sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Ai, Jesus! (Uma crônica-sacrilégio)


Ai, Jesus!
(Uma crônica-sacrilégio)


A imagem icônica e majestosa de Jesus Cristo o Redentor de braços abertos sobre a Baía da Guanabara anoiteceu vestindo um uniforme rubro-negro, menos de uma semana atrás. O reconhecimento celestial de uma glória assaz mundana não foi por acaso. Por conta do que de mágico anda acontecendo em campos de futebol do Brasil e Peru, aqui vai um “causo” sobre a questão, como dizemos em Minas. É uma piada da vida real que nasceu inspirada pelo que ouvi ontem de um amigo português, o Francis Mendes. Ele deve ser parente em algum braço da minha multiétnica árvore genealógica! Seria ele um descendente de novos-cristãos? Quem sabe um ex-judeu, supostamente como nós mesmos, netos do saudoso Adolpho Mendes?
O Francis me disse que um canal de TV de Portugal estava colhendo alguns louros nacionalistas por conta do gigantesco sucesso do técnico lusitano Jorge Jesus, do Flamengo, equipe de futebol do Rio de Janeiro. O Mengo, apelido carinhoso do time considerado o mais popular do Brasil, conseguiu a incrível e histórica façanha de obter dois títulos extremamente prestigiosos em menos de 24 horas: campeão da Taça Libertadores da América e da Série A do Campeonato Brasileiro. A primeira conquista foi sacralizada em partida realizada em Lima, Peru, onde seu artilheiro GabiGol marcou duas vezes em dois minutos de prorrogação, virando o placar do jogo quando as esperanças flamenguistas sumiam morro abaixo. Meu amigo Francis até perdeu a fé em Jesus e desligou a TV antes do apito final. Não pôde, pois, vislumbrar o milagre em tempo real. Disse-me que Jesus era meio pé-frio; já perdera muitas decisões de campeonato pela carreira afora. A segunda apoteose aconteceu pela matemática dos pontos corridos do dito Brasileirão, certamente a liga de futebol mais disputada do mundo, por conta de seu elevado número de participantes com reais chances de terminar a competição em primeiro lugar: mais motivo para o êxtase rubro-negro!
Não é pecado, acho, dizer que o Jesus português é hoje venerado ao sul do equador. Disse o próprio outro dia que ainda vai virar “uma lenda na história do futebol canarinho”. Ele é a quem os torcedores cariocas chamam de Mister – será que é porque o homem é um raro estrangeiro no comando de equipes futebolísticas brasileiras, e por isso, um tipo “gringo”? Como se revela pelo seu sotaque, às vezes difícil para o brasileiro entender (tanto que de vez em quando as emissoras brasileiras usam legendas para ajudar os tupiniquins), Jesus é com certeza lá de além-mar, da terra dos nossos patrícios. Curiosamente ele até foi técnico, por muito tempo, do “Flamengo” de Portugal, o clube de maior número de “adeptos”, o também apaixonadamente vermelho Benfica.
Muito bem: vamos ao causo, o mote dessa falsa crônica-sacrilégio. Uma emissora de TV portuguesa, disse-me Francis, estava transmitindo a festa histórica e homérica, com muito samba e muita cachaça, que ocorria em plena segunda-feira nas praças e avenidas do centro do Rio de Janeiro. Milhões, sim, milhões, de flamenguistas homenageavam os jogadores e a comissão técnica da equipe campeã. Todos se viam, de repente, simplesmente no céu. Aí um repórter lusitano se aproximou para entrevistar um torcedor muito exaltado, provavelmente já meio bêbado, como outros milhares de torcedores. Perguntou-lhe:
“Então, pois, que achas do Jesus?”
O carioca não pensou duas vezes:
“O Jesus? Jesus é FODA”!
Imaginem aquela situação, uma chula, mas falsa, blasfêmia de tal ordem – em transmissão ao vivo para todo o país Ibérico! Coisa do carioca, ou coisa do futebol, diria o Nelson Rodrigues!
Mesmo muitos mineiros da gema, como eu, também puderam sentir um gostinho da vitória em Lima. Afinal de contas, a partida que decidiu o título foi contra o River Plate, da Argentina. Então, como os portugueses, eu também tiro aqui uma casquinha de orgulho nacionalista, já que é extradoce e, muitas vezes, comovente vencer os rivais portenhos no futebol. A richa é velha, mas não se esvai com o tempo. É como vinho: só melhora!
Naquela hora do jogo de “sapassado”, em bom mineirês, estávamos todos unidos na justa e gloriosa missão de superar, em terras peruanas, os nossos “hermanos”, como carinhosa e ironicamente chamamos os argentinos. Aliás, juntos estaremos outra vez, mineiros e flamenguistas, logo em dezembro, quando o Flamengo, de Mister Jesus, o Foda, poderá vencer a equipe inglesa do Liverpool, em Qatar. Quem sabe o clube carioca será, com alguma ajuda divina, o Campeão Mundial de Interclubes de 2019? De fato, lá em Minas há muitos flamenguistas, uns até bem chatos, de tão fanáticos. Tem problema não. Lá em Minas tem de tudo. Só não tem mar. Mas pra quê mar – ai, Jesus – se temos tantas e tão belas montanhas que acariciam os olhos e refrescam ainda mais a alma da gente?


domingo, 21 de abril de 2019

Os loucos, a égua, e uma porção de rato // The Madmen, the Mare, and a Handful of Mice (Bilingual)

Brazzil
June 2001
Short Story


Os loucos, a égua,
e uma porção de ratos

Quando os americanos e russos começaram a explorar  o espaço sideral, nós demos ao Marechal uma garrafa velha e suja, cheia de um líquido amarelado. Aquela leva de desalmados havia contribuído  para o presente com uma amostra quente de urina.

