sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

As grandes cidades

[Foto tirada por
D. Borim em 9/jan/08]

Londres não se esquece facilmente. Aliás, existem essas grandes e famosas cidades, mundo afora, que são mesmo muito grandes no nosso imaginário e nas nossas lembranças mais variadas. Um dia, muitos de nós temos a oportunidade conhecê-las pelos cheiros em geral, restaurantes, e pelos sons de automóveis, transeuntes e músicos de rua. Por exemplo, jamais hei de esquecer quando, em 1981, vi Nova Iorque pela primeira vez, em todo o seu esplendor urbano agressivo e mítico, com edifícios de uma altura a perder de vista, com suas luzes em neon restituindo-nos os sonhos dos filmes hollywoodianos e da modernidade.


No outro lado do Atlântico, e dez anos mais velho, encarei Paris. Seus maravilhosos museus, parques e cafés me faziam reviver clássicos da literatura, ou até mesmo anedotas de seus autores mais abusados, como a do inócuo e prosaico encontro entre James Joyce e Ernest Hemingway, do qual se esperavam conversas intelectuais de alto nível, mas o que veio foram conversas sobre pássaros, plantas domésticas, e coisas assim.
Era também a cidade onde moraram diversas celebridades de outras artes, tais como Heitor Villa-Lobos, que certa vez pintou todo o seu apartamento de vermelho (portas, paredes e tetos), apenas por ocasião de uma festa. Na Cidade das Luzes, lá estaria ele, também todo em vermelho, para que sua cabeça de gênio pudesse se destacar num ambiente seleto e requintado de compositores e pintores.


Nunca mais voltei àquela cidade, exceto por duas horas de ansiedade e sono que passei no aeroporto Charles de Gaulle, numa viagem rumo a Madri, ano e meio atrás. As perguntas e as declarações dos inspetores da imigração que ouvi ou pensei ouvir ora em francês apressado, ora em inglês rebocado de sotaque, não faziam referência alguma a um estranho e escandaloso cachorro que me perseguira pelas ruas daquela cidade, mais exatamente em torno do museu do Louvre, vinte e cinco anos atrás. O bicho queria fazer bobagem em cima das minhas coxas. Elas são (mentira, eram) bem constituídas, é verdade, mas naquele dia, principalmente, cheiravam aos perfumes de uma cadelinha no cio. Ela, coitadinha, sem culpa nenhuma, tinha se chocado contra minhas calças jeans dentro de um café, por ali mesmo, perto do famoso museu. Bom, passados tantos anos, ainda bem que o indelicado assunto de um cachorro parisiense em busca de umas coxas tropicais não veio à tona na minha entrevista com as autoridades locais. Não sei como teria reagido ao meu próprio embaraço.


Aquela visita a Madri e a outra visita que fiz à cidade de Lisboa dois anos antes sem dúvida mexeram comigo. Na capital castelhana, o deleite foi assistir a um jogo da Copa do Mundo de 2006 com 16 mil espanhóis, na Praça Zero Km. Em Portugal, acima de tudo, me vi inspirado e emocionado quando naveguei pelo rio Tejo, imaginando a chegada de tantos escritores luso-brasileiros por aquele porto ao longo séculos e séculos, amém. Também me comovi ao canto de uns belos fadistas em Alfama e ao presenciar um pouco do cotidiano no bairro da Mouraria, que nesse momento já vira crescer o gigante da música portuguesa contemporânea, Mariza. Entretanto, o encanto que senti na cidade de Londres na semana passada me surpreendeu ainda mais. É simplesmente apaixonante a agregação cultural no centro daquela capital anglo-saxônica. Dentro da área circunscrita por um quadrilátero de aproximadamente quatro quilômetros quadrados, meus olhos vislumbravam tantos teatros, parques e cafés, que estes me faziam caminhar, sem parar, para que nada me escapasse naquela visita de apenas dois dias e meio.


