Deus e o Diabo na Terra
do Carnaval
Brazzil
February 2003
February 2003
Carnaval em Paraguaçu. Ao som da excelente batucada promovida
pelos músicos da Liga Operária, rugíamos, pulávamos e
lutávamos como felinos esfomeados. Às vezes corríamos e
cacarejávamos em ótimo astral, feito um bando de galos e
donzelas garnisé. Era uma festa total no terreiro da alegria e da descontração.
Dário Borim Jr.
O Carnaval do Brasil, como os de outras nações, tem seus disparates. Lá homem adora se vestir de mulher, pobre se fantasia de rico, e pecado é santificado pelos jovens em praça pública. Será que todo ano Deus faz algum pacto com o diabo e fecha os olhos por somente quatro dias? Não creio, mas parece, porque é muito milagre para um santo só. Por conta de umas afinadas batidas de surdo (e de limão, claro), mais vale é habitar ou sonhar com um mundo onde a alegria e as alegorias de paz e cidadania são produzidas ou patrocinadas por incomparáveis artistas, incorrigíveis malandros e incrivelmente bem-intencionadas — e bem-humoradas! — autoridades.
Nos carnavais das décadas de 1960 e 1970, a Prefeitura da minha pacata cidade natal, Paraguaçu, contava com uma legião de voluntários e organizava dois desfiles de rua: um no domingo, e outro na terça-feira. Claro que tinha mais. Cada um dos três clubes da chamada Princesinha do Sul de Minas oferecia duas matinês para as crianças e quatro noitadas para os maiores de 14 anos. Conjuntos e orquestras tocavam ao vivo, das 11 da noite às 5 horas da manhã. A estratificação da sociedade revelava-se, em parte, através dos próprios nomes das associações. Uma facção da classe trabalhadora ia para a Liga Operária; outra, de indivíduos menos sacrificados economicamente, freqüentava o Democrata; enquanto que a classe média mais abastada e a elite dançavam no Ideal Clube. Nas ruas, a espontaneidade era sempre uma das melhores características da Festa de Momo. Entre oito e meia-noite, os tímidos e os extrovertidos, bem como os cultos e os iletrados, saíam todos para a colorida Praça Oswaldo Costa, onde dançavam, bebiam e apreciavam a maluquice geral.
Naquela primeira noite de Carnaval em 1976, meu irmão José Carlos (o Tatau) e eu pertencíamos a um bloco da pesada: os Homo-sapiens. Éramos um dos maiores e mais extravagantes grupos de foliões. Contando com quase 40 jovens, o grupo de fantasiados dramatizava o seu tema antropológico. Cordões de dentes de plástico nos tornozelos e ossos de galinha no cabelo (ainda tínhamos, todos, muito cabelo) acompanhavam uma túnica de cetim laranja com manchas pretas redondas, semelhantes às de um leopardo. Ao som da excelente batucada promovida pelos músicos da Liga Operária, rugíamos, pulávamos e lutávamos como felinos esfomeados. Às vezes corríamos e cacarejávamos em ótimo astral, feito um bando de galos e donzelas garnisé. Era uma festa total no terreiro da alegria e da descontração.
A música parecia surgir dos quatro cantos da praça, ecoando nas nossas almas adolescentes. O melhor ritmo, porém, ressonava no Bar do Vatinho, para onde convergia a rapaziada mais animada. Ali dançávamos e farreávamos, quando, de repente, uma voz me chamou a atenção para fora do círculo de homens da caverna.
"Alah, Alah, Alah, hundulilah, handulilah", gritava o caro amigo Delson Ribeiro de Andrade. Sem medo, ele se punha de pé numa banqueta do Bar do Vatinho. Ainda assim, conseguia rebolar os quadris ao compasso do samba, enquanto invocava a presença divina de Maomé. Com os cabelos ondulados, agora crivados de confetes, e os olhos castanhos irradiando paz, como que diante de um paraíso em pleno caos Carnavalesco, Delson se vestia de garota havaiana, com muito estilo. Descalço entre outras "garotas tropicais" a esconder os pêlos da face, o vulgo Amarradinho ironizava a lei seca dos árabes e agradecia aos céus por tanta alegria (e cerveja gelada) cintilando no planeta Terra.
A farra continuava sem trégua, mas no domingo à noite, muitos já sentiam a necessidade de assentar por um instante e fazer acontecer outro lado fabuloso da tradição de Carnaval de muitas famílias brasileiras. Antes de sair mais uma vez para o espaço público do Carnaval de rua e dos bailes de salão, era hora de beber e comer umas coisinhas na descontraída intimidade dos parentes e amigos. Desta vez, um grupo de aproximadamente quinze pessoas curtia o frescor de uma noite enluarada. Na varanda lateral da casa de meus pais alguns tomavam a especialidade da estação: whisky com água-de-coco. Dois charmosos coqueiros que ainda cresciam no jardim — quem sabe ameaçando a estrutura da casa — mantinham o nosso estoque em dia. No ano anterior tínhamos colhido, ali mesmo, nada menos que trezentos cocos da Bahia.