Dário Borim
"Esta cidade é de amargar", a gente costumava reclamar o tempo todo no Grupo Escolar Alfredo Galdino, em Paraguaçu, uma cidade de quase 10.000 habitantes no sudeste do Brasil. Pior que aquele marasmo de cidade pequena nos meados dos anos 60, só mesmo um lugar na face da terra: a própria Paraguaçu debaixo de chuva, já que tínhamos que ficar em casa, de papo para o ar.
O que tenho a dizer é vergonhoso, mas não aconteceu por acaso: muitos de nós, garotos que não sabiam como estragar a infância diante da TV, adorávamos insultar e fazer galhofa dos excêntricos da cidade. Os adultos já tinham avisado que havia tantos doentes mentais em Paraguaçu porque primos tinham se casado com primas, tios com sobrinhas, etc. e tal. Isso não significava lá muita coisa para nós. Nós estávamos sempre aborrecidos com a falta do que fazer. Então a gente descontava naqueles que se davam bem com a mansidão geral. Os malucos, então, viravam o principal alvo de nossa frustração coletiva.
É verdade que nossos pais não se cansavam de bater na mesma tecla, lembrando que era rude incomodar qualquer pessoa, principalmente os inocentes que aparentemente careciam de um parafuso ou dois na moringa. E era perigoso, também, porque os doentes mentais não eram responsáveis por suas ações. Mas e daí? Nós éramos umas pestes e precisávamos gastar energia de algum modo.
Na verdade gostávamos de alguns aluados. Um deles era Marechal o Lenhador, um negro de sorriso largo, com cinqüenta e tantos anos de idade. Eu pessoalmente achava que aquele homem tinha algo de sensacional. Gostava do seu cheiro, por causa do charuto barato que morava nas beiras dos lábios, aceso ou apagado. De cabelos grisalhos, ele demonstrava um certo orgulho e com freqüência nos divertia a troco de nada. Empossando o mesmo velho uniforme, como se nunca saísse de moda, aquele senhor gordinho e tranqüilo fazia brilhar e chacoalhar todo tipo de bugiganga, entre medalhas de mentira, pequenas flâmulas, broches de material de terceira, e, curiosamente, até mesmo um bracelete de escravo (de verdade).
Bem, o que importa mesmo é que o velho adorava contar estórias que pareciam não ter mais fim. Você tinha que ter muita paciência. Ao cumprimentar a todos que encontrava pelas ruas, o Marechal descortinava seu sorriso cativante, ao mesmo tempo doce e natural (apesar da saudade dos dentes de outrora). Então logo tentava revelar para fulano e cicrano o seu passado mítico, recheado de lorotas envelhecidas mas nunca esquecidas no folclore infantil dos nossos dias.
Alguns dos enredos mais repetidos eram aqueles da sua apaixonada mas infrutífera contribuição à campanha pela liberdade dos escravos nos idos anos de 1850. Também contava passagens de sua impecável campanha militar durante a Guerra do Paraguai, na década seguinte. Cem anos mais tarde (dava pra acreditar?), lá estava ele, em Paraguaçu: uns biscates no correr do dia, e muita ostentação pela noite afora, por conta da sua desgastada honra de ex-militar, agora catador de lenha das padarias locais.
A criançada não tinha muita consciência. Ele gostava da gente, e nós às vezes acreditávamos naquele mentiroso de carteirinha. Mas também pregávamos umas peças no pobre coitado. Quando os americanos e russos começaram a explorar o espaço sideral, nós demos ao Marechal uma garrafa velha e suja, cheia de um líquido amarelado. Para nosso deleite, dissemos a ele que um amigo seu lhe tinha mandado água da Lua. E era disso que o homem se gabava por todo canto da cidade. Aquela leva de desalmados havia contribuído para o presente com uma amostra quente de urina.
Havia outro pirado na cidade, com quem convivíamos quase que diariamente. Esse companheiro, com idade na faixa dos vinte e poucos anos, representava uma estranha combinação de hippie californiano e bandido de filmes de bang-bang. Como o Marechal, ele também aparecia nas ruas vestindo uma roupa estilizada. Além das botas de vaqueiro, com pequenos sinos nos calcanhares, ele usava uma camiseta de malha branca com um enorme símbolo de paz e amor azul na altura do peito. Uma correia púrpura segurava uns jeans bem desbotados e remendados — talvez sua única calça. Longos cabelos loiros, quase sempre oleosos, às vezes cobriam os olhos azuis grandes, pálidos e irrequietos. Nós todos o chamávamos de Bandido da Lua, mas ele não se importava. O Bandido adorava a gente. Nos papéis de índios, bêbados ou policiais, abríamos fogo uns contra os outros (só de brincadeira), e fazíamos tudo para que ele, o bandido, sempre nos matasse.
O pessoal da cidade soltava diferentes estórias sobre o que causara a doença mental do Bandido. Alguns diziam que ele tinha caído de bicicleta e batido a cabeça no paralelepípedo; para outros, o problema vinha do alcoolismo do seu pai. De qualquer modo, as pessoas da cidade não se importavam tanto com a origem dos problemas do Bandido, mas, sim, com as conseqüências.
Com certeza, o prazer maior de cada dia daquele Bandido era arriscado. Costumava entrar para um lugar público, um bar ou mercearia, por exemplo, cobrindo o rosto com um lenço vermelho. "Mãos ao alto, pessoal", ele gritava, apontando o indicador para diferentes pessoas a cada instante, como se a sua mão direita por si só constituísse um revólver. Poucos segundos após assustar a todos os presentes, principalmente aqueles que nunca ouviram falar da loucura do rapaz, o Bandido da Lua era tomado por um certo riso encabulado. Em seguida se desculpava: "Sinto muito, gente boa, mas está tudo bem. Isso aqui foi só uma brincadeira".
O tiro imaginário do Bandido da Lua estava condenado a sair pela culatra um dia, todo mundo achava. E realmente aconteceu. Foi quando ele pulou para dentro do Banco do Estado de Minas Gerais e repetiu o esquema tradicional. O guarda-de-segurança tinha mudado de outra cidade. Era jovem e imaturo, e, provavelmente, bastante nervoso. A cena do Bandido acontecia às suas costas. O guarda deu um giro e um tiro quase certeiro. A bala atingiu o rapaz fantasiado na orelha direita, despedaçando-a. Ela ainda lhe fraturou uma pequena parte posterior do crânio, mas nada mais.
O Dr. Oscar Gabeira tratou bem da vítima. Afinal de contas, o Bandido não foi tão azarado. Aquela experiência quase trágica o transformou em um moço bastante calmo. Hoje em dia ele detesta fingir de criminoso, e ele não tolera qualquer brincadeira de mau gosto.
Entre outros excêntricos bem conhecidos, havia ainda o baixinho e barulhento Anísio, também conhecido como o Anão Desmiolado. Ele não mora mais em Paraguaçu. No verão de 1990 eu o encontrei. Nós dois visitávamos nossa terra natal. Quando lhe perguntei se tinha saudade de Paraguaçu, Anísio disse que sim, mas que não estava interessado em voltar para lá.
O que ouvi de Anísio a seguir me deixou ao mesmo tempo embaraçado quanto ao seu passado e suspeito quanto ao seu presente. De fato, ele parecia bem em controle de suas faculdades. Soava bem franco, aliás. Disse que gostava de Poços de Caldas, uma cidade turística de certo charme, ali pelas montanhas do Sul de Minas. Mal escondendo uma desconfortável onda de vaidade, Anísio olhou para o chão e comentou em voz baixa: "Sou um bom porteiro em um pequeno hotel lá. É ótimo. Ninguém me enche a paciência. Ninguém sabe que eu sou louco". Não sei por quais transformações ele passara, mas sem dúvida percebia que elas o tornaram uma pessoa diferente: bem mais gentil e reservado do que aquele Anão Desmiolado que todos conhecíamos de décadas atrás.
Nos anos 60 e princípios dos anos 70, ele parecia que gastava toda a sua energia juvenil na esfera pública. Para a maioria das pessoas, acho, ele era tão alegre quanto inconveniente. O rapaz era espalhafatoso em quase todo sentido da palavra. Adorava cantar canções bregas do tipo "Receba as flores que lhe dou / em cada flor um beijo meu". Quando não estava carregando um autofalante portátil, velho e enferrujado, ele fechava o punho direito e levava à boca, fingindo que se tratava de microfone. Sua voz não era nada má, mas desconhecia limites. Com sua voz volumosa no ar preguiçoso de Paraguaçu, Anísio ocasionalmente parava de cantar para se dirigir a qualquer pessoa na rua, sem se importar se estava interrompendo conversas alheias.
O Anão Desmiolado era um cantor desassossegado, por certo, mas também um animado vendedor ambulante. Subindo e descendo as ladeiras da cidade, ele não apenas vendia broas de milho que guardava em uma cesta de bambu, como também anunciava a programação semanal do Cine Íris, a única sala de projeção de Paraguaçu. "Não percam, meus caros! É só hoje à noite. É Benhur, um sensacional filme com Xarton Réuston e todos aqueles leões romanos". Em frente a um de nós, vinha mais propaganda: "É só hoje, queridinho. Vai lá e traz lá papai e mamãe para o Cine Íris hoje à noite".
Naqueles anos, as pessoas diziam que apenas duas coisas deixavam o Anísio ainda mais louquinho. Era o time de futebol do Palmeiras (e como gostava de discutir sobre as partidas e os talentos superiores dos seus jogadores!); e era bobagem, a qualquer hora e em qualquer lugar (uma ereção em público não parecia incomodá-lo nem um pouco!).
Para nós, o Anão Desmiolado era uma personagem favorita em uma série de estórias que escutávamos, inventávamos e espalhávamos sobre certas pessoas da cidade. Não queríamos causar nenhum mal a ninguém; era só uma questão de entreter-nos uns aos outros um bocadinho. O Anão era especial porque, acima de tudo, nos tinha dado uma experiência fantástica, o tipo de aventura que virou fofoca e motivo de orgulho para nós por vários anos.
As pessoas mais velhas já tinham dito que o homem era um "tarado". A gente pensava que ele era mesmo estranho, por cantar e gritar nas ruas, mas a gente não entendeu direito a advertência que nos passaram os adultos. Tínhamos que ver para ter uma idéia do que se tratava. E olha que foi coisa do outro mundo.
Um fim de tarde, depois das aulas, cinco de nós fomos brincar de esconde-esconde no quintal ao lado da loja de meu pai. Era lá que as pessoas da roça "estacionavam" seus cavalos para que elas pudessem comprar roupas e sapatos. Depois de pular o muro, ouvimos um som estranho, um tipo de grunhido vindo do outro lado da cerca de bambu, um espaço estreito e cheio de estrume ao fundo do lote.
De imediato, todos fixamos o olhar naquela direção. O que vimos nos fez segurar o ar e arregalar os olhos por alguns segundos. Julinho, o mais falador da turma, suspirou que aquilo parecia uma figura do livro de História: um cavalo de duas cabeças, uma em cada extremidade do bicho. Mas na verdade era o famoso Anísio. O Anão Desmiolado se encontrava de pé sobre duas pilhas de tijolos, enquanto penetrava uma jovem e satisfeita égua.
Bom, vou dizer uma coisa: o Anão logo descobriu que tinha espiões atrás dele e, então, pirou de verdade. Acho que nenhum de nós jamais tivera que pôr tanta fé nas pernas. Isto foi segundos depois do diabo do Julinho ter a coragem de gritar, "Ah, mas que vergonha senhor Anísio, Anão Desmiolado. Então o senhor está executando a pobre da égua! Vou contar pra cidade inteira, seu desgraçado!"
Rapidinho nós garotos já estávamos fugindo daquela cena de pecado rural. Movíamos sob o telhado baixo e empenado da loja. Lá em baixo meu pai fazia dinheiro e pagava contas; aqui em cima era outra manobra de sobrevivência. O próximo desafio era lidar com as enormes teias de aranha tropicais grudando no rosto, braços e pernas. Engatinhando naquela superfície de laje fria, escura e empoeirada, às vezes resvalávamos a cabeça e as canelas em pregos enferrujados, ou algo parecido. O edifício era grande, e acabamos levando um tempo para atravessá-lo até cairmos na liberdade das ruas. Por fim, conseguimos. Com aquele Anão Desmiolado na nossa cola, apressamos o expediente, como se fôssemos uma porção de ratos fugindo de um edifício em chamas.

