sábado, 13 de setembro de 2008

Milton & Muito Mais


Dário Borim Jr.
De repente o sul da Nova Inglaterra foi invadido por músicos e escritores luso-afro-brasileiros. Até parece conspiração das artes lusófonas na Terra do Tio Sam. Nem sei por onde começar. Talvez deva respeitar a ordem dos termos do título desta crônica, que, aliás, nasceu antes dela—coisa rara para mim, que gosto de explorar as possibilidades de um título até o último minuto antes da publicação.

Então, não é boato não: no dia 11 de outubro vai se apresentar no Zeiterion, o lindo teatro no centro de New Bedford, a 15 minutos de carro da minha casa, o grande Milton Nascimento, o Milton do Clube da Esquina, de Belo Horizonte, aquele lá da simpática cidade de Três Pontas, a 25 km em linha reta do hospital de Paraguaçu, onde nasci. E não vem sozinho. Estará com ele o Trio Jobim: Paulo, filho mais velho de Tom Jobim, no violão; Daniel, neto do maestro, no piano; e o grande Paulo Braga na batera. A rua em frente ao teatro vai ser fechada para trânsito de carros e, imaginem, a partir das 6 da tarde vai-se vender feijoada, salgadinho, e caipirinha ali, em pleno asfalto! Aí vem concerto do Milton & Trio Jobim, certamente trazendo lágrimas aos rostos dos mais sensíveis.

A noite, porém, não vai terminar com as cortinas do teatro dizendo adeus. Lá fora a festa vai continuar com mais música ao vivo e dançarinas contratadas para animar os mais tímidos. Este será apenas o começo de um ano cultural recheado de atrações, ano que o Zeiterion dedica ao Brasil a partir de outubro. Em 15 de novembro, por exemplo, apresenta-se uma companhia de dança chamada Nascimento & Nascimento Novo. Em 20 de fevereiro, o famoso grupo DanceBrazil, de Salvador, Bahia, faz um espetáculo de capoeira, no dia seguinte ao de um workshop dessa arte afro-brasileira, também oferecido pelo Zeiterion. A oficina será dada pelo mestre Vieira, a quem o Centro Cultural Brasileiro de Boston reconhece como pioneiro da capoeira neste país. A noite de 19 de fevereiro será longa, com um verdadeiro Carmaval no Café Funchal, em New Bedford.
Nos dias 13 e 14 de março será a vez da grande diva do fado, Mariza, se apresentar no Zeiterion. Ela também vai cantar no Centro de Artes Jorgensen, da Universidade de Connecticut, em Storrs, na noite de 21 de fevereiro.
Lá mesmo em Storrs, em 28 de outubro, haverá um espetáculo da Orquestra Filarmônica Brasileira, sob a batuta de Gil Jardim, interpretando peças de Heitor Villa-Lobos. Um terceiro grande evento no mesmo teatro Jorgensen será o dos irmãos brasileiros Sérgio e Odair Assad, exímios violonistas, em 16 de outubro.
Providence e Boston não poderiam ficar de fora dessa longa série de eventos. No dia 17 de setembro, na Universidade Brown, dois entre os mais renomados escritores lusófonos da atualidade, o português José Luís Peixoto e o angolano José Eduardo Agualusa, farão leituras de suas obras. Já na capital de Massachusetts, no dia 25 de setembro, António Lobo Antunes, excepcional romancista luso-africano, é o tema de um colóquio co-patrocinado pelo Centro de Estudos Portugueses da UMass Dartmouth.

Por falta de espaço, e por ser hora de concluir esta crônica, ficam aqui apenas mais dois convites. Em Boston, no auditório da Berklee, escola de jazz mais famosa do mundo, a afinadíssima cabo-verdiana Lura faz show em 12 de outubro. Antes dela, porém, se comemoram 50 anos de bossa nova no Berklee Café com o espetáculo do pianista César Camargo Mariano, acompanhado do violonista e arranjador Oscar Castro Neves. Na verdade já estou até tonto de tanta tentação. Aliás, gostei desta aliteração tripla de três Ts e quase quis (outra aliteração) trocar de título para esta crônica. Os TTT ficam, então, como um subtítulo quae sera tamen: Tonto de Tanta Tentação!

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Futebol em Pequim


Dário Borimm Jr
dborim@umassd.edu

Fiquei un tanto triste e pensativo depois de duas partidas de futebol nessas Olimpíadas de Pequim: a do Brasil que perdeu feio para a Argentina, no masculino, e a do Brasil que perdeu de lavada para os Estados Unidos, no feminino. Sim, temos estrelas individuais: uma Marta e um Ronaldinho Gaúcho, um Diego e uma Cristiane. Observei como que até as brasileiras menos famosas da defesa e do meio-campo são boas de bola: controlam, driblam—fazem o que querem com muita intimidade e criatividade. Mas não sabem o que é melhor para o grupo e acabam se esforçando muito, individualmente e, por isso, de modo vulnerável à equipe. Então o que nos falta? É estratégia tática (na defesa, meio-campo e ataque) e rigor na disciplina, seja ela individual ou coletiva. Aqui não há espaço para discutir cada uma dessas falhas, mas vale a pena coletar alguns exemplos e argumentos.