Apesar do vento, do frio, e da chuva recrudescente, a exuberância e magnitude das obras arquitetônicas em si mesmas—fossem elas góticas, georgianas, ou neoclássicas—já valiam o passeio. Para aumentar o prazer desse sul-americano extasiado pela arte e pela história de Londres, ainda sobrou tempo para ver uma peça no Teatro Novello, baseada na vida do grande escritor C. S. Lewis, e, imaginem, para prestigiar uma roda de samba profissional, bem chique, no Restaurante Guanabara—com direito ao som de cuíca a ao sabor de moqueca baiana. Nessas horas, viva a história antiga e viva a globalização!

sábado, 5 de janeiro de 2008

Brilho maior do Brasil

Há de se convir: sonhos não se tornam realidade a toda hora, em toda esquina. Pouco mais de seis anos atrás vi mais um de meus maiores anseios se realizar. Em 4 de dezembro, de 2001, dava início a meu primeiro programa de rádio e, confesso, não pude evitar certo soluço e uma pequena lágrima. Quase todos nós brasileiros sentimos uma dose de ansiedade por descobrir e valorizar nossa cultura. Essa busca pode se tornar ainda mais intensa ao morarmos no exterior.

[Foto: Rosa Passos na famosa Berklee School
of Music, em Boston, em 8/nov/07]

Para mim poucos elementos da cultura brasileira são tão maravilhosos e enobrecedores como a música. Portanto, ao me tornar um tipo de embaixador do nosso cancioneiro, não me contive e chorei como um Assis Valente talvez o fizesse se soubesse que sua música continua viva e valorizada em várias partes do mundo, em pleno século XXI. O meu programa Brazilliance era satisfação demais para um mineiro da pequena cidade de Paraguaçu, um saudoso das serestas, chorinhos e forrós, além dos inesquecíveis sambas e marchinhas de Carnaval, é claro.

Depois de dois meses de treinamento para poder operar o equipamento de rádio sozinho (como locutor e engenheiro de som), criei e lancei o Brazilliance, um programa semanal de três horas na antiga WSMU (hoje WUMD), uma rádio educativa da Universidade de Massachusetts Dartmouth. Enquanto estação de FM não-comercial, a missão da WUMD é informar, entreter, e oferecer música normalmente ignorada ou pouco apresentada pelas rádios comerciais. O nome do show vem do título de um álbum gravado em 1954 por Laurindo Almeida, um excepcional violonista paulista, e distintos nomes do jazz: o saxofonista Bud Shank, o baixista Harry Babasin e o baterista Roy Harte.

Laurindo de fato conhecia, tocava e mesclava magistralmente música clássica, jazz e música popular brasileira. Na década de 50, nos bares e auditórios do sul da Califórnia, Laurindo deixaria seus fãs atônitos ao tocar Chopin, Debussy e Ravel, por exemplo, em forma de jazz ou ao ritmo sincopado do samba. O astro do violão escreveu mais de mil composições originais, gravou mais de cem discos, e a maioria das suas partituras e discos está guardada na Biblioteca do Congresso em Washington, junto aos trabalhos de Bach, Brahms e Beethoven.

Brazilliance vem fazendo a sua história na Nova Inglaterra e no resto do planeta. Já que pode ser apreciado tanto aqui, pelas ondas de FM (89.3), como em todo o mundo, pela Internet (http://www.893wmud.org/), o programa tem fãs, por exemplo, em Rhode Island, Minnesota, Ceará, Rio de Janeiro, e Valência, na Espanha. Tenho regularmente recebido elogiosos e-mails (dborim@umassd.edu) e me sinto realizado na missão de levar aos quatro cantos do globo a sofisticada musicalidade tupiniquim. Brazilliance tem-se rodeado de alguns fatos curiosos. Membros de um grupo de músicos do Ceará, Os Argonautas, ouviam o programa, em Fortaleza, quando toquei algumas de suas canções. Imediatamente telefonaram e passaram a comemorar, aos pulos, a honra de serem tocados no exterior e para todo o mundo.