The Madmen, the Mare, and a Handful of Mice

When Americans and Russians started to explore outer space, we gave Marshall an old dirty bottle, filled with a yellowish liquid. Of course many of us kids, vile little bastards, had chipped in the gift with the hottest of our urine.

Dário Borim
"This town just stinks," we used to say it all the time at Alfredo Galdino Elementary School, where, in the mid-1960s, most of us had the same opinion about Paraguaçu, a town of approximately 10,000 people in southeastern Brazil. Worse than that sluggish little town, there was only one spot in the entire world: Paraguaçu itself, in the rain, since we would have to stay home, shooting the breeze.
It was a shame, but not by chance, that so many of us kids, who still did not know how to waste childhood in front of the TV, took to insulting and playing pranks on the mad folks in the streets. Grown-ups had told us there were so many loonies in Paraguaçu because cousins had married their cousins, uncles their nieces, and so on. That did not mean much to us. We were bored by the lack of action in town, so we took it out on those who got along with that drowsiness. The lunatics became our dearest target.
It's true our parents never tired. They often reminded us that it was rude to bother anyone, especially the innocent guys that apparently had a screw loose in their heads. It was dangerous too, because the eccentrics weren't responsible for what they did. But who cared? We were naughty, and we needed to do something to keep going.
We actually liked some of the loonies. One of them was Marshall, a black man of broad smiles, in his late fifties. I personally thought he looked cool and smelled great, just because of the cut-rate cigar he constantly kept in either corner of his mouth, lighted or laid out for display. Gray-haired Marshall was proud, and he entertained us quite often, free of charge. Wearing the same old uniform, as if it were not going out of style, the chubby mellow man shone and clattered with all sorts of junk, such as miniature banners, make-believe medals, cheap brass brooches, and, rather curiously, even a slave bracelet (the real thing).
Well, what matters is that the old man loved telling long, long stories. You had to be patient. Upon greeting anyone in the streets, he would unveil an endearing, sweet and natural smile (even if he missed the good old teeth of yesteryears). Then, Marshall would immediately try to unfold, again and again, his mythic past through imaginary tales, which, no matter how old, would remain a vital part of our folklore. Some of his repetitive narratives had to do with his passionate but fruitless contribution to the slaves' struggle for freedom, in the 1850s, or the adventures of his impeccable military campaign in the Paraguayan War, in the next decade. One hundred years later (would you believe it?), there he was, in Paraguaçu: daytime doing odd jobs, nighttime showing off his worn-out officer status as a Marshall that collected firewood for the local bakeries.
We kids did not know better. He liked us, and we sometimes believed that full-time liar. But we played our tricks on the poor guy too. When Americans and Russians started to explore outer space, we gave Marshall an old dirty bottle, filled with a yellowish liquid. For his delight, we told him that an old friend of his had sent him some water from the Moon. And that's what Marshall would boast about everywhere in town. Of course many of us kids, vile little bastards, had chipped in the gift with the hottest of our urine.
There was also a guy we hung around with. This buddy, nearly twenty years old, stood for a strange combination of hippie and gangster. He would also turn up in the streets in stylized attire. Besides the high cowboy boots, with unusual jingle bells by the ankles, he wore a white T-shirt with a huge peace-and-love symbol in blue ink on the upper front side. A purple waistband tied his only, worn-out pair of jeans. Long, curly blonde hair, nearly always greasy, sometimes covered his wobbly, big pale blue eyes. We called him Butt-Head the Gunslinger, but he did not mind. He loved us, since we played battles with him and made sure he, the bandit, always killed us, Indians, drunkards or cops.
The townsfolk circulated different rumors about what caused Butt-Head to be crazy. Some said he had a bicycle accident and hit the cobblestone with his head; some said his Dad was a terrible alcoholic. Just the same: in reality, Paraguaçu people did not care much about the origins of his problems, but their consequences.
For sure the Gunslinger's greatest daily thrill was risky. He'd run into a public place, like a bar or a grocery store, hiding his face with a red handkerchief. "Hands up everybody," he shouted, pointing out at different people as if his right hand itself were a revolver. Seconds after scaring everyone, especially those who hadn't learned about him, the Gunslinger would burst into a self-conscious chuckle. He would then apologize, "Sorry, folks. You're okay. This was just a joke."
Butt-Head the Gunslinger's tricks were likely to backfire one day, townsfolk often said. And it did. That was when he popped into the Minas Gerais State Bank and repeated the traditional skit. The security guard had recently moved from out of town. He was kind of young and silly, and probably very nervous too. The scene was happening behind his back. He turned around and shot Butt-Head. The bullet hit him in the right ear, bursting it into pieces. It still chipped the rear of his skull, but nothing else.
Dr. Oscar Gabeira took care of him. Gunslinger was not too unfortunate, after all. The nearly tragic experience turned him into a mellow young man. Today he hates acting as an outlaw; he can't stand any foul play.
Among the other popular lunatics there was the short and loud Anísio, the guy known as the Crazy Dwarf. He no longer lives in Paraguaçu. In the summer of 1990 I met him while both of us visited our hometown. When I asked him if he missed Paraguaçu, he said he did but was not willing to move back.
What Anísio said next made me feel just as awkward about his past as suspicious about his present. He looked very much in control of himself. He sounded quite candid, actually. He said he liked living in Poços de Caldas, a quaint neighboring city in the south of Minas. Barely hiding an uneasy sense of pride, he looked down and commented in low-key: "I'm a good doorman at a small hotel there. It's great. Nobody bugs me. Nobody knows I'm crazy." I did not know what sort of changes Anísio had gone through, but I certainly recognized they had made him quite a different person: much more gentle and reserved than he had ever been.
In the 1960s and early 1970s, though, he would spend all his youthful energy in the public sphere. To most people, I guess, he was just as cheerful as inconvenient. The guy was boisterous in just about every sense of the word. He loved singing tacky songs through the streets, songs that ran like "Take all these flowers that I want to give you / Through each of them a kiss of mine." When he was not carrying an old, rusty portable loudspeaker, he clenched his right fist, brought it up close to his mouth and pretended to hold a microphone. His voice was not bad at all, but it knew no limits. With his loud music in the lazy air of Paraguaçu, Anísio would approach people in the streets and did not care a bit if he interrupted their conversations.
The Crazy Dwarf was a busy singer for sure, but also a cheerful peddler. Strolling up and town the slopes of town, he sold corn bread in a bamboo basket and advertised the movies showing at the old and only theater house in Paraguaçu: "Don't miss it, folks! It's only tonight. It's `Bengur,' a great movie with our hero `Shurston Herston' and all those big lions in Rome." In front of some of us kids, he added, "It's only tonight, my dear. Bring Mama and Papa to Cine Iris, the cool fantasy house in Paraguaçu."
That was Anísio, who would repeat himself over and over again and pinch and startle any little girl on the cheek, here and there, while saying a long, musical enigma—something like "phe-ee-ee-ka." The initiated knew it was a giddy, distorted rendition of the Portuguese word "filhinha" (little daughter).
Back in the 1960s, people said just two things drove Anísio crazy. It was the Palmeiras soccer team (and how he loved arguing about games and players!); and it was dirty sex, anytime, anywhere (an erection in public did not seem to bother him at all!).
To us kids, the Crazy Dwarf was a favorite character in a series of stories we heard, invented and re-told a thousand times about the townspeople. We did not mean any harm; we just amused one another. The Dwarf was special mostly because we once had an awesome experience with him, the sort of stuff we would gossip and brag about for ages in school.
The older folks said the man was a "sex maniac." We thought he was bizarre by singing and shouting in the streets for nothing, but we could not quite catch what they meant when they warned us about him. We sort of had to see it ourselves to have an idea. And it sure was something else! One late afternoon, after school, five of us were going to play hide-and-seek in the backyard right next to my dad's store. That's where the country people "parked" their horses, so that they could go shopping for shoes and clothes. After hopping in there we heard this strange noise, some kind of groaning coming from beyond the bamboo fence, somewhere on the narrow, manure-filled backside of the lot.
We all looked straight towards that end. What we saw made us hold our breath and stare straight ahead for a few seconds. Julinho, the most opinionated of the group, whispered that the whole thing looked like a picture in his history book: a double-headed horse, one head on each end of the animal. But it was actually the famous Anísio; the short man was standing on two piles of bricks, while penetrating a poor young and satisfied female horse.
Well, I'll tell you what: the Dwarf soon realized he had spies behind him and turned really mad. I guess all of us had never had to trust our legs that way before. This was right after that darn Julinho had the guts to shout, "Huh, what a shame Senhor Anísio, the Crazy Dwarf. So you're screwing the poor mare! Gonna tell the whole town about it, son of a gun."
Pretty soon we kids were trying to flee from the scene of rural sin through the low, creaky, and dreadful wood framework between the concrete ceiling and the red-tile roof of the store. Down below, my dad made the bucks enough to pay his bills; up there, it was another attempt to survive. Next thing we knew was that a whole bunch of tropical cobweb was getting at our faces, arms and legs. Crawling on that dusty, dark stony surface, we bumped our heads and shins against rotten beams and rafters. Now and then, we got a scratch from those darn rusty nails, or something. The building was large. It was tough, and it took us a while to get to the streets. We finally made it, though. With Crazy Dwarf at our heels, we moved fast, as fast as a handful of mice would flee from an old burning house.
Dário Borim is a storyteller with an M.A. degree in Creative Writing and a Ph.D. in Brazilian Literature from the University of Minnesota. He now teaches at the University of Massachusetts Dartmouth. You can reach him at dborim@umassd.edu 

