sexta-feira, 22 de agosto de 2008

História Sexual da MPB


Dário Borimm Jr
dborim@umassd.edu


Monumental, hilária, e reveladora ­­– assim podemos definir o livro de Rodrigo Faour, História sexual da MPB: A evolução do amor e do sexo na canção brasileira (Rio de Janeiro: Record, 2006). Não há como se pensar de outro modo diante das suas dimensões físicas, tom e valor simbólico enquanto referência. São 586 fascinantes páginas em papel off-set acrescidas de 32 páginas coloridas com as sugestivas capas de inúmeros LPs e CDs. Para o bem geral da nação e seus estudiosos e simpatizantes, o jovem jornalista e pesquisador Rodrigo Faour vai muito além do que se poderia esperar de um bom livro inteiramente dedicado às questões amorosas e sexuais na música popular brasileira.

Conforme nos adianta o astuto especialista Jairo Severiano, ao recomendar entusiasticamente a obra à primeira aba da segunda edição,“Faour obrigou-se a realizar a exaustiva tarefa de levantar mais de quinze mil composições representativas de toda a existência de nossa música.” Dessas, Faour analisou 1.300 títulos para desenvolver e sustentar suas teorias. Nessa empreitada, são citados os versos mais pungentes de todas ou quase todas essas 1.300 canções, às quais o autor teve acesso nos acervos das principais gravadoras brasileiras.

Além de discernir e comentar incontáveis canções que confirmam os paradigmas principais da história da música popular, o autor não deixa de incluir as exceções às regras, passagens estas que muitas vezes enriquecem seu ensaio com humor inusitado. Ao discutir algumas belas mas soturnas e deprimentes modinhas, Faour cita uma parte da entrevista com José Ramos Tinhorão em que o renomado e polêmico historiador analisa “Perdão, Emília,” de autor desconhecido. Gravada em 1902 por Bahiano e Mário Pinheiro, seus versos contam, segundo Tinhorão, “a história de um cara que vai ao cemitério pedir perdão à mulher porque lhe tirou a virgindade e não se casou com ela. No meio da música vem a grande surpresa: a morta ganha fala e esculhamba o cara” (28-29).

Na versão original, a musa-morta desabafa: “Monstro tirano, pra que vens agora? / Lembrar-me as mágoas que por ti passei? / Lá nesse mundo em que vivi chorando, / Desde o instante em que te vi e amei” (29). Faour arremata, com ironia, que foi por “acaso que deram voz à mulher nesta música–mesmo que depois de morta. Em geral não era assim” (29). Em plena informalidade, o autor observa que canções desse tempo “causavam um amargor no estômago que nem uma tonelada de Sonrisal daria jeito” (29). Explica ele que aquelas imagens dramáticas se tornariam “um indicativo de bom gosto. A música tida como bonita em geral continha alguma tragédia ou um quê de melancolia embutido” (29).

Com uma linguagem despojada (ao mesmo tempo informal e jocosa, e muitas vezes, irônica), Faour discorre sobre uma das principais vocações da música popular brasileira: elaborar uma múltipla crônica de costumes. Entre tais costumes, destaca-se a acentuada tendência do compositor, músico e consumidor-cidadão ao culto e estetização da fossa, do amor frustrado, da tristeza e da solidão. Segundo as contas de Faour, até a década de 60 do século passado, 90% de todas as canções amorosas brasileiras abordavam o desencanto amoroso.

O pesquisador também apresenta, com inúmeros argumentos e detalhes, uma aparente forma de esquizofrenia brasileira. Por um lado, setores da sociedade reprimem a tematização da sexualidade na música, impondo-lhe censura e punindo severamente os transgressores. Por outro lado, escancaram-se, desde os primeiros sambas até as banais formas de “bunda music,” os princípios da castidade e do decoro. Popularizam-se assim as “safadanças”, termo do próprio autor, isto é, o maxixe, o forró, a lambada, e o funk, enquanto se celebra e se abusa do duplo sentido da linguagem, da dita sacanagem, e da escatologia.