Outro caso paralelo à história do programa é que dois amigos meus, namorados há muitos anos, têm ligado ao mesmo tempo o rádio (ele, aqui em Massachusetts) e o computador (ela, na Espanha) para ouvir e curtir saudades mútuas ao som das mesmas canções que escolho a cada semana. Ouvintes assíduos, Rick Hogan e Blanca Rodriguez muitas vezes me mandam e-mails ou telefonam durante o show (508-999-8150), que é sempre transmitido às quintas-feiras, das 3 às 6 da tarde, horário do Leste dos Estado Unidos. Assim recebo, sem demoras, o apoio e o carinho de muitos ouvintes-amigos— lá mesmo na estação de rádio, onde, ao vivo, reúno e reflito um pouco do brilho maior desse Brasil que quando canta, nos encanta, um Brasil que ao mesmo tempo merece e nos embevece de tanto dom e amor pela música.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007



A brasileirinha
[Foto de Ian Borim]

Faz pouco mais de uma hora que uma sopa borbulha. Ingredientes, já os levou dos mais diversos. Assim espera pelo momento de lhe ser dito:

"Chegou sua hora, brasileirinha".
E olha que é mesmo canarinha. Como há tanta certeza assim? Tudo em volta a influencia. Pelo toca-fitas sobre a mesa não me vem o som de guitarra do Neil Young, nem a voz melodiosa do John Denver.
"Boemia, aqui me tens de regresso, e suplicando te peço, a minha nova inscrição. Voltei para rever os amigos..."

Esta é a canção de uma fita cassete que viera de Paraguaçu e que agora faz ecoar a voz grave de Nelson Gonçalves pelas paredes de meu apartamento. No subsolo de um prédio isolado e um tanto afastado do centro da cidade de Torrington, Wyoming, estes versos invadem o coração do cozinheiro solitário, provocando-lhe arrepios. Como um bom conterrâneo do ex-Carmo dos Tocos, ele sente, nesta noite, o que lhe pesa de saudade da família e dos amigos do peito após passar seus primeiros dez meses fora do país.

Aqui, ao extremo sudeste do estado, aos pés das Montanhas Rochosas, nem a neve que cobre ruas e telhados ou o frio de dezoito negativos me impedem de me sentir de volta. Este apartamento-república onde moro, é americano-brasileiro em uma razão de quatro pra um ao longo do ano letivo. Mas hoje, ele é só Brasil. Não há sequer uma voz em inglês por aqui, pois estou só desde o Natal. A calefação elétrica cuida do ambiente físico, simulando o calor do dezembro tropical. A minha mente, então, voa livre e sobre suas asas chego a Paraguaçu, Minas Gerais.

Recordo-me ainda que na manhã de hoje a saudade já parecia ensaiar um golpe sobre os meus sentimentos, o meu frágil equilíbrio. Voltando a pé para casa após a missa das 10 h., o frio de oito graus negativos fazia meus lábios arderem. Em meu caminho sobre passeios cobertos pela intensa neve que caíra nos últimos dias, passei a imaginar como poderia ser Paraguaçu, se situada no Hemisfério Norte, sujeita àquele vento e àquela nevasca de dezembro. De fato, a pequena comunidade de Torrington, com pouco mais de 5.000 habitantes, é formada por um povo gentil, mas lhe faltam muitas das características de leveza e descontração típicas do meu Sul de Minas.

Horas passadas desde o entardecer, ultimamente ocorrendo pelas quatro e quinze, é que cheguei à cozinha para preparar o jantar. Surgiu-me, então, uma idéia: vou buscar meu toca-fitas e colocar música brasileira no ar — assim cozinho alguma coisa e tento viver um sonho, uma noite de fim de ano no Brasil.
Desse modo venho ouvindo a seleção de canções que recebi de meus pais recentemente. Ao som de modinhas, boleros, e dos melhores sambas que conheço, alguns golos da última garrafinha de Lowenbrau me fazem engasgar. Já sei que o problema vem da mente absorta a viajar no tempo e no espaço, a me mandar de volta para o sabor das Brahmas geladas no Bar do Vatinho e nas antológicas festas realizadas num certo apartamento à Rua Ceará, em Belo Horizonte. Não havia nada a fazer, uma vez que já permitira que esses filmes da memória me deixassem ainda mais vulnerável à solidão e à saudade.
De repente alguém canta:

"Bate outra vez, com esperanças o meu coração, pois já vai terminando o verão, enfim".
Ah, meu querido Cartola, aí de cima no céu só você sabe o quanto as suas "rosas" sempre me inspiram e, agora, me emocionam e me levam para bem longe daqui.

