico, génio/gênio, fenómeno/fenômeno, bónus/bônus.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

A Vez do Beisebol

Dário Borim Jr.
UMass Dartmouth

Vamos todos torcer pelos Red Sox? Sei que alguns estarão reagindo assim: mas o que é isso, companheiro? Você não é brasileiro? Sou sim, mas também sou capaz de apreciar novidades (esporte, cinema, literatura, música ou dança, por exemplo) que fazem sentido, que me divertem e que me ensinam algo sobre a condição humana, sejam elas originárias da minha cultura ou das que venho descobrindo vida afora.

Beisebol não é futebol, claro. Não tem pedaladas do Robinho ou chapéus do Ronaldinho Gaúcho, mas, como o esporte das multidões globais, esse esporte norte-americano também tem sua beleza plástica e nos traz muita alegria e paixão. A maioria dos estrangeiros que conheço pensa o mesmo: beisebol é muito chato, porque é muito lento e sem graça. Eu também pensava assim e, para ser sincero, levei aproximadamente 15 anos para mudar de idéia. Era pura ignorância. Até pouco tempo atrás, eu nem sabia que o pitcher não pertencia ao mesmo time que o batter em ação. A lentidão é apenas cíclica e resulta da enorme tensão psicológica em jogo. Além do mais, ela se desfaz em picos de ação cuja rapidez da bola é raramente comparável a de outros esportes.

No Brasil da minha infância e adolescência, muita gente nem podia dizer com certeza qual era o tal de beisebol: o jogo bruto dos americanos ou aquele outro, meio parado, com tacos. Lembro-me que quando estava para me casar no verão de 1991, meus futuros parentes convidaram e pagaram para que minha família brasileira fosse ver um jogo dos Twins, no belíssimo Metrodome, em Minneapolis. Também era minha primeira chance de ver um jogo de beisebol profissional. Embora eu já tivesse acumulado quase cinco anos de vida nos Estados Unidos, naquele estádio eu me sentia quase tão estrangeiro quanto os meus pais, irmãs e primos que tinham chegado de Minas há poucos dias.

Embora eu tenha tido a oportunidade de me aproximar lentamente do esporte nos anos seguintes (e isso aconteceu porque descobri a alegria descompromissada, a descontração geral, e todo o “folclore” que se pratica nos estádios de ligas profissionais menores, como a dos Pawsocket, em Rhode Island), foi-me necessário ver meus filhos jogar beisebol nos campos do parque Crapo, em Dartmouth, para que eu de fato aprendesse as principais regras e as múltiplas sutilezas desse fabuloso esporte.

Quando tento racionalizar sobre os aspectos do beisebol que o tornam tão apelativo às massas, concluo que é seu incrível equilíbrio entre responsabilidades individuais e coletivas. O pitcher vive uma guerra pessoal contra o batter, um duelo que às vezes me faz pensar na relação tensa e terrível entre o touro e o toureiro. O aspecto psicológico daquele desafio entre os jogadores, porém, é de múltiplas conseqüências. Um dos dois elementos poderá levar sua equipe e seus fãs ao deleite total, à glória de um grand-slam, por exemplo, ou à humilhação de uma derrota de 12 a 2, como a que aconteceu aos Indians, de Cleveland, semana passada. Entretanto, o resultado de uma partida de beisebol poderá depender muito bem da rapidíssima sincronia de arremessos entre os jogadores do in-field e out-field, ou ainda da fantástica captura de uma bola rebatida pelo batter, cuja eficácia terá impacto direto no resultado final.

Depois de vários anos chegou o momento de me dar conta do meu profundo respeito por beisebol – mais que um esporte, uma instituição dos Estados Unidos que não precisa da aprovação do resto do mundo para se manter viva e apaixonante. A comprovação final dessa afinidade com o beisebol veio depois de assistir a duas partidas no lendário Fenway Park, em Boston. Aquilo é uma festa pacífica de enormes proporções. Pessoas que não se conhecem se falam, fazem piadas, e, às vezes, até se abraçam. Entre milhares de fãs há uma constante vibração e zumbido. Quase sempre o clima é de celebração, ao som de rock and roll ou algum canto de glória em ritmo pop-rock. Acima de tudo, naquele momento me valeu a impressão de quão importante é conhecer para só depois julgar quem quer que seja ou qualquer coisa que nos retire do falso conforto de nossas convicções.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007