Em conclusão, a obra de Rodrigo Faour é ambiciosa e atinge seus objetivos, constituindo um adicional de peso (literal e metaforicamente) a uma distinta lista de obras que retratam com rigor, minúcia e zelo a história tão picante quanto mirabolante da canção brasileira.

sábado, 26 de julho de 2008

Bossa & Samba Thrill


Dário Borim Jr.


dborim@umassd.edu

Since June, 2008 there has been a new compact disc out there, The Bossa Project, featuring enchanting ways by which music travels deeply into and across cultures. It is truly inspiring when an artist who has proven to be extremely successful with the public and the critics alike takes a chance by landing in considerably new territory. In truth, though, the group Chicago's career and Robert Lamm's particular history of daunting crossovers and fusions of various pop genres and jazz (within and without the band) have subtly prepared us for the unpredictable, for the novelty that is fresh and authentic in its bold flight beyond previously established musical boundaries. Lamm, for those who may not know, has had much to do with the unprecedented trajectory which marks Chicago’s 40 plus years of unrelenting music writing and performance. Among so many other achievements, including the sale of more than 120 million copies of their recordings, the band has been the only U.S. group to visit Billboard ranks for four decades in a row.

Lamm's new release inspires us into that artistic courage while confirming our trust in his ability to breakthrough, to visit, to take risks, to mingle, and to come out anew, more creative and more convincing in his honest approach to making art music. Opening with a fabulous bossa nova rendition of “A Man and a Woman,” the main theme of a French romantic feature movie (directed by Claude Lelouch, 1966) that helped launch the music of Antonio Carlos Jobim, Luís Bonfá and Vinicius de Moraes, The Bossa Project is not just bossa nova, even though bossa is huge anyway, whether one likes it or not. By the way, celebrating 50 years of existence now, this Brazilian style is no passing fad in the sublime hands and horns of a Stan Getz, or the like. It remains an emotionally vibrant and yet gracefully seducing type of musicality with an open door to multiple explorations, including unheard-of mixing with contemporary trends in electronica and so-called world music.

Lamm goes beyond bossa nova by including three remixed tunes or by mixing it with jazz in multiple cuts, especially in “Haute Girl,” co-written with band partner (and arranger) John Van Epps. The Chicago founder artist (actually born in New York City) also encounters and excels in nothing but samba, which is no easy terrain for any musician not born, raised or intensively trained in Brazil. He does it marvelously in Van Epps' tune "Samba in Your Life” or in his own delightful composition, "Send Rain." Since bossa is undeniably rooted in samba, a musical dialog between the two music styles (or two points in the musical development lane that keeps stretching forward in time) can be enchanting in João Gilberto or Rosa Passos, but so is it in "Speak Low," by Kurt Weill and Odgen Nash.

For Brazilian music fans, here is a tip: Lamm's rendition of "Águas de Março" ("Waters of March"), the only original tune from Brazil in the disc, would make Jobim rejoice with us. It is, of course, not your average song. Several years ago Los Angeles Times music critic Leonard Feather argued that Jobim’s stylized samba had the most complex harmonic structure among all popular tunes he knew. He then placed “Waters of March” among the top ten compositions of all times. First released in 1972 and superbly recorded in 1974, by Elis Regina and Tom Jobim, “Águas de Março” was also chosen by influential newspaper Folha de São Paulo’s readers as the most beautiful Brazilian song ever written. Flutist Zé Luis helps, but it is mostly due to Lamm's credit (with his soothing voice naturally resembling that of our beloved Ipanema genius) that an unforgettable, world-class masterpiece continues to entrance us, as it wears new hats and new clothes on international shores from time to time.

sábado, 19 de julho de 2008

Encantado





En-
can-
ta-
do



dborim@umassd.edu
[Cassamento de Carla e Leandro, 21/junho/08]

O título desta crônica resume meu estado de espírito diante do desenrolar das férias que me chegaram ao fim no segundo fim-de-semana de julho. Com Ian, filhote de 15 anos e 1,82 m. de altura, cheguei a Belo Horizonte sem muita impaciência (só um pouquinho) quatro horas antes que Brasil e Argentina jogassem no Mineirão pelas Eliminatórias da Copa do Mundo de Futebol.

É verdade que nossa seleção poderia ter jogado bem melhor e vencido los hermanos del sur. Mas, passada a frustração momentânea, concordo com meu filho: a equipe do Dunga não jogou tão mal, o que fica comprovado pelos clipes dos melhores momentos da partida, já postados para o mundo ver numa popular página da internet, o http://www.youtube.com/. O que importava para nós dois era estarmos lá no estádio, carne e osso, diante da seleção brasileira em jogo tão importante. Foi mesmo uma noite inesquecível para pai e filho que moram no exterior, dois fanáticos por futebol, esporte este que nos aproxima e nos faz cúmplices das mesmas emoções.