Deus e o Diabo na Terra do Carnaval // God and Satan in the Land of Carnaval (Bilingual)

Deus e o Diabo na Terra
do Carnaval

Brazzil
February 2003

Carnaval em Paraguaçu. Ao som da excelente batucada promovida
pelos músicos da Liga Operária, rugíamos, pulávamos e
lutávamos como felinos esfomeados. Às vezes corríamos e
cacarejávamos em ótimo astral, feito um bando de galos e
donzelas garnisé. Era uma festa total no terreiro da alegria e da descontração.

Dário Borim Jr.
O Carnaval do Brasil, como os de outras nações, tem seus disparates. Lá homem adora se vestir de mulher, pobre se fantasia de rico, e pecado é santificado pelos jovens em praça pública. Será que todo ano Deus faz algum pacto com o diabo e fecha os olhos por somente quatro dias? Não creio, mas parece, porque é muito milagre para um santo só. Por conta de umas afinadas batidas de surdo (e de limão, claro), mais vale é habitar ou sonhar com um mundo onde a alegria e as alegorias de paz e cidadania são produzidas ou patrocinadas por incomparáveis artistas, incorrigíveis malandros e incrivelmente bem-intencionadas — e bem-humoradas! — autoridades.
Nos carnavais das décadas de 1960 e 1970, a Prefeitura da minha pacata cidade natal, Paraguaçu, contava com uma legião de voluntários e organizava dois desfiles de rua: um no domingo, e outro na terça-feira. Claro que tinha mais. Cada um dos três clubes da chamada Princesinha do Sul de Minas oferecia duas matinês para as crianças e quatro noitadas para os maiores de 14 anos. Conjuntos e orquestras tocavam ao vivo, das 11 da noite às 5 horas da manhã. A estratificação da sociedade revelava-se, em parte, através dos próprios nomes das associações. Uma facção da classe trabalhadora ia para a Liga Operária; outra, de indivíduos menos sacrificados economicamente, freqüentava o Democrata; enquanto que a classe média mais abastada e a elite dançavam no Ideal Clube. Nas ruas, a espontaneidade era sempre uma das melhores características da Festa de Momo. Entre oito e meia-noite, os tímidos e os extrovertidos, bem como os cultos e os iletrados, saíam todos para a colorida Praça Oswaldo Costa, onde dançavam, bebiam e apreciavam a maluquice geral.
Naquela primeira noite de Carnaval em 1976, meu irmão José Carlos (o Tatau) e eu pertencíamos a um bloco da pesada: os Homo-sapiens. Éramos um dos maiores e mais extravagantes grupos de foliões. Contando com quase 40 jovens, o grupo de fantasiados dramatizava o seu tema antropológico. Cordões de dentes de plástico nos tornozelos e ossos de galinha no cabelo (ainda tínhamos, todos, muito cabelo) acompanhavam uma túnica de cetim laranja com manchas pretas redondas, semelhantes às de um leopardo. Ao som da excelente batucada promovida pelos músicos da Liga Operária, rugíamos, pulávamos e lutávamos como felinos esfomeados. Às vezes corríamos e cacarejávamos em ótimo astral, feito um bando de galos e donzelas garnisé. Era uma festa total no terreiro da alegria e da descontração.
A música parecia surgir dos quatro cantos da praça, ecoando nas nossas almas adolescentes. O melhor ritmo, porém, ressonava no Bar do Vatinho, para onde convergia a rapaziada mais animada. Ali dançávamos e farreávamos, quando, de repente, uma voz me chamou a atenção para fora do círculo de homens da caverna.
"Alah, Alah, Alah, hundulilah, handulilah", gritava o caro amigo Delson Ribeiro de Andrade. Sem medo, ele se punha de pé numa banqueta do Bar do Vatinho. Ainda assim, conseguia rebolar os quadris ao compasso do samba, enquanto invocava a presença divina de Maomé. Com os cabelos ondulados, agora crivados de confetes, e os olhos castanhos irradiando paz, como que diante de um paraíso em pleno caos Carnavalesco, Delson se vestia de garota havaiana, com muito estilo. Descalço entre outras "garotas tropicais" a esconder os pêlos da face, o vulgo Amarradinho ironizava a lei seca dos árabes e agradecia aos céus por tanta alegria (e cerveja gelada) cintilando no planeta Terra.
A farra continuava sem trégua, mas no domingo à noite, muitos já sentiam a necessidade de assentar por um instante e fazer acontecer outro lado fabuloso da tradição de Carnaval de muitas famílias brasileiras. Antes de sair mais uma vez para o espaço público do Carnaval de rua e dos bailes de salão, era hora de beber e comer umas coisinhas na descontraída intimidade dos parentes e amigos. Desta vez, um grupo de aproximadamente quinze pessoas curtia o frescor de uma noite enluarada. Na varanda lateral da casa de meus pais alguns tomavam a especialidade da estação: whisky com água-de-coco. Dois charmosos coqueiros que ainda cresciam no jardim — quem sabe ameaçando a estrutura da casa — mantinham o nosso estoque em dia. No ano anterior tínhamos colhido, ali mesmo, nada menos que trezentos cocos da Bahia.
Um aspecto divertido daqueles encontros familiares era que certas pessoas, normalmente sérias e reservadas, naquela hora soltavam as rédeas. Muitas vezes este era o caso de meu pai. No espaço doméstico do Carnaval se permitia desfrutar as histórias que filhos, parentes e amigos contavam sob a inspiração maior do elemento alcoólico. Entre tira-gostos e goladas refrescantes, todos eram afetados de um modo ou de outro pelo bom-humor suspenso no ar. Até minha mãe, que aos cinqüenta anos mal suportava meio copo de vinho, deixava transparecer seu contentamento, apesar de uma crescente preocupação com os possíveis excessos dos filhos adolescentes.
As narrativas, retocadas pela animação do relator da vez, muitas vezes retomavam enredos de extravagância e perigo vividos por meu irmão e eu (além de nossos amigos mais aloprados). O cunhado José Côdo recordou, a certo momento, a noite em que minha mãe e sua irmã Guida voltavam a pé para casa, depois de apreciar por algumas horas o baile de Carnaval no Ideal Clube. As duas senhoras passavam pela parte de cima da Praça Oswaldo Costa — os estrondos da música de salão ainda reverberando nos seus ouvidos — quando minha mãe percebeu algumas marcas de sangue no passeio por onde andavam. Quando as duas irmãs viraram a próxima esquina, a da casa de Tia Noêmia, continuaram seguindo as mesmas marcas.
Um quarteirão acima, as duas respeitáveis senhoras viraram à direita e continuaram seguindo as bolas de sangue. Mamãe já estava preocupada — afinal de contas, ela é Mendes — quando sua pressão sanguínea subiu pra valer, pois as bolas de sangue cruzaram a rua, subiram as escadas e passaram para o outro lado da porta de entrada de nossa casa. Uma vez dentro da casa, ela nem precisou olhar para o chão. Atravessou a sala e foi direto ao quarto dos meninos.
Minha irmã Silvana falou da rápida e variada sucessão de sentimentos. Primeiro, mamãe é tomada pelo medo, ao ver as marcas subindo as escadas; depois, pelo nojo e a pena de ver o filho mais velho, Tatau, dormindo em uma poça de vomito. Por último, ao acender as luzes e pesquisar bem a situação, mamãe certamente entrou em grande confusão: apesar do sangue acumulado ao lado da cama, o filho de dezoito anos não apresentava qualquer ferimento. Aliás, dormia feito uma múmia, e assim permaneceria por muitas horas manhã adentro. O mistério continuava vivo para alguns dos presentes àquela reunião pré-carnavalesca.
"Mas, e as marcas de sangue?", perguntou minha prima Nilbe. Com uma risada mal contida Silvana explicou que Marcelo Viana, outro Homo-sapiens, tinha percebido que Tatau se encontrava muito bêbado no salão do Ideal Clube e precisava de um bom banho frio. Para Marcelo, a água suja da fonte da Praça Oswaldo Costa era a solução. Mas o Bom Samaritano se deu mal com um caco de garrafa, que lhe cortou o pé no fundo da fonte. Como Marcelo também era chegado ao "mé", naquela noite encontrava-se anestesiado demais para notar qualquer coisa estranha consigo mesmo. Só assim pôde dar continuidade ao seu projeto humanitário, e quase matar d. Lucci Prado Mendes Borim de pavor.
Nenhum show da Terra, não importando se é bom ou se é ruim, deixa de ver, um dia, o seu próprio fim. Mais uma Quarta-Feira de Cinzas, então, chegou como sempre chegava: trazendo fadiga e ressaca. Entre outras mudanças, era hora de voltar para o trabalho e para os estudos. Parentes, amigos e amantes se despediam sem muita alegria, vigor ou poesia. O silêncio profundo desde as sete da manhã era costumeiro, enquanto o sol naquele dia nacional da dor-de-cabeça seguia seu curso normal. Boa parte do comércio permaneceria fechada até o meio-dia. De repente,
"Dleng, dleng, dleng...," mas poucos seres adormecidos sequer tinham ouvido os quatro imensos sinos da Igreja Matriz marcando presença em todas as casas e anunciando que eram dez horas. Por certo não faltou quem praguejasse aquela invasão de lares católicos e não católicos.
Logo a seguir ecoou, por toda a cidade, uma canção falando de anjos e pastores, seguida de um vozeirão:
"Anúncio. O Dr. Félix, oftalmologista de Varginha, estará atendendo a população de nossa cidade nesta quinta-feira..."
Vieram outros três ou quatro anúncios de propaganda e de serviços da Igreja, até que uma pausa se instaurou. Mas durou pouco, pois outra melodia logo alcançava os cantos mais remotos da cidade. Desta feita o tom era bem mais lúgubre:
"Ave Maria, bla, bla, bla..."
Teria Franz Schubert terminado sua famosa peça sacra se soubesse que ela seria recebida nos Trópicos com tantos palavrões?
Quando alguns foliões já tinham conseguido retornar ao sono, apesar do encanto melódico daquela obra clássica, voltou o vozeirão no alto-falante da Igreja Matriz:
"É com grande pesar que anunciamos o falecimento do sr. João de Deus, cujo corpo está sendo velado à rua..."
Para alguns revoltados, aquilo soava como um caso de injustiça divina. Paraguaçu não tinha uma estação de rádio, e a culpa recaía sobre os ombros — digo, os ouvidos — de infelizes bebuns e mocinhas namoradeiras. Mas, talvez fosse a voz de Deus abrindo alas, ao som de um ária triste. Sua mensagem, era, afinal, deveras realista:
"Cuidado, galera! O diabo do samba, do cigarro e da cachaça também mata. E nem tudo é Carnaval".