Na terça-feira o Brasil claramente entrou em campo despreocupado e destituído de qualquer tática ou plano para anular o grande jogador argentino, Messi. O rapaz tinha espaço e liberdade para jogar. Isso me faz pensar: Seria arrogância ou displicência? Ou ambas? Será que um Dunga da vida, ou quem estiver no comando técnico da equipe, pensa em como se preparar taticamente, de modo especifico, para um determinado jogo? Acho que não. Entra o time em campo num oba-oba, num otimismo irresponsável ou numa má-fé de quem pensa que ganha a equipe que tem o maior número de estrelas ou a mais alta média de talentos individuais. Isso é muita ingenuidade num esporte coletivo tão equilibrado, dentro do Brasil (como se vê no Campeonato Brasileiro, onde apenas três pontos fazem um time subir ou descer várias posições na tabela), e no resto do planeta (como se constatou nas últimas copas do mundo, em que nenhum time se mostrou extremamente superior aos demais).

Acredito que o Brasil nunca vai jogar futebol como se fosse um time de robôs, é claro, mas um milhão de vezes já se provou que só entusiasmo e brilho individual não ganham nem copa nem medalha de ouro. Não tenho dúvida de que Dunga seja um homem inteligente, senão não teria chegado aonde chegou, mas ele não é estrategista e não tem experiência nessa área. Por exemplo, será que ele treinou a equipe para enfrentar retrancas fechadas, como foi a de Camarões? Será que treinou a seleção para enfrentar equipes que faziam pressão sobre o Brasil desde a saída de bola, no campo do Brasil, como fez a Argentina? Acho que não.

Acho que o Brasil só joga bem quando os adversários nos permitem espaço e liberdade para criar, e hoje isso ocorre com muita raridade—pois o tempo da inocência já acabou. Os demais times estudam e encaram o Brasil com estratégia e seriedade. Pior ainda, muitos dos nossos técnicos não apenas deixam de se preocupar com o estilo das outras equipes antes dos jogos em mente: eles não estão acostumados a descobrir e adotar novas táticas em pleno jogo, em função de como os adversários estão jogando a cada fase da partida.

De novo vem a história do oba-oba dos alegres e bacanas, que vira corre-corre dos aflitos e despeitados (frente aos rivais platinos), ou das aflitas e chorosas (como as nossas jogadoras após o jogo com os Estados Unidos). A equipe norte-americana não tinha uma Marta, e era uma equipe obviamente inferior à nossa em termos de habilidades individuais, mas era uma equipe que jogava de modo coeso, eficiente e objetivo. Fortes psicologicamente, elas estavam conscientes de que só unidas poderiam vencer. Objetivos, seus técnicos treinaram-nas para sustentar posturas sólidas de defesa e de ataque—uma estrutura planejada e ensaiada e, como tal, com maior chance de ser bem sucedida. Improvisação, minha gente, tem seus limites. Vamos primeiro unir habilidade, estratégia e consciência coletiva—aí, sim, poderemos pensar, quem sabe, que nada nos vai separar do próximo ouro ou da próxima copa do mundo.



História Sexual da MPB


Dário Borimm Jr
dborim@umassd.edu


Monumental, hilária, e reveladora ­­– assim podemos definir o livro de Rodrigo Faour, História sexual da MPB: A evolução do amor e do sexo na canção brasileira (Rio de Janeiro: Record, 2006). Não há como se pensar de outro modo diante das suas dimensões físicas, tom e valor simbólico enquanto referência. São 586 fascinantes páginas em papel off-set acrescidas de 32 páginas coloridas com as sugestivas capas de inúmeros LPs e CDs. Para o bem geral da nação e seus estudiosos e simpatizantes, o jovem jornalista e pesquisador Rodrigo Faour vai muito além do que se poderia esperar de um bom livro inteiramente dedicado às questões amorosas e sexuais na música popular brasileira.

Conforme nos adianta o astuto especialista Jairo Severiano, ao recomendar entusiasticamente a obra à primeira aba da segunda edição,“Faour obrigou-se a realizar a exaustiva tarefa de levantar mais de quinze mil composições representativas de toda a existência de nossa música.” Dessas, Faour analisou 1.300 títulos para desenvolver e sustentar suas teorias. Nessa empreitada, são citados os versos mais pungentes de todas ou quase todas essas 1.300 canções, às quais o autor teve acesso nos acervos das principais gravadoras brasileiras.

Além de discernir e comentar incontáveis canções que confirmam os paradigmas principais da história da música popular, o autor não deixa de incluir as exceções às regras, passagens