A alegria de rever parentes e amigos também veio de imediato e, em poucos dias, muitos de nós presenciaríamos o belo e chiquérrimo casamento de uma sobrinha/prima. A cerimônia religiosa, na Basílica de Lourdes, incluiu um vasto e bem escolhido repertório musical, com direito a um show à parte de um renomado barítono, um afiado trompete de fazer vibrar a alma, e um comovente coral de música sacra que escapuliu do tradicional numa breve visita à sensibilidade popular de Erasmo e Roberto Carlos. A festa no Buffet Catharina embalou centenas de convidados em gastronomia de fino trato, ao som de uma banda a tocar valsas, boleros, sambas, e vários ritmos pop dos anos 60-90 por seis horas consecutivas. Esta mesma banda acompanhou o noivo (habilidoso ao piano e na guitarra), sua noiva híper-entusiasmada, e outros membros do clã. Ao delírio de novos fãs, a família unida subiu ao palco para protagonizar uma longa cantoria de velhos clássicos dos Beatles.

Nos dias seguintes minha festa particular continuou. Foram inúmeras as garrafas de vinho e cerveja com parentes e outros seres queridos cujas amizades já duram mais de 30 anos. Foram múltiplos os eventos especiais que, pela ocasião da minha presença, reuniriam dezenas de pessoas a quem estimo e admiro até o ponto de viver sonhando com nosso próximo encontro, amigos esses que tornaram a viagem ao Brasil um encanto geral. Para ser sincero, devo dizer que a realização de um desses eventos não teve a nada a ver com minha presença. A sorte simplesmente esteve ao meu lado. Por isso pude participar de uma divertidíssima reunião de amigos, turma que festejou muito enquanto freqüentava o segundo grau na primeira quinzena da década de 1970.

Mas para não dizer que só falei de gente chegada, resta-me compartilhar a alegria que tive ao vencer o preconceito e ir viver uma experiência inusitada: dançar samba no Parque Municipal de Belo Horizonte. Como é que é?, vocês que conhecem o local estarão se perguntando. É isso mesmo: deixei o descabido medo de roubos e assaltos de lado e, imaginem, para lá me dirigi, sozinho, em plena noite de domingo. E não me arrependi. Muito pelo contrário. Senti orgulho de não ter sucumbido aos meus próprios temores, agradecendo aos céus pela extraordinária oportunidade que tinha esse expatriado dançando ao som de quatro bandas de samba, ali rodeado de jovens e não-tão jovens que curtiam o ritmo maior do Brasil e o glorioso grand-finale de mais um Festival Internacional de Teatro de Belo Horizonte.

Nessa vida, mais encantados nos sentimos quando uma luz, aparentemente insossa, nos acorda do sono da complacência. É quando uma graça cai dos céus e não nos escondemos dela como se essa fosse relâmpago sob chuva de verão.

Carta de Clarice


Dário Borim Jr.



Em 1995 o jornal O Estado de São Paulo publicava a seguinte carta escrita em Berna, Suíça, a 2 de janeiro de 1947. Suspeita-se que tenha sido redigida pela grande romancista Clarice Lispector.

Querida,
Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Nem sei como lhe explicar minha alma. Mas o que eu queria dizer é que a gente é muito preciosa, e que é somente até um certo ponto que a gente pode desistir de si própria e se dar aos outros e às circunstâncias. Depois que uma pessoa perde o respeito a si mesma e o respeito às suas próprias necessidades - depois disso fica-se um pouco um trapo.

Eu queria tanto, tanto estar junto de você e conversar e contar experiências minhas e dos outros. Você veria que há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo. Eu mesma não queria contar a você como estou agora, porque achei inútil. Pretendia apenas lhe contar o meu novo caráter, um mês antes de irmos para o Brasil, para você estar prevenida. Mas espero de tal forma que no navio ou avião que nos leva de volta eu me transforme instantaneamente na antiga que eu era, que talvez nem fosse necessário contar. Querida, quase quatro anos me transformaram muito. Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma num boi? Assim fiquei eu... em que pese a dura comparação... Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões - cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também minha força. Espero que você nunca me veja assim resignada, porque é quase repugnante. Espero que no navio que me leve de volta, só a idéia de ver você e de retomar um pouco minha vida - que não era maravilhosa mas era uma vida - eu me transforme inteiramente.