God and Satan in the
Land of Carnaval

Carnaval in Paraguaçu. We ran around crowing like big roosters
on drugs, or maybe hyper-excited hens in lust. With
toy-teeth laces around our ankles and chicken bones on our heads,
this flock of teenage pals was roaring and jumping, fighting and running.
It was a total blast on that voodoo land of joy and relaxation!


Carnaval in Brazil has its own peculiar absurdities, just like similar celebrations do in other countries. There, men just love dressing up as women. The poor get away as if they were rich, and certain sins of the youth are sanctified outdoors, usually in public squares. Is it possible that God strikes a deal with Satan, every year, and closes his eyes for just four days? I don't think so, but it looks like it, because Carnaval is too much of a miracle to be bestowed upon us by one saint alone. With some alluring drumbeat in our ears and some delightful caipirinha shots in our throats, it's better not think too deeply. Let's just live in or dream of a world, instead, where enjoyment and allegories of peace and civil rights are produced or sponsored by incomparable artists, incorrigible rascals, and, believe me, well-humored city authorities.
As it happened in many small towns of Minas Gerais in the 1960s and 1970s, the Paraguaçu City Hall and a good legion of volunteers would put on two major street Carnaval parades: one on Sunday, the other on Fat Tuesday. There was more, of course. Each of the three social clubs in town organized two matinees for children and four night parties for fourteen-year-olds or older. Live bands and orchestras performed from eleven in the evening to five in the morning. The stratification of society stood out through the very names of the private clubs. The blue-collar went to League of the Laborer; the better off of the working class, so to speak, attended the Democrat; the middle-class and the elite, in turn, frequented the Ideal Club. The spontaneity of the yearly festival was one of its best assets. Roughly between eight and midnight, the outgoing and the timid, the educated and the illiterate, all went dancing side by side¯whether in the highly decorated central square or at noisy different bars.
On that first Carnaval evening in 1976, my brother (best known as Tatau) and I belonged to a large group of costumed revelers, certainly one of the liveliest sets of buffoons on the streets. Forty of us, The Neanderthals, lived up to our theme, in our orange cotton garments with black leopard spots. We ran around crowing like big roosters on drugs, or maybe hyper-excited hens in lust. With toy-teeth laces around our ankles and chicken bones on our heads (most of us still had good chunks of hair), this flock of teenage pals was roaring and jumping, fighting and running. It was a total blast on that voodoo land of joy and relaxation!
Music from just about everywhere, inflated our buzz. The best rhythm, though, resounded from Bar do Vatinho, the open-air hang-out, a favorite spot for batucada, the jam session for samba dancing. Suddenly I could here somebody babbling,
"Allah, allah, allah, hundulillah, hundulillah." Somebody was shouting again and again in front of the watering hole. It was Delson, one of my dearest childhood friends, swinging his hips to the samba beat. With crispy dark hair and soothing brown eyes, he was a funny dude dressed like a Hawaiian girl. Barefoot, among other "young ladies" doing their best to hide their facial hair, and the rest of the crowd packing onto the sidewalk in front of the bar, Delson now evoked the goodwill of the Muslim divinity and thanked the Holiness for such hurrah.
The party went on without a break. When it was Sunday evening, though, many people already felt the need to slow down for a little while. They would then put together another side of Carnaval¯actually, a fabulous family tradition in Brazil. Before going out once again into the public sphere of that four-day holiday (the streets and the ballrooms), various generations would sit around in a circle to eat and drink in casual intimacy. This time we were sitting on the side porch of my parents' home. While some fifteen of us siblings, cousins and other relatives lingered around, some drank the specialty of the house: whisky mixed with milk from newly-picked Bahian coconuts. The two nearby trees in the front-yard perhaps threatened the stability of the house, but in the meantime they kept us supplied. They were good trees. The year before we had harvested over two hundred coconuts.
One of the amusing sides of these family meetings was that people who didn't habitually drink ended up consuming some booze and then bringing forward the oddest sides of their personalities. This was frequently the case with Dad. Usually adopting an austere pose towards daily matters, he, at Carnaval time, tended to let down his hair. He was actually able to enjoy the spicy stories people told each other between hot canapés and refreshing sips. Even Mom, who at the age of 50 could not drink a glass of wine without feeling a bit dizzy, seemed to enjoy our gatherings all right, despite an occasional look of concern about her teenage boys' probable excess. One could clearly feel her mellow-sweet look of detached appreciation.
The stories, often exaggerated by the enthusiasm of each storyteller in charge, retold the adventures of danger and extravaganza involving my brother and me (apart from our most agitated friends). At a certain point, José Côdo, my future brother-in-law, recalled the day Mom and her sister Guida were going home after spending some time at the Ideal Club. In their late forties, they usually felt they were too old to dance, but they had a particular interest in watching the costume contests and laughing at the widespread silliness throughout the ballroom.
The two ladies were walking through Oswaldo Costa, the town's central square. With loud music echoing through her ears, Mom noticed bloodstains on the sidewalk. She and Guida turned the next corner, so did the spots. One block ahead the ladies turned right¯again they were following the smears. Mom was getting worried. By the middle of the block, she was on the verge of panicking: the bloodstains went marching up our steps and through our door. Inside the house she didn't need to look down at the floor; she went straight to the room of the teenagers, my brother and I.
A couple of years later my sister Silvana spoke of the variety of feelings Mom must have gone through: first, dread at the door; then, pity and disgust at the sight of her older son sleeping in a mass of vomit. At last, Mom was in utter bafflement, for she could see very clearly that her seventeen-year-old was not hurt at all. Mother would be puzzled till the next day, since her son had turned into a mummy and would remain one for quite a few hours. To those on the porch who hadn't ever heard the end of the tale, the mystery was still buried.
"But what about the bloodstains?," my cousin Nilbe wondered aloud.
After a short grin Silvana explained that Marcelo Vianna, another Neanderthal, had thought Tatau was too drunk to be left alone at the club. Trying to be a Good Samaritan, Marcelo decided to give him a cold bath in the central square fountain. The "good boy" ended up cutting, very deeply, his own foot on the bottom of the pool. Rather wasted himself, Marcelo didn't perceive his injury. He carried out his humanitarian deed by delivering the sick and, as we knew it, almost scaring Mom to death.
No show, however good or bad, may go on entertaining us forever. So, it had been a typically quiet Ash Wednesday morning in 1976. Ash Wednesdays bring about fatigue and are normally the most depressing day of the year in Brazil. People realize they have to go back to work and school, and siblings, friends and lovers part. The moveable and renewable fantasy of Carnaval is doomed to turn into crude reality for another year, without as much fun, energy or poetic adventure.
Traditionally a national hangover day, the sun was up but the air was now toned down due to the extravaganza of the night before. It was only ten o'clock, businesses remaining closed till noon at least. All of a sudden, "dleeng, dleeng, dleeng," there came rattling the mighty church. The unrelenting clangs knew no challengers. The four bells entered everyone's home. They trespassed people's privacy as though all of us were Catholic, as if one tenth of the sleeping Christian or pagan souls ever cared about religion on the day after such profane rioting.
"What are these goddamn bells ringing for?," maybe hundreds of people¯especially the town visitors¯were asking themselves at that very moment.
After the annoying twangs, four loudspeakers played some annoying song about angels and shepherds. Then a sober voice broke out:
"Announcement. Dr. Félix Moreira, an optician from Varginha, will be attending in Paraguaçu…."
Another two or three ads, news on church or bureaucratic affairs, and some loud music reached the remotest ends of town. The tone had radically changed:
"Ave Maria, blah, blah, blah…." I wondered if Franz Schubert would have finished this composition had he known that so many people would curse his music one hundred years later in the tropics!
When some folks had finally managed to go back to sleep, thanks to the soothing Austrian mourning aria, they were rudely awakened again. After the music, the loudspeakers' message returned:
"We regret to announce the death of Sr. João de Deus, whose corpse has been veiled at…." It was just unfair, a case, perhaps, of divine injustice. Paraguaçu didn't have a radio station and the burden of such news and ads had to fall on the unhappy revelers and worn-out lovers alone! But maybe it was God's words out there, opening people's minds with a sad tune. His message was, after all, rather realistic:
"Watch out, wild folks. Satan, that hides behind all that samba, all that cigarette, and all that devilish rum-like cachaça, also kills. And there is much more about living than just Carnaval."