Estrelas luso-afro-brasileiras

[Mariza, fadista portuguesa, no Consulado de Portugal em New Bedford (foto de D. Borim, 6/out/2007) ]


O teatro Zeiterion não é mais o mesmo. Desculpem-me pela falta de modéstia, mas depois de quatro eventos ali protagonizados por estrelas do mundo lusófono, até as paredes do distinto centro artístico já conhecem melhor a nossa cultura musical e a nossa alma. Em menos de dois anos, fomos contemplados com os exuberantes concertos de Dulce Pontes, Gilberto Gil, Lura e, no último fim-de-semana, a grande fadista dos nossos tempos, Mariza.

Alguns aspectos se destacaram nesses espetáculos: o alcance e maleabilidade das vozes, além da simpatia e leveza performáticas de cada artista. Uma sedutora e acrobática Dulce Pontes, por exemplo, dançou e simulou emoções com seu corpo ágil e redobrável de cantora-bailarina.

Gilberto Gil, com sua poesia sutil e filosoficamente precisa naquele que foi seu único show em toda a Nova Inglaterra, não apenas pareceu atingir o âmago do ser etéreo e sonhador de cada um dos presentes. Ele também se fez de maestro para que milhares de pessoas criassem o que talvez nunca tivessem nem mesmo tentado na vida: um lúdico e inacreditável falsete. Vi muita gente chorando, de êxtase e pele arrepiada. Ou era de orgulho, por saber que um artista brasileiro da estirpe de Gil ali estava e cantava, carne e osso, como se estivesse numa roda de samba no boteco da esquina, ou numa reunião de família, no fundo do quintal.

Sim, era Gil, o mesmo dos nossos sonhos e paixões dos anos 60, 70, 80 e 90, que prosseguia viagem pelo século XXI esbanjando saúde, bom-humor, otimismo, e muito lirismo. Com seus longos cabelos trançados e amarrados atrás, ele vestia bata e calças de algodão branco -- mais parecia um anjo afro ou, talvez, um filho de Ghandi, um bloco de Carnaval de Salvador.

Lura chegou ao palco do Zeiterion exalando energia criadora, encantando-nos em crioulo cabo-verdiano, inglês ou português. Entre os quatro artistas do mundo lusófono, foi ela quem atraiu o público mais jovem àquela casa de espetáculos. Lura é muito lírica também, e seu charme ao evocar múltiplas tradições e dramas cotidianos de Cabo Verde levava-nos a um animado passeio pelas ilhas do seu país. Quando dialogava com a platéia em cabo-verdiano, Lura parecia reforçar, sílaba por sílaba, a legitimidade da existência cabo-verdiana enquanto povo dono seu próprio idioma e de uma identidade diversificada, entre nativos e estrangeiros, por exemplo, ou habitantes de Santiago e São Nicolau.

Mariza fechou com chave de ouro essa seqüência de espetáculos luso-afro-brasileiros. Nascida em Moçambique, filha de mãe africana e pai europeu, essa estrela de 33 anos deixou lembranças indeléveis na mente de todos os que tiveram o privilégio de poder comprar seus (caros) ingressos. Foi capaz de entreter os amantes do fado tradicional sem se conter no improviso e na liberdade que sua voz potente e pluritonal lhe proporcionava. Ela, que já morou no Brasil alguns anos, que já se expôs profundamente às inovações vocais e rítmicas do gospel, blues e jazz norte-americanos, e que já descobriu o borbulhar inspirador das suas raízes africanas, reiterou duas ou três vezes, em conversa com os seus ouvintes, a sua ligação visceral com Portugal, um Portugal popular, dos bairros da Mouraria e Alfama.

Metaforicamente, Mariza aludiu à dupla semântica do termo “fado”: “gênero musical” e “destino”. Ela, por assim dizer, fez glosa do fado do seu fado, isto é, do seu destino enquanto cantora de fado, e, também, do próprio fado enquanto música do seu destino. Esse tal destino lhe empurrou o fado quando ela morava no Brasil e ainda nem sonhava em ser fadista, apesar de ter sido criada desde os três anos em ambiente de taverna, quando seu próprio pai possuía uma dessas casas na área mais boêmia de Lisboa. Finalmente, parece-me de suma importância que Mariza faça seu fado como o faz, eletrizando os corações dos patrícios sem deixar de reiterar a origem transcontinental do seu talento ou a identidade multirracial do seu ser. Saravá, Mariza!