Uma amiga, um dia, encheu-se de coragem, como ela disse e me perguntou: "Você era muito diferente, não era?". Ela disse que me achava ardente e vibrante, e que quando me encontrou agora se disse: ou esta calma excessiva é uma atitude ou então ela mudou tanto que parece quase irreconhecível. Uma outra pessoa disse que eu me movo com lassidão de mulher de cinqüenta anos. Tudo isso você não vai ver nem sentir, queira Deus. Não haveria necessidade de lhe dizer, então. Mas não pude deixar de querer lhe mostrar o que pode acontecer com uma pessoa que fez pacto com todos, e que se esqueceu de que o nó vital de uma pessoa deve ser respeitado. Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que você imagina que é ruim em você - pelo amor de Deus, não queira fazer de você mesma uma pessoa perfeita - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse o único meio de viver.

Juro por Deus que se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia - será punida e irá para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não será punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo aquilo que sua vida exige. Parece uma vida amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma. Espero em Deus que você acredite em mim. Gostaria mesmo que você me visse e assistisse minha vida sem eu saber. Isso seria uma lição para mim. Ver o que pode suceder quando se pactua com a comodidade de alma.

On Tom Jobim


By Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu

This year we celebrate 50 years of bossa nova, and there is, indeed, much to rejoice, because whether one likes or dislikes this type of music, no one can deny its historically decisive role in the development of Brazilian music (especially the genre known as MPB) and its major influence upon jazz and world music at large. When we think of bossa nova, we must necessarily remember Antonio Carlos (Tom) Jobim, who died almost 14 years ago in a New York City hospital. It is high time we learned more about a priceless poetic legacy to the music and music-lovers of the world. Poet and novelist Helena Jobim's book entitled Antônio Carlos Jobim: um homem iluminado makes his personal, intellectual, and professional history come alive in a compelling story for all readers. It is, likewise, an illuminating document for researchers in the fields of music, literature, art, philosophy, and popular culture.

As if it were not for the vast, intimate, and revealing set of photographs, the engaging elegance and unique structure of the prose, the resourceful catalog of recording data, or even the enlightening description of creative processes and partnerships of a true twentieth-century's genius, one single piece of writing added to Helena Jobim's endearing biography of her brother makes it all worth it. In 1970 Tom is interviewed by one of Brazil's perhaps most intelligent and controversial journalists of all times, Carlos Lacerda (151-163).

Some of Tom's greatest anguish (but not resentment) resulted from his own image in the Brazilian press: too often distorted and misunderstood. The harshest attacks on him arguably came from prejudiced critics who, rather unfairly and unwisely, regarded his music as imitation of foreign sounds. He once declared to his family: "Lacerda's article is the only serious piece that describes who I am" (151). Of course Helena Jobim's moving and enchanting book serves to fill in some of that void. Quoting Pablo Picasso (and Tom Jobim loved quoting artists and poets, such as Carlos Drummond, Fernando Pessoa and Guimarães Rosa), the carioca maestro once explained that out of that anguish, his own "cube of darkness," he was "born again" on a daily basis (163).

Jobim's exceptional talent as a songwriter follows a tradition in Brazilian music since Chiquinha Gonzaga 150 years ago: sometimes to bridge over and sometimes to do away with the illusive divide between erudite and popular culture, including music and poetry. Toward that goal (just naturally and smoothly being driven to it, rather than pursuing it) he was certainly lucky and clever enough to chose and to be chosen to work with giants of either end, such as Radamés Gnatalli and Dolores Duran, or other outstanding bards, like Chico Buarque de Hollanda and Vinicius de Moraes, whose art has also spanned all over that open field of borderless creation.

The author of "Waters of March" actually read, questioned, and recreated the world he lived in not only through mesmerizing melody, but also through down-to-earth poetry. Helena Jobim does justice to her brother's poetic voice in many dazzling instances. It all starts on a high note of low spirits by a singular composer whose ecological concerns made him a bit gloomier every day. It is indeed too sad that he had to leave us prematurely, at the peak of his career but before writing another 500 tunes of inexplicable grace. Tom could have added one more stanza to his own verses, the one that stands as an epigraph in Um homem iluminado: "Every time a tree is cut down here on Earth, I believe it will grow again somewhere else, in another world. So, when I die, it is to this place that I want to go, where forests live in peace."