A noite brasileira chega ao seu momento de máxima sublimação, para em seguida me oferecer o sabor do que, de fato, tenho ali, bem pertinho de mim, já à minha espera há um bom tempo. Feijão, cenouras, salsinhas, cebolas, pimentões, tomates, carne cozida e salsichas estão cansados do fogo brando. O apetite que me toma conta também vem dos trópicos; é quase igual àqueles antes das tradicionais e celebradas feijoadas de d. Lucci. Mas chega de saudade! Finalmente é chegada a hora da bóia:

"Vem cá, brasileirinha".
[Originalmente publicada n’A Voz da Cidade, de Paraguacu, em Fevereiro de 1982]

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007


Essa tal de felicidade

Dário Borim Jr.

“Brasileiros desistindo do sonho americano” -- esta é manchete de uma reportagem publicada por Nina Bernstein e Elizabeth Dwoskin no New York Times desta última terça-feira, dia 4 de dezembro. Sim, são brasileiros, aos milhares a cada dia, comprando passagens aéreas só de ida para nossa terra.

Lembro-me de que nos anos 80 eu pensava nesse tal de “sonho americano” com uma boa dose de suspeita. Nas aulas que dava em Belo Horizonte, debatíamos essas possibilidades de prosperidade e liberdade. Discutíamos se o prazer de comprar e possuir garantia a tal da felicidade. Não havia consenso.
Atualmente vivemos num mundo de milhões de imigrantes e retirantes. As estatísticas são assombrosas: centenas de milhões. Estariam tantas partes do mundo em apuros? A vida no chamado primeiro mundo seria muito melhor? Seria São Paulo ou Moscou um paraíso para onde deveriam mudar os destituídos e outros carentes?

Clarice Lispector — escritora de pais russos, que nasceu na Ucrânia quando sua família emigrava para o Brasil — criou uma das histórias mais pungentes sobre os nordestinos no sul do Brasil. O narrador (masculino) desse romance, intitulado A hora da estrela, se pergunta se a felicidade por acaso não passaria de uma ilusão do tipo daquelas que manipulam tantas almas nordestinas, como a de Macabéa, a protagonista. O mesmo poderíamos questionar a respeito do “sonho americano”. Não seria isso apenas uma ilusão de muitos sujeitos terceiro-mundistas?

Acho que não. E nem acho que o narrador de Lispector tivesse razão. Quando se trata de sonhos, ambições, sacrifícios, coragem para deixar a família e os amigos, a língua e a terra natal, a iniciativa e seu valor são sempre mais complexos que a ilusão inocente, descabida. Não há paraíso na terra, convenhamos, porque a vida de qualquer pessoa é uma sucessão de provas e demandas, diante das quais são necessárias abdicação e paciência nas horas de ceder e obter conveniências, mas sempre vale lutar por melhores condições para enfrentarmos os desafios.

Então se hoje é, para muitos brasileiros, hora de voltar para o Brasil, com certeza é um momento triste, porque muitos foram pegos em pleno gozo do sonho ou realização da prosperidade. Mas a verdade é que o mar não está pra peixe há algum tempo. Os nossos conterrâneos que têm que pagar um preço muito alto para permanecer neste país — tal como a tensão diária no trânsito, pois uma falha poderá resultar em prisão e deportação imediatas — têm mesmo que reavaliar sua relação com a felicidade e buscá-la em outras praias, de outras formas. Mas isso também é muito complicado, pois às vezes um dos filhos já é crescido, é cidadão americano, e nem conhece o país que terá que adotar, se seguir os passos dos pais.