"Deus e o diabo na terra do Carnaval," was excerpted from Paisagens Humanas (Paraguaçu, Minas Gerais: Editora Papiro, 2002). This book was launched in Paraguaçu and Belo Horizonte, Minas Gerais, last December.
Dário Borim, the author, is a storyteller with an M.A. degree in Creative Writing and a Ph.D. in Brazilian Literature from the University of Minnesota. He teaches at the University of Massachusetts Dartmouth. You may reach him and get information on how to obtain the book through his e-mail, dborim@umassd.edu   

Um dia de cão em Paris // A Dog Day in Paris (Bilingual)

Brazzil - Literature - August 2003 

Um dia de cão em Paris (Bilingual)

Enquanto que aquela cena teatral se desenrolava, bem
no fundo da minha cabeça eu imaginava o que
provavelmente pensavam muitos dos transeuntes que
nos viam: "esses estúpidos américains. Não conseguem
nem controlar o apetite sexual dos seus bichos de estimação!"

Dário Borim
Para alguns sujeitos do meu tipo, peitudo e pretensioso (apesar de nascido em uma cidade pequena como Paraguaçu), as cidades grandes são maravilhosas fontes de surpresa e aventura. Talvez por isso eu aprendera a amar Belo Horizonte desde os meus primeiros contatos com a capital dos mineiros, aos 13 anos de idade. Talvez a mesma atitude tenha-me levado a passar minhas primeiras horas em Nova York em completa imersão no mundo doido e desconhecido do Central Park, até altas horas da noite. Bem, esta última façanha foi em uma era diferente, 1981. Eu tinha 21 anos: nem podia e nem queria imaginar os riscos rondando aquela famosa parte da cidade.
Dez quilos e dez anos mais tarde, eu já deixara de ser tão burro, inocente ou descuidado. Era uma outra década, e a linha do meu cabelo tinha recuado uns cinco centímetros, ou mais. Apesar de ainda ser estudante e padecer da mesma falta de grana (como sabem, bolsas de estudo não cobrem viagens de férias), sentia-me perfeitamente seguro e preparado para visitar, pela primeira vez, o coração da França. Mal podia eu saber, entretanto, que apesar das precauções, dos mapas e de uma companhia atenciosa e carinhosa (a minha própria esposa em nossa Lua de Mel), nada me impediria de ter um debut completamente desastroso em Paris.
Tudo começou num pequeno café-lanchonete, a uns dois quarteirões do monumental Museu do Louvre. Um pouco antes da hora do almoço Ann e eu conseguimos pedir, em francês, um sanduíche tipo croissant sem saber exatamente a natureza mais banal do recheio: presunto e queijo. Certamente estávamos excitados para iniciar uma longa maratona de Miguelangelos e Renoirs. Era melhor enchermos a pança antes de ficarmos animados demais e perdermos a fome. Por ora, para quê nos importarmos com dois cachorros—uma fêmea pequenina e charmosa, e um machão meio marrom, com cara de bravo—também circulando por ali, naquele café enfumaçado, já que era dezembro e o ar frio lá fora não atraía nenhum ser, racional ou irracional? Além do mais, estávamos em plena França, onde tantos cachorros e gatos demonstram pelas calçadas todo ofinesse das suas roupinhas de bicho burguês e todo o fedor das suas fezes indiscretas.
Depois de sair do café, eu ainda tentava calcular quantos dólares tínhamos gastado com aquele lanchezinho de araque quando comecei a sentir umas garras de pouco mais de dois centímetros me arranhando na altura dos quadris. Antes que pudesse reagir, algo mais grave começou a rolar: uma língua quente e animalesca me lambia no traseiro bem arrebitado que Deus me deu. A coisa piorou ainda mais (engrossou pro meu lado, vamos dizer assim), quando percebi que um certo bastão de carne roçava o interior das minhas coxas.
Sem muita coragem para encarar a realidade de frente, isto é, de trás, fui logo gritando, "Meu Deus do céu, que diabo é esse me grudando aqui nas pernas". Eu já podia ler no olhar avermelhado da minha esposa a confirmação de que a situação era bem delicada, pois, como eu supunha, havia um cachorro enorme tentando me executar ali mesmo, no meio da rua.
"Damn dog, go away, go away!", gritou Ann, em inglês — algo como "saia daí, seu cachorro desgraçado". Mas pra quê, se aquela criatura francófona com certeza não entendia a língua dos velhos rivais, os ingleses? Enquanto eu tentava me desvencilhar, lembrei-me de que deveríamos procurar alguma expressão francesa que carregasse grande força retórica, uma ameaça autoritária qualquer que fizesse o cachorro parar com aquela sem-vergonhice—algo do tipo "senta, filho da mãe", ou "some daí, seu puto". Ora essa, mas que brincadeira besta era aquela comigo!
Já que a minha cabeça andava atrapalhada de tanto susto e medo, eu nem conseguia retirar da memória uma única palavrinha francesa daquelas aprendidas com o Irmão Ivo no Juvenato de Paraguaçu. Então implorei para que Ann descobrisse ou inventasse alguma expressão útil na língua de Marcel Proust. Não saiu nada que prestasse. Ela fez lá uns sons estúpidos em alguma língua estrangeira, "saiê, salê, fuera", mas o bicho não estava nem aí. Continuou no abuso de minha dignidade sem dar bolas para os apelos da minha esposa.
Enquanto isso eu tentava caminhar mais rápido, mas o bicho não me deixava em paz um só segundo. Preso às suas garras, experimentei o truque de girar em torno de mim mesmo, sem me deslocar, com a inútil esperança de conseguir estontear o cachorro desalmado. A única conseqüência foi a de que fiquei eu ainda mais confuso diante daquela situação embaraçosa. Ann então começou a rir, de nervosa. O seu idioma português foi mais uma tentativa a fracassar: "Não cachorro—pelo amor de Deusnão!" Esporadicamente eu notava nela uma luz esquisita nos olhos e um amargo na voz. Logo perdeu a compostura, e apelou, como uma "carioca" que morava no Rio de Janeiro nos 80: "Pára, porra, pára!"
"E agora o que fazer?", perguntei-me em voz alta. Pelo menos não havia mais que cinco ou seis pessoas em todo o quarteirão—menos vergonhoso, pensei. Então um de nós disse (e até hoje nem ela e nem eu sabemos quem foi) que aquele cachorro miserável provavelmente era um dos bichos que a gente viu na lanchonete. Especialmente por causa da coleira, que parecia ter as mesmas faixas vermelhas ao meio. É, não havia dúvida: era mesmo aquela combinação gigante de bulldog e pastor alemão (a boca e o pêlo do primeiro, o tamanho e a altura do segundo).
Aquele estranho episódio já se prolongava pelos mais longos dez minutos da minha vida até então. Na próxima esquina, quase a um quarteirão do ponto em que se iniciara aquela tragédia canina, dobramos a direita e Ann aparentemente conseguiu uma saída para o nosso sofrimento: a enorme porta de vidro de um prédio à nossa direita. Ela correu naquela direção e eu a segui, por um instante livre das garras no animal. Entretanto, ele logo nos alcançou, bufando, mas sem deixar de ofegar ou "babar de desejo", como me diria minha companheira, horas mais tarde.