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Ponteio Cultural, um Blog de Dario Borim




Ponteio Cultural

A coluna de Dário Borim

para O Jornal Brasileiro (Fall River, MA, EUA)

Quando o convite para criar esta coluna chegou, e meu desejo de aceitá-la driblou minhas ansiedades e receios (afinal, a dita falta de tempo é um dos maiores males da vida atual), logo me pus a matutar: que nome deveria dar a essa coluna?
Foram duas as colunas que, até então, eu tinha mantido por aproximadamente um ano em periódicos publicados a quase dez mil quilômetros de distância um do outro. Em 1982 “Memories, Thoughts, and Things” saía a cada duas semanas no jornal The Lance, de uma faculdade localizada junto aos pés das Montanhas Rochosas, o Eastern Wyoming College. O único brasileiro do campus e da pequena cidade de Torrington tinha algo a dizer sobre suas viagens pelas Américas e diversas regiões dos Estados Unidos. A outra coluna sairia 20 anos depois. Era chamada “Via Satélite” e suas crônicas discutiam o cotidiano, cultura e política. Eu podia, assim, manter-me em contato com os leitores d’A Voz da Cidade, periódico bissemanal da minha querida Paraguaçu -- a “princesinha do Sul de Minas”, segundo uma canção local.

Mas por que pensar tanto em um nome? O que há por detrás de um nome? Dois dos maiores poetas das línguas inglesa e portuguesa também se questionavam a respeito. "What's in a name? That which we call a rose / By any other name would smell as sweet", dizia o dramaturgo inglês William Shakespeare em sua peça Romeu e Julieta. “Mundo mundo vasto mundo / se eu me chamasse Raimundo / seria uma rima, não seria uma solução” era o que concluía o grande bardo das Minas Gerais, Carlos Drummond de Andrade, no seu “Poema de Sete Faces”.
É claro que não é pela força de um nome diferente que daremos a uma bela rosa o aroma de cebola, nem vai ser um nome próprio que trará paz de espírito a um poeta angustiado com a modernidade e com o seu próprio passado. Mas é inegável a força dos vocábulos para atrair ou repelir leitores (o título de um livro, por exemplo), ou para sugerir a natureza dos assuntos abordados por uma coluna de jornal. Por essa razão, então, veio-me a dúvida e, depois, a opção, “ponteio”, que, segundo o Novo Dicionário Aurélio, é o ato ou efeito de pontear (que se conjuga como “frear”), isto é, “marcar com pontos uma linha”, “alinhavar um vestido” ou, principalmente, “dedilhar as cordas de um instrumento”.

Pronto: ponteio. É isso mesmo que eu me proponho fazer: alinhavar umas idéias sobre cultura (literatura, filmes, espetáculos teatrais, musicais, etc.). Pretendo, pois, dedilhar minhas cordas enquanto professor de estudos luso-afro-brasileiros da UMass Dartmouth e enquanto produtor-apresentador de um programa de música, o Brazilliance da WUMD (89.3 FM), que sempre às quintas-feiras (3-6 da tarde) dissemina o maravilhoso legado musical dos países lusófonos aos ouvintes desta região e também do resto do planeta, via Internet.

A inspiração do nome surgiu da nossa memória musical. Partiu de uma canção engajada de 1967, escrita por Edu Lobo e José Carlos Capinan. Era tempo dos festivais de música no Rio de Janeiro e São Paulo. Um pouco antes da censura intimidar os artistas, podia-se clamar: “Era um, era dois, era cem / Vieram pra me perguntar / Ô, você de onde vai, de onde vem / diga logo o que tem pra contar / Parado no meio do mundo / Senti chegar meu momento / Olhei pro mundo e nem via / Nem sombra, nem sol, nem vento / Quem me dera agora eu tivesse a viola pra cantar”.

Nesta página de jornal, minha coluna é minha viola, e espero que vocês também façam parte dessa roda, dessa cantoria bissemanal. Para melhor dela participar, cantem-me acordes e versos através dos seus comentários e outras contribuições que lhes sejam possíveis. Meu e-mail é dborim@umassd.edu. Sejam todos muito bem-vindos!
(29/setembro/2007, p. 17)

Prazeres, Riscos e Danos

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