As leis de imigração de qualquer país, alteradas de tempos em tempos conforme as necessidades, nunca são leis que buscam assegurar a justiça. São na verdade regulamentos que visam preservar os interesses daqueles que têm mais poder no país e conseguem argumentar que estão a defender o bem comum, o bem do povo. Mas como toda nação é composta de uma população heterogênea, os grupos no poder também se diferem entre si nos seus interesses e nos modos de como querem/dizem querer defender o seu país.

Conseqüentemente, há tremendas contradições em tais regulamentos, pois refletem um jogo de esconde-esconde, de intenções não reveladas, de (falsas) imagens que protegem o interesse desse ou daquele grupo. Há, desse modo, um jogo de braço entre os donos do poder, e o indivíduo oprimido sob múltiplos riscos quase nada pode fazer diante desses interesses “oficiais”. Ainda bem que em uma sociedade plural há também compaixão e luta por direitos humanos. Estas, somente às vezes merecem a atenção dos legisladores e dos políticos que vêem além dos ganhos eleitorais imediatos e reservam um espaço na consciência em prol do próximo — seja ele portador de documentos deste país ou de outra nação, o que, aliás, não reduz em nada o seu direito à dignidade e à oportunidade de buscar a sua própria felicidade.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Tradições


[O simpaticíssimo Dr. Guilherme Borim Mirachi sob o impacto de algumas tortas americans –
feitas por Ann e fotografadas por Ian Borim]


Tradições


Nosso sobrinho Guilherme Borim Mirachi, jovem médico brasileiro-batuqueiro, de Belo Horizonte, deu-nos a honra de apreciar conosco alguns elementos da tradição norte-americana do Dia de Ação de Graças. Como sou escritor e estudioso das culturas, tenho que fazer uns parênteses. Falei de tal tradição norte-americana, mas na verdade são muitas as formas de se comemorar o Thanksgiving nos EUA. Ontem mesmo eu ouvia a Rádio Globo, de New Bedford, e um comercial tentava atrair os ouvintes para as promoções de uma mercearia local. Quando diziam que tinham tudo para as festas de Thanksgiving decidi prestar muita atenção no catálogo de ofertas. Fiquei bastante surpreso porque o rol de produtos indicava que, segundo o comercial, nossa tradição de Thanksgiving incluía vários pratos e tira-gostos portugueses.

Esse feriado nacional segue tradições diferentes em alguns dos sete estados onde já morei: Wyoming, Minnesota, Califórnia e Massachusetts. Não há espaço aqui (e nem suficientes neurônios na minha cabeça) para comparar os rituais e os detalhes das comilanças de um lugar com os de outro lugar, ou mesmo de uma época para outra. Mas como seriam nossas tradições familiares, hoje em dia? Bem, posso dizer que não são tão “rígidas”. De fato, cada ano é uma história diferente, talvez porque nossos filhos não têm primos, tios ou avós por perto que nos fizessem seguir a rotina de uma visita à mesma casa a cada ano para ver as mesmas pessoas, comer as mesmas coisas, e assistir a uma partida de futebol americano, o ritual de muitas famílias também seguido de uma sessão de cinema, com a barriga bem cheia. Certas vezes passamos o Dia de Ação de Graças nas casas de amigos, com filhos pequenos. Outras vez, ficamos em nossa própria casa e sem qualquer visita, de longe ou de perto. Outras vezes viajamos para uma cidade ou resort um pouco distante, compartilhando da tradição gastronômica local com totais estranhos, em um hotel ou restaurante qualquer.