sábado, 7 de junho de 2008

Sambas dos animais


Sambas dos Animais

Dário Borim Jr.
[Sampson, um golden retriever nascido em Minnesota em setembro, 2003]

“O homem antigamente falava / Com a cobra, o jabuti e o leão”. Assim tem início umas das canções mais interessantes de um compositor-filósofo: o inigualável ícone da contracultura brasileira, Jorge Mautner (um carioca filho de judeu austríaco). O assunto é sério em “O mundo dos animais”, faixa interpretada pela jovem cantora brasiliense Adriana Maciel e incluído numa bela coletânea de música infantil brasileira (que agrada a adultos também). O disco foi lançado pelo selo norte-americano Putumayo em setembro de 2007 com o título Brazilian Playground.

O tratamento do tema é leve, em ritmo de samba mais lento que o tradicional, quase o de um samba-canção, apesar de revelar um inequívoco desencanto com os rumos tomados pelos seres humanos. Por um lado vem a brincadeira que nos alerta: “Olha o macaco na selva / Não á macaco, baby / É o meu irmão”. As transformações por nós realizadas deram fim àquele tempo de paz em que a gente “falava com os animais”. Infelizmente, a era de comunicação e integração entre as pessoas e os bichos não volta mais: “Pois o homem rei do planeta / Logo fez uma careta / E começou a sua civilização”.

Não consigo pensar no assunto dessa canção sem relacioná-lo a um conto da grande escritora brasileira Clarice Lispector (também de origem judaica). Em “O búfalo”, que integra o volume Laços de família, publicado em 1960 (e reeditado pela Rocco em 1998), a narrativa nos leva a um zoológico. Seguimos os passos, os olhares e as emoções de uma mulher que de tão frustrada no amor quer exprimir (e talvez expelir) todo o seu ódio num encontro com qualquer animal selvagem que se apresente diante dela com os mesmos sentimentos hostis. Incapaz de conversar com eles, condição esta imposta por nós mesmos, segundo Jorge Mautner, a mulher na verdade se surpreende com a paz, dignidade, harmonia, e até carinho, entre os bichos.

Naquela ocasião, por exemplo, um leão lambia a testa da leoa. Depois ele passeou “enjubado e tranqüilo, e a leoa lentamente reconstituiu sobre as patas estendidas a cabeça de uma esfinge” (126). A mulher vestindo um casaco marrom (sem nome, no conto) revoltou-se diante do amor entre os dois animais, do seu romance em plena primavera. Mais tarde ela vai adquirir uma imensa vontade de matar “aqueles macacos em levitação pela jaula, macacos felizes como ervas, macacos se entrepulando suaves, a macaca com o olhar resignado de amor, e a outra macaca dando de mamar” (127).

Um charmoso, inocente e brincalhão quati (animal que eu vim a conhecer solto e contente diante das Cataratas do Iguaçu) também desconserta aquele ser humano solitário e sem paz interior. “De dentro da jaula o quati olhou-a. Ela o olhou. Nenhuma palavra trocada” (130). O animal, porém, parecia fazer-lhe uma pergunta, o que a perturbava. “A testa estava tão encostada às grades que por um instante lhe pareceu que ela estava enjaulada e que um quati livre a examinava” (130). De tanto provocá-lo, a mulher finalmente consegue vislumbrar ódio em um animal do zoológico, um búfalo, mas prefiro deixar aqui, em suspense, o desfecho da trama.

Por ter sido extremamente influenciada pelos filósofos existencialistas, Lispector se ocupou de analisar, na sua obra, as fascinantes diferenças e semelhanças entre os humanos e os animais, preocupação esta que aparece em outros contos de Laços de família. Naturalmente o tema é complexo e não há espaço nesta crônica para maiores digressões. Vale dizer que para Lispector muitos humanos agem como se os animais não tivessem, também, muitos de nossos sentimentos, como a tristeza, o medo, a saudade, o ódio, a alegria, a ternura e o amor. Algumas das cruciais diferenças, entretanto, são que, por um lado, eles não sofrem com o conflito de emoções em torno de uma mesma situação de vida; por outro lado, não sonham com auto-superação e acumulação de posses através das guerras ou das glórias da ciência com que se transforma o ambiente onde somos criados.