Ann e eu até hoje descordamos sobre quem de fato teve a idéia, mas, não importa: nós três pudemos entrar no prédio por aquela porta de vidro. Logo depois dela sair eu consegui fechar a passagem atrás de mim, bloqueando o monstro cujas narinas só queriam saber dos prazeres das minhas pernas.
"Liberté avec élégance", gritei em francês pela rua afora, em júbilo total, em uma forçada tentativa de levantar o meu sentido de dignidade. Mas que ingenuidade a minha! Nós já nos encontrávamos quase em frente ao museu, a pouco menos de 200 metros de distância, quando senti algo muito ruim. Aquelas terríveis garras me grudavam de novo nos quadris. Eu nem acreditava mais no que via ou sentia; parecia que todos os parisienses conspiravam contra nós naquele dia. O porteiro do prédio não tinha tido a menor dó e fora logo soltando o cão tarado, que acabou chegando a mim antes que eu chegasse ao Louvre.
Meu embaraço era muito maior naquele momento. Ainda com medo de tocar na fera optei por dar mais um giro, mas o cão também girou. Não dava nenhuma trégua na sua busca por prazeres pornográficos com um ser da espécie humana. O bicho queria praticar, vamos dizer, o inverso da bestialidade. (Que nome poderíamos dar a tal ato de selvageria sexual?) Talvez porque Ann venha de um estado americano nacionalmente famoso pela sua "gente polida" (Minnesota nice) e tenha exercido uma influência positiva sobre o meu jeito de ser levemente descarado (ou mundano), nós até que xingamos poucas vezes aquele cão-capeta, em português ou inglês.
Enquanto que aquela cena teatral se desenrolava, bem no fundo da minha cabeça eu imaginava o que provavelmente pensavam muitos dos transeuntes que nos viam: "esses estúpidosaméricains. Não conseguem nem controlar o apetite sexual dos seus bichos de estimação!" Na realidade não aparecia uma única alma viva para nos ajudar. Aliás, era uma pena que não havia nenhuma arma de fogo ao meu alcance, porque, totalmente desonrado por aquelas repetidas tentativas de estupro eu queria mesmo era meter bala naquela criatura inescrupulosa.
Pensamento positivo tem os seus limites, é claro. Então Ann e eu resolvemos que nós três entraríamos para o museu de qualquer forma. Talvez os seguranças daquela distinta instituição pudessem fazer algo por nós. Eu já estava pensando que nós nos encontrávamos não exatamente na Europa mas em uma hipotética Índia do Primeiro Mundo onde certos animais eram sagrados (entre eles o tal do cachorro) e tinham todo o direito de destruir a felicidade da espécie humana.
Em um salão bastante largo, que nos levava à entrada do Louvre propriamente dita, ouvi minha esposa tentando explicar a situação para os dois guardas ali de plantão, um homem e uma mulher. Com um inglês meio capenga, mas certamente melhor que o nosso francês confuso e minimalista, os guardas puderam fazer perguntas e compreender que o cão (pelo amor de Deus!) não era nosso. Mas enquanto que a ralação e o babado continuavam do mesmo modo por parte do animal feroz, os guardas confessaram não ter a menor idéia da providência certa a tomar diante do nosso estranho caso.
No momento em que um dos guardas solicitava ajuda pelo rádio, a mulher de uniforme nos deu uma brilhante sugestão: que tal me "prenderem" na guarita de vidro instalada em um canto daquele salão de entrada e, impedirem, é claro, que o animal me acompanhasse até aquele "esconderijo"? Não é que o truque aparentemente deu certo! O que, de fato, não significou que o pesadelo tivesse acabado por completo. Tudo estaria bem se o filho-de-uma-cadela não resolvesse dar, ele próprio, um plantão ali no salão, arregalando os olhos, arfando com as narinas dilatadas, e rodeando a minha guarita sem desistir um minuto da minha companhia ou do meu charme.
O que tinha tudo para ser um fantástico alívio agora me fazia sentir ainda mais machucado. Bandos e mais bandos de turistas entrando para o museu, geralmente crianças japonesas, agora paravam para fazer perguntas, assistir e fotografar (imaginem a honra!) aquele bizarro espetáculo envolvendo um paraguaçuense expatriado em desespero e um cachorro parisiense em plena tara. Por detrás do vidro eu pude observar que minha esposa fazia de tudo para parecer calma. Para isso olhava para os lados e tentava relaxar os músculos da face. Aí veio outra cena de me tirar do sério. Chegaram mais guardas e, a um certo momento, um deles teve o conhecimento de inglês necessário e a petulância de um bobo da corte pra dizer a Ann que ele sentia muito, mas que não havia nada a fazer, pois aquele cão estava loucamente apaixonado pelo seu esposo. (Onde é que havia de existir uma pistola, meu Deus?)
Bem, eu mal podia acreditar na acuidade das minhas retinas quando aquela mulher de uniforme (a "boa samaritana" que quis me colocar na guarita) decidiu que ela podia muito bem correr um pequeno risco e grudar a coleira daquele bicho sacana. Assim o fez ela, como muita coragem, e o animal, para a surpresa de todos, reagiu bem, até com uma certa civilidade. Ela, então, levou o cão até um daqueles cordões divisores, de veludo vermelho (típicos de cinema), e ali algemou o filho-de-uma-cadela pela coleira.
Libertas quae sera tamen, dessa vez eu quase gritei o lema mineiro de liberdade, em latim. Mas era bobagem, e eu não queria passar por louco. Queria era esquecer o acontecido o mais rápido possível, mas nem isso eu consegui, apesar do momentâneo alívio. É que logo mais teria outra sessão de pavor ao ver tantos cães pintados nas distintas telas do museu. Por isso acabei passando o resto do dia em um estado de náusea, carregando comigo as marcas concretas daquela insolência animal. Minhas pernas e braços estavam arranhados e as pernas da minha calça jeans guardavam os odores de dois cães: o do bicho tarado, com certeza, e, provavelmente, o de uma cachorrinha no cio, aquela que se chocou contra as minhas pernas pelo menos duas vezes no pequeno café parisiense.
Foi assim a minha visita ao Louvre — aquele majestoso museu que deveria ter sido o portal de ouro para a Cidade das Luzes. Cultura, arte, transcendência, estes eram os sonhos de um ex-menino de cidade pequena que se transformara em aventureiro internacional para depois virar intelectual de cidade grande. Em Lua de Mel eu acharia quase tudo muito sofisticado e elegante no Velho Continente, dos canais de Amsterdã às fontes de Florença, exceto Paris. A ocasião que poderia ter-se tornado a melhor parte da viagem por vários países da Europa, com ecos da inteligência de Simone de Beauvoir e James Joyce às margens do rio Sena, por exemplo, na verdade só me deu vergonha e ódio. Fui levado a um tal nível de humilhação pública que a minha única indenização por tantos danos morais foi pensar que um dia eu teria um bom material para uma história, a vingança de um dia de cão em Paris.

A Dog Day in Paris

As that theatrical scene unfolded, deep down in my psyche I
assumed the thoughts of some of the many people
walking by us: "These stupid américains. Can't even
control their own puppies' appetite for sex!"
There was no one to give us a hand, though.