Em 2007 nosso Thanksgiving foi um absoluto deleite. Começou com muitas conversas animadas (regadas a copos de Mojitos, um delicioso presente tradicional cubano ao mundo) e uma sessão de vídeo que mostrou com muitos detalhes a jornada do nosso sobrinho médico em breve período nos EUA. Vimos então cenas de um congresso de medicina em Chicago, cidade pela qual Guilherme se apaixonou (apesar dos ventos), e imagens do seu estágio de quatro semanas no Centro de Tratamento Intensivo do Hospital Rhode Island, onde seu idioma nativo, o português, permitiu-lhe diagnosticar alguns pacientes antes que seus colegas norte-americanos compreendessem que tipo de dor afligia seus pacientes. Mas em Providence nem tudo foram rosas no plano lingüístico, pois o sotaque de um senhor de São Miguel (ilha dos Açores) provou ser mais que uma simples barreira inicial: acabou desorientando o belorizontino por algum tempo. O jovem doutor nem tinha idéia de onde se encontrava o tal lugar chamado São Miguel ou tampouco entendia a explicação do enfermo sobre sua condição física ou sua terra natal.

Era apenas o começo do nosso feriado. E como Guilherme voltaria para o Brasil na manhã seguinte, a comemoração do Thanksgiving teve que ser antecipada para quarta-feira, adquirindo um sabor especial de “bota-fora”. Como minha esposa, Ann, é de Duluth, Minnesota, seguiríamos a maioria das tradições culinárias daquela região e de sua família anglo-sueca. Portanto, iniciou ela o ritual de preparação from scratch com uns rolls de canela, seguidos de uma torta de mação e outra de abóbora. Depois veio o trato especial ao peru, de sete quilos, que logo iria ao forno, e ao delicioso stuffing, com muito aipo e cebolas que piquei eu mesmo, sem verter nenhuma lágrima. Então, enquanto o marido descascava e cortava as batatas para o purê, Ann se encarregava dos oxicocos (cranberry), batata-doce, ervilhas, cebolinhas e o indispensável molho tipo gravy.

Bem, uma certa tradição do Thanksgiving logo seria alterada. Quase tudo pronto, era hora de aguardar três horas até que a tradicional ave corasse. Enquanto isso, teríamos um enorme privilégio: em vez de uma partida de futebol americano, assistiríamos ao jogo de futebol entre Brasil e Uruguai, direto do Morumbi. Sofremos. O Brasil jogou mal, mas teve sorte. O coitado do Uruguai jogou bem, mas não poderia ter sido mais azarado. Resultado: 2 a 1 para o Brasil. O vinho verde português já estava fresquinho e pronto para nossa ceia. Eram quase 11 horas da noite e, com muitas tradições seguidas à risca e outras ignoradas ou reformadas, agradecemos a Deus por isso e aquilo mas, principalmente, pela nossa paz, saúde e carinho mútuo e, para completar, por mais uma vitória do excrete canarinho. Deus às vezes é brasileiro.

Dário Borim
dborim@umassd.edu

segunda-feira, 19 de novembro de 2007



Idioma Global

Dário Borim Jr.

dborim@umassd.edu

[Arte de Zach Borim e colegas da turma da Profa. Doe, Cushman Elementary School, maio 2006]

A partir de janeiro de 2008, Brasil, Portugal e demais países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor Leste) terão a seu dispor uma ortografia portuguesa quase completamente unificada. Não há um dia marcado para que as mudanças ocorram e especialistas estimam que seja necessário um período de dois anos para a sociedade se acostumar.

Mas a previsão é que a modificação comece mesmo em 2008. No Brasil, por exemplo, o Ministério da Educação prepara a próxima licitação de livros didáticos para dezembro, pedindo já a nova ortografia. O edital será para os livros que serão usados em 2009. Carlos Alberto Xavier, assessor especial do MEC, declarou à Câmara Brasileira do Livro que será preciso um intervalo de, no mínimo, um ano após o início da vigência do acordo para que os livros didáticos distribuídos contenham as mudanças ortográficas. “Teremos também um período de dois anos para adaptação à nova ortografia. Durante esse tempo, as duas formas ortográficas serão consideradas corretas”, afirmou.