Um aspecto divertido daqueles encontros familiares era que certas pessoas, normalmente sérias e reservadas, naquela hora soltavam as rédeas. Muitas vezes este era o caso de meu pai. No espaço doméstico do Carnaval se permitia desfrutar as histórias que filhos, parentes e amigos contavam sob a inspiração maior do elemento alcoólico. Entre tira-gostos e goladas refrescantes, todos eram afetados de um modo ou de outro pelo bom-humor suspenso no ar. Até minha mãe, que aos cinqüenta anos mal suportava meio copo de vinho, deixava transparecer seu contentamento, apesar de uma crescente preocupação com os possíveis excessos dos filhos adolescentes.
As narrativas, retocadas pela animação do relator da vez, muitas vezes retomavam enredos de extravagância e perigo vividos por meu irmão e eu (além de nossos amigos mais aloprados). O cunhado José Côdo recordou, a certo momento, a noite em que minha mãe e sua irmã Guida voltavam a pé para casa, depois de apreciar por algumas horas o baile de Carnaval no Ideal Clube. As duas senhoras passavam pela parte de cima da Praça Oswaldo Costa — os estrondos da música de salão ainda reverberando nos seus ouvidos — quando minha mãe percebeu algumas marcas de sangue no passeio por onde andavam. Quando as duas irmãs viraram a próxima esquina, a da casa de Tia Noêmia, continuaram seguindo as mesmas marcas.
Um quarteirão acima, as duas respeitáveis senhoras viraram à direita e continuaram seguindo as bolas de sangue. Mamãe já estava preocupada — afinal de contas, ela é Mendes — quando sua pressão sanguínea subiu pra valer, pois as bolas de sangue cruzaram a rua, subiram as escadas e passaram para o outro lado da porta de entrada de nossa casa. Uma vez dentro da casa, ela nem precisou olhar para o chão. Atravessou a sala e foi direto ao quarto dos meninos.
Minha irmã Silvana falou da rápida e variada sucessão de sentimentos. Primeiro, mamãe é tomada pelo medo, ao ver as marcas subindo as escadas; depois, pelo nojo e a pena de ver o filho mais velho, Tatau, dormindo em uma poça de vomito. Por último, ao acender as luzes e pesquisar bem a situação, mamãe certamente entrou em grande confusão: apesar do sangue acumulado ao lado da cama, o filho de dezoito anos não apresentava qualquer ferimento. Aliás, dormia feito uma múmia, e assim permaneceria por muitas horas manhã adentro. O mistério continuava vivo para alguns dos presentes àquela reunião pré-carnavalesca.
"Mas, e as marcas de sangue?", perguntou minha prima Nilbe. Com uma risada mal contida Silvana explicou que Marcelo Viana, outro Homo-sapiens, tinha percebido que Tatau se encontrava muito bêbado no salão do Ideal Clube e precisava de um bom banho frio. Para Marcelo, a água suja da fonte da Praça Oswaldo Costa era a solução. Mas o Bom Samaritano se deu mal com um caco de garrafa, que lhe cortou o pé no fundo da fonte. Como Marcelo também era chegado ao "mé", naquela noite encontrava-se anestesiado demais para notar qualquer coisa estranha consigo mesmo. Só assim pôde dar continuidade ao seu projeto humanitário, e quase matar d. Lucci Prado Mendes Borim de pavor.
Nenhum show da Terra, não importando se é bom ou se é ruim, deixa de ver, um dia, o seu próprio fim. Mais uma Quarta-Feira de Cinzas, então, chegou como sempre chegava: trazendo fadiga e ressaca. Entre outras mudanças, era hora de voltar para o trabalho e para os estudos. Parentes, amigos e amantes se despediam sem muita alegria, vigor ou poesia. O silêncio profundo desde as sete da manhã era costumeiro, enquanto o sol naquele dia nacional da dor-de-cabeça seguia seu curso normal. Boa parte do comércio permaneceria fechada até o meio-dia. De repente,
"Dleng, dleng, dleng...," mas poucos seres adormecidos sequer tinham ouvido os quatro imensos sinos da Igreja Matriz marcando presença em todas as casas e anunciando que eram dez horas. Por certo não faltou quem praguejasse aquela invasão de lares católicos e não católicos.
Logo a seguir ecoou, por toda a cidade, uma canção falando de anjos e pastores, seguida de um vozeirão:
"Anúncio. O Dr. Félix, oftalmologista de Varginha, estará atendendo a população de nossa cidade nesta quinta-feira..."
Vieram outros três ou quatro anúncios de propaganda e de serviços da Igreja, até que uma pausa se instaurou. Mas durou pouco, pois outra melodia logo alcançava os cantos mais remotos da cidade. Desta feita o tom era bem mais lúgubre:
"Ave Maria, bla, bla, bla..."
Teria Franz Schubert terminado sua famosa peça sacra se soubesse que ela seria recebida nos Trópicos com tantos palavrões?
Quando alguns foliões já tinham conseguido retornar ao sono, apesar do encanto melódico daquela obra clássica, voltou o vozeirão no alto-falante da Igreja Matriz:
"É com grande pesar que anunciamos o falecimento do sr. João de Deus, cujo corpo está sendo velado à rua..."
Para alguns revoltados, aquilo soava como um caso de injustiça divina. Paraguaçu não tinha uma estação de rádio, e a culpa recaía sobre os ombros — digo, os ouvidos — de infelizes bebuns e mocinhas namoradeiras. Mas, talvez fosse a voz de Deus abrindo alas, ao som de um ária triste. Sua mensagem, era, afinal, deveras realista:
"Cuidado, galera! O diabo do samba, do cigarro e da cachaça também mata. E nem tudo é Carnaval".
God and Satan in the
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