Dário Borim*
For people like me, daring and pretentious (but born and raised in a provincial small town like Paraguaçu, Southeastern Brazil), big cities were dream-like sites of adventure and surprise. That's probably why I learned to love Belo Horizonte on my third visit to the capital of Minas Gerais, at the age of 13. That's probably why, also, my first hours in New York City were a total immersion into the wild and unknown world of Central Park quite a few hours after dark. Well, that was a different era (1981). I was twenty-one. I could not or did not want to imagine any risks roaming that part of town.
Ten years later and twenty pounds heavier, I no longer played that dumb or that stupid. It was a different decade, after all, and my hair had grown a lot thinner. Even though I was still a broke full-time student (graduate scholarships, after all, don't pay for trips abroad), I felt perfectly safe and ready to visit the heart of France for the first time. Little did I know, however, that being cautious, following maps, and having a smart and caring companion, such as my own wife on our honeymoon, would not prevent me from having a disastrous debut in Paris.
It all started at this tiny café, a couple of blocks behind the monumental Louvre. At lunchtime, my beloved Ann and I managed to order, in French, a sub-like sandwich unaware of its most trivial ingredients: ham and cheese. It certainly was going to be a marathon of Michaelangelos and Renoirs and we'd better get fixed before getting too enthusiastic to eat. Meanwhile, why bother the two puppies—one, a small and delicate female; the other, a brown and gross-looking male—sharing the smoky quarters, since it was December and the chilly air didn't appeal to any one, humans or beasts? Weren't we in France, where so many cats and dogs in the streets showed real style in clothing and pooping in semi-hidden corners?
Once outside again, I was still trying to figure out how costly that ordinary snack had been in dollars, when I felt these inch-long claws scratching my hips. Before I could react, something worse started to happen: I could feel this hot, animalistic tongue licking my rounded buttocks. The whole affair got really bad (let's say, darn hard on me) when I noticed this fleshy stick rubbing the insides of my thighs.
Without any courage to gaze at ugly reality face-to-face, I immediately asked my wife "Oh my God, what the hell is going on?" Too surprised to understand what was cooking behind me, even too afraid to take a decent peek at the imaginable perpetrator, I could read Ann's distress through her reddish face and then realize that there actually was a gigantic dog trying to hump me right there, in the middle of the street.
Ann shouted in English, "Damn dog, go away, go away!" and I attempted to disentangle myself from the animal. But what was the use of such words, if that Francophone creature surely could not master the tongue of the old rivals, the Britons? While I carefully tried to get out of that sexual trap, it soon dawned on me (at this point fearful and helpless), that we ought to remember some French expression that carried a sense of power, that forced this dog to "stop!" or "sit down!" or "go away!" or "fuck off!" Since, in my troubled mind, I couldn't even open the file of my middle-school French notes, where some rusty lessons from my Canadian teacher might have survived two decades of oblivion, I begged Ann to recall something to that effect. Apparently no lexicon of hers seemed right. She murmured and mumbled foreign sounds of some sort, like "sigh-ay, salee, fuera," but nothing caused the dog to change its way. The animal continued abusing my dignity without giving a hoot to my wife's innocuous appeals.
In the meantime, I tried to walk faster, but the beast wouldn't leave me alone for a second. Stuck on the sidewalk, I tried to turn around and around, hoping to make the dog dizzy, yet the only result was more confusion in my own head. In fear, Ann started to lose it, after laughing rather nervously at me for a while. She started to shout in Portuguese, her second language, "Não cachorro—pelo amor de Deusnão!" as if she were pleading mercy by the love of God. Sporadically there was a taste of horror in her tone of voice, and she went on and on with "Pára, pára, porra, pára!," all of which to no avail. Ann had forgotten about keeping a face. As a goodcarioca, which she was in the early eighties, she cursed in the face of the beast with something nearly as bad as "Knock it off, fucker, just knock it off."
"Now what do we do?" I wondered aloud. At least there weren't more than five or six pedestrians in the entire block—less shame, I guess. Then one of us said that that dog was probably one of the puppies at the snack-bar. (I don't quite know, today, and neither does my wife, who spoke and who listened at that point.) The other agreed. Especially because of its thick leather collar with a red stripe in the middle, there was no doubt: it was that beast, which appeared to be a strange and huge combination of bulldog and German shepherd, the mouth and general body shape of the former plus the size and height of the latter. At any rate, I even hate the thought of remembering the features of that bastard now, as I write. What a scumbag!
This strange sort of affair went on for some of the longest five minutes of my life. Then, at the next corner, about a block away from the site of our encounter with the beast, we took a right, and Ann managed to see an escape to our canine tragedy: a large glass door to the building that lay all along that block, to our right. She ran toward that way and so did I without the animal, momentarily left behind us. However, it soon caught up with us, gasping but seldom failing to pant or "foam at the mouth in lust," as Ann put it later.
My wife and I still argue about it, so I can't really say whose plan it was, for sure. But the deal is, the three of us were able to get inside that large building. I didn't even care to see if it was a business or residential complex. Quickly after Ann, who was inside for no more than ten seconds, I turned around and fled the building myself, making sure I closed the door right between my protuberant tail end and the dog's disgusting snout.
"Liberté avec élégance," I proudly told myself in French, in an attempt to raise my sense of dignity while Ann and I ran like mad dogs away from that building. We were already in front of the museum, basically six hundred feet from the back door, when I nearly froze inside: those terrible claws grabbed me by the hips from behind again. I simply couldn't believe it, but apparently all the Parisians were conspiring against us. The darn doorman we saw at the building must have released the animal that apparently could not live without the fragrance and pleasure of my legs. As upsetting as it may seem, the monster reached me before we could reach the Louvre.
My embarrassment was much deeper now, but for the most part I still operated on the stereotypical attitude known as "Minnesota nice." Still afraid to touch the dog I once again tried to turn around and around, but the beast wanted no break. He went on and on with his pornographic business involving a member of the human species. What the dog sought after was the reverse of bestiality. (What name could we assign to such an act of sexual savagery?) Perhaps because she is a good Minnesotan who has had a pretty positive influence on my slightly shameless (or mundane) ways, my wife and I did shout for help but rarely cursed at the beast, in English or Portuguese.
As that theatrical scene unfolded, deep down in my psyche I assumed the thoughts of some of the many people walking by us: "These stupid américains. Can't even control their own puppies' appetite for sex!" There was no one to give us a hand, though. Too bad there was not a gun at hand either, because, utterly dishonored by that attempted rape, I might have easily shot the horrendous creature.
Wishful thinking has its limits, I guess, so we decided the three of us would enter the museum anyway. Perhaps the security guards there could do something. I was already thinking we were in a First World India where certain animals (among them the illustrious canine species) were sacred and had all the freedom and privileges they aspired to.
In a wide hall that led to the main entrance to the Louvre, I heard Ann try to explain the situation to two of the guards, one male and the other female. Their English, rather broken, but certainly better than our own confusing and minimalist French, was apparently good enough for them to understand that that dog (thank God!) was not ours. While the humping and foaming and scratching continued, though, none of the guards knew what to do in light of such unusual and comical circumstances.
When some of them were using their radio to call out for help, the female guard had a brilliant idea. How about "locking him up" in the glass security booth set in a corner of the hall, and "keeping the dog outside, of course"? Isn't it just swell that the trick worked? For me, it was very comforting to be alone in that closed area. Yet, that refuge didn't mean my nightmare was over. All would be fine, I guessed, but the son-of-a-gun decided it wouldn't go away. It kept staring at me, now and then circling the booth without losing a sense of my companionship or a speck of my charm.
My stint at the booth, which had felt for a while like a tremendous relief, now made me feel even more painfully ashamed. Herds of tourists coming into the museum, mostly Japanese school kids, stopped to learn about the incident and take pictures of the parties involved: a Brazilian expatriate in despair and a Parisian dog in lust. (Can you imagine my celebrity pride?) From behind the glass I could sense my wife's share of despair even though she clearly tried to hide it from me by either looking sideways or smiling or laughing, as if the matter were simply comical. Indeed, the area started to get crowded. Soon there were another three or four guards, one of whom had the guts to remark, to my wife, as she briefed me on half-hour later, that there was nothing they could do since that dog was madly in love with her husband. (God, where the hell could I find a pistol?)
Well, I could hardly believe my eyes when the same female guard that assigned me to the booth decided she could take the risk and grab the dog by collar. She did it, defiantly, and the dog reacted most congenially. She brought the animal close to one of those metal posts that sustains velvet isolation cords in theaters and locked the sex maniac by the collar.
Libertas quae sera tamen, this time I almost cried out Minas Gerais Latin motto, "Freedom, even if it is late." But it would be nonsense. The least thing I wished, at that point, was to suggest to others around me that I was a lunatic. It was freedom at last, but what I hoped for the most then was to forget my recent plight altogether. It was not possible, however, for the dread I was to experience inside the museum every time I saw any of the so many dogs painted on such exuberant canvases. I was traumatized. I remained badly sick of all them dogs throughout the day. I was sick, most of all, because my very pants still smelled like one of them, probably two of them, since the whole ordeal must have sparked when, at the café, that poodle-like female, certainly in heat, rubbed against my legs a couple of times.
The Louvre, yes—that majestic museum would be the golden gate to the City of Lights. Culture, artistry, transcendence, these were the ultimate pursuits of an ex-small-town boy gradually metamorphosed into an intellectual and international urbanite. On a honeymoon with my best friend and best lover, all had been very exquisite in the Old Continent, from the picturesque waterways in Amsterdam to the elaborate fountains in Florence, except for Paris. The supposed occasion of a lifetime for someone expecting to find elegance in every European corner, or inspirational echoes of Simone de Beauvoir's wit or James Joyce's craft by the Seine, actually dumped me in a puddle of hatred and shame. I was led to such a level of humiliation that my only post-stress indemnity was to imagine that one day I would have good material for a story, my revenge on a dog day in Paris.
*Borim's bilingual editions are not translations. Kin souls at best, the texts bear a mutant life of their own. The first English version was written in the early 1990s, when Borim was a candidate for an M.A. in Creative Writing at the University of Minnesota. The story hatched again, ten years later, in Portuguese. It soon appeared in Borim's first book, Paisagens humanas, and then changed its English predecessor. A sporadic contributor to Brazzil, Borim is currently a professor in the Department of Portuguese at U-Mass Dartmouth and hosts a weekly radio show dedicated to Luso-Brazilian music onwww.wsmu.org. He can be reached atdborim@umassd.edu 
http://www.brazzillog.com/2003/html/articles/aug03/shoaug03.htm 

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