Segundo uma nota distribuída por todo o mundo através dos portais oficiais das embaixadas brasileiras, as modificações propostas afetarão 1,6% do vocabulário de Portugal. No Brasil, a mudança será bem menor: 0,45% das palavras terão a escrita alterada. As mudanças ortográficas não terão quaisquer efeitos sobre as pronúncias típicas de cada região dos países lusófonos. Justamente por isso certos estudiosos consideram as alterações desnecessárias, pois as diversidades maiores são fonéticas, e nisso não se vai mexer.

Porém, prevaleceu uma linha de raciocínio oposta, a dos que concordam com Antônio Houaiss (1915-1999). A unificação da ortografia não implica uniformização dos vocabulários ou homogeneização dos sotaques. Para Houaiss, “Portugal, Brasil e os cinco países africanos de língua portuguesa reconhecem que a inexistência de uma única ortografia oficial traz não apenas dificuldades de natureza lingüística, mas também de natureza política. Daí o esforço desses países em efetivar o novo acordo”.

Segundo o Banco de Dados da Língua Portuguesa, da Universidade de São Paulo, isto é o que vai mudar na ortografia em 2008:

1) As paroxítonas terminadas em "o" duplo, por exemplo, não terão mais acento circunflexo. Ao invés de "abençôo","enjôo" ou "vôo", os brasileiros (e os outros) terão que escrever "abençoo", "enjoo" e "voo."

2) Mudam-se as normas para o uso do hífen no meio das palavras. O hífen vai desaparecer do meio de palavras, com excepção daquela em que o prefixo termina em “r”, casos de "hiper-", “inter-" e "super-". Assim passaremos a ter "extraescolar", "aeroespascial" e "autoestrada".

3) Não se usará mais o acento circunflexo nas terceiras pessoas do plural do presente do indicativo ou do substantivo dos verbos "crer", "dar", "ler","ver" e seus decorrentes, ficando correta a grafia de "creem", "deem", "leem" e "veem".

4) Criação de alguns casos de dupla grafia para fazer diferenciação, como o uso do acento agudo na primeira pessoa do plural do pretérito perfeito dos verbos da primeira conjugação, tais como "louvámos" em oposição a "louvamos" e "amámos" em oposição a "amamos".

5) O trema (brasileiro) desaparece completamente. Estará correto escrever "linguiça", "sequência", "frequência" e "quinquênio" ao invés de “lingüiça”, “seqüência”, “freqüência” e “qüinqüênio”.

6) O alfabeto deixa de ter 23 letras para ter 26, com a incorporação de "k", "w" e "y".

7) O acento deixará de ser usado para diferenciar "pára" (verbo) de "para" (preposição).

8) No Brasil, haverá eliminação do acento agudo nos ditongos aberto "ei" e "oi" de palavras paroxítonas, como "assembléia", "idéia", "heróica" e "jibóia". O certo será “assembleia”, “ideia”, “heroica” e “jiboia”.

9) Em Portugal, desaparecem da língua escrita o "c" e o "p" nas palavras onde ele não é pronunciado, como em "acção", "acto", "adopção" e "baptismo". O certo será “ação”, “ato”, “adoção” e “batismo”.

10) Também em Portugal elimina-se o "h" inicial de algumas palavras, como em "húmido", que passará a ser grafado como no Brasil: "úmido".

11) Portugal mantém o acento agudo no “e” e no “o” tônicos que antecedem “m” ou “n”, enquanto o Brasil continua a usar circunflexo nessas palavras: académico/acadêmico, génio/gênio, fenómeno/fenômeno, bónus/bônus.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

A Vez do Beisebol


Vamos todos torcer pelos Red Sox? Sei que alguns estarão reagindo assim: mas o que é isso, companheiro? Você não é brasileiro? Sou sim, mas também sou capaz de apreciar novidades (esporte, cinema, literatura, música ou dança, por exemplo) que fazem sentido, que me divertem e que me ensinam algo sobre a condição humana, sejam elas originárias da minha cultura ou das que venho descobrindo vida afora.