Já que os tempos de conversa aberta entre humanos e animais já se exauriu, como sugere Jorge Mautner, ou que nunca existiu, com a necessária transparência, até mesmo entre os humanos, como implica Lispector, é hora de amarmos mais uns aos outros, humanos, e também os animais. Sem mesmo contarmos com as benesses de uma linguagem humana precisa, sem erros e rodeios, talvez seja hora de tentar aprender algo: como deixar de lado a soberba e a auto-promoção em detrimento do bem alheio, e abraçar os sambas dos animais, brincando e harmonizando-nos como muitas crianças da nossa espécie ainda conseguem.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Solidão em suburbano


Dário Borim Jr.

dborim@umassd.edu

O expresso das 4:45 partiu da estação cinco minutos atrasado naquela tarde — um tropeço na vida agitada de qualquer nova-iorquino. Uma vez dentro de um vagão para não-fumantes, lotado como de costume na hora do pico, encontrei por sorte uma vaga num daqueles desconfortáveis bancos plásticos de trens suburbanos.

Após mais um árduo dia de trabalho, eu sentia todo o meu corpo doer. Pior que braços e pernas, entretanto, algo me afligia por dentro. Meses de solidão e anonimato numa megalópole haviam assegurado à tristeza o direito de me dominar e me pôr em desordem as emoções.

Disfarcei o olhar por todas as direções em busca de fisionomias, senão amigas, pelo menos cordiais. Para o meu desalento, os semblantes dos passageiros espelhavam o mesmo vazio que sentia eu em mim mesmo. Eles também pareciam precisar de contato humano, mas não se dispunham a dar um passo sequer para consegui-lo. Longe disso, os passageiros achavam sempre um refúgio para os seus sentimentos: ler, ler e ler, até que chegassem finalmente a suas estações de destino.

Ávido por iniciar uma conversa, eu percebi no banco de trás uma senhora de meia idade. Tive esperança. Imaginei que fosse simpática e que até gostasse de uma prosa leve, jovial. Para minha decepção, a madame permaneceu estática: nem por uma vez a vi desencalhar os olhos de seu The Wall-Street Journal durante os seus sólidos trinta minutos de viagem.

Acredito que muitos visitantes à área metropolitana de Nova Iorque concordariam comigo: está para nascer na terra gente mais ocupada, individualista e insensibilizada que os habitantes da maior cidade do Ocidente. De Greenwich, Connecticut, trago na memória um dos meus argumentos. Ali na mesma estação de trem, no mesmo horário, todo santo dia, as pessoas estão "se encontrando". O curioso é que elas nem se olham. Ocorre uma pitoresca cena diária: enquanto esperam a condução para o trabalho ou a escola, dezenas de pessoas suspendem os jornais e revistas até bem perto dos olhos. Seriam míopes? Aposto que não. Apesar de se verem todos os dias, os passageiros da estação de Greenwich não se conhecem, ou, quem sabe, orgulhosamente disfarçam que não.

A viagem rumo à bela estação central em Manhattan continua, mas chega o momento em que decido vaguear por outros carros do comboio. Acabo encontrando o carro-bar, onde seis homens bebem algo naquela tarde de verão. Alguns deles olham para o chão e, outros, para a paisagem monótona e inútil de prédios sujos, uma das vistas que admiravam pelas janelas do carro que deveria ser o mais descontraído e interessante de todos. Fui, urgentemente, comprar uma cerveja. De fato, ainda tinha fé que alguma conversa saísse por ali. Mais uma garrafinha de Miller, uma terceira, e nem mesmo uma palavra disseram. Nem eu. Um pouco mais deprimido, deixei o vagão.

Era com o objetivo de dar alívio à minha alma ferida que eu me dirigia à ilha de Manhattan, o coração do lazer daquela fascinante cidade norte-americana, para turistas. Em certos bares do Greenwich Village, eu encontraria a paz de espírito com que sonhava sufocar minha nostalgia e autocomiseração. Mas até que chegasse à estação central, sofri os dissabores da mais plena solidão e impotência diante da frieza humana. Um convívio passageiro e fortuito era só o que eu queria; porém, era muito a pedir dos outros viajantes e de mim mesmo. Só me restava uma alternativa. Como qualquer outro indivíduo a bordo, também me tornei um leitor sem mais me importar com o ambiente. Carregava eu também uma alma ausente e seca, fingindo ter a única alma viva naquele trem.
Posted by Picasa

Mirem-se nas cenas de Atenas

                                                       A colina da Acrópole desde o Hostel Safestay (2025) Ei, senhor Chico Buarque de Holan...