Beisebol não é futebol, claro. Não tem pedaladas do Robinho ou chapeus do Ronaldinho Gaúcho, mas, como o esporte das multidões globais, esse esporte norte-americano também tem sua beleza plástica e nos traz muita alegria e paixão. A maioria

dos estrangeiros que conheço aqui nos Estados Unidos pensa o mesmo: beisebol é muito chato, porque é muito lento e sem graça. Eu também pensava assim e, para ser sincero, levei aproximadamente 15 anos para mudar de ideia. Era pura ignorância. Até pouco tempo atrás, eu nem sabia que o pitcher (aquele que inicialmente arremessa a bola) não pertencia ao mesmo time que o batter (aquele que rebate a bola) em ação. A lentidão é apenas cíclica e resulta da enorme tensão psicológica em jogo. Além do mais, ela se desfaz em picos de ação cuja rapidez da bola é raramente comparável a de outros esportes.

No Brasil da minha infância e adolescência, muita gente nem podia dizer com certeza qual era o tal de beisebol: o jogo bruto dos americanos ou aquele outro, meio parado, com tacos. Lembro-me que quando estava para me casar, no verão de 1991, meus futuros parentes convidaram e pagaram para que minha família brasileira fosse ver um jogo dos Twins, na belíssima arena chamada Metrodome, em Minneapolis. Também era minha primeira chance de ver um jogo de beisebol profissional. Embora eu já tivesse acumulado quase cinco anos de vida nos Estados Unidos, naquele estádio eu me sentia quase tão estrangeiro quanto os meus pais, irmãs e primos que tinham chegado de Minas há poucos dias.

Embora eu tivesse tido a oportunidade de me aproximar lentamente do esporte nos anos seguintes (e isso aconteceu porque descobri a alegria descompromissada, a descontração geral, e todo o “folclore” que se pratica nos estádios de ligas profissionais menores, como a dos Pawsocket, em Rhode Island), foi-me necessário ver meus filhos jogar beisebol nos campos do parque Crapo, em Dartmouth, para que eu de fato aprendesse as principais regras e as múltiplas sutilezas desse fabuloso esporte.

Quando tento racionalizar sobre os aspectos do beisebol que o tornam tão apelativo às massas, concluo que é seu incrível equilíbrio entre responsabilidades individuais e coletivas. O pitcher vive uma guerra pessoal contra o batter, um duelo que às vezes me faz pensar na relação tensa e terrível entre o touro e o toureiro. O aspecto psicológico daquele desafio entre os jogadores, porém, é de múltiplas conseqüências. Um desses dois elementos poderá levar sua equipe e seus fãs ao deleite total, à glória de um grand-slam, por exemplo, ou à humilhação de uma derrota de 12 a 2, como a que aconteceu aos Indians, de Cleveland, semana passada. Entretanto, o resultado de uma partida de beisebol poderá depender muito bem da rapidíssima sincronia de arremessos entre os jogadores do in-field e out-field, ou ainda da fantástica captura de uma bola rebatida pelo batter, cuja eficácia terá impacto direto no resultado final.

Depois de vários anos chegou o momento de me dar conta do meu profundo respeito por beisebol – mais que um esporte, uma instituição dos Estados Unidos que não precisa da aprovação do resto do mundo para se manter viva e apaixonante. A comprovação final dessa afinidade com o beisebol veio depois de assistir a duas recentes partidas no lendário Fenway Park, em Boston. Aquilo é misto de competição pacífica e festa de bom humor. Pessoas que não se conhecem se falam, fazem piadas, e, às vezes, até se abraçam. Entre milhares de fãs há uma constante vibração e zumbido. Quase sempre o clima é de celebração, ao som de rock and roll ou algum canto de glória em ritmo pop-rock. Acima de tudo, naqueles momentos me valeu a impressão de quão importante é conhecer para só depois julgar quem quer que seja ou qualquer coisa que nos retire do falso conforto de nossas convicções sobre mundos alheios.

Mirem-se nas cenas de Atenas

                                                       A colina da Acrópole desde o Hostel Safestay (2025) Ei, senhor Chico Buarque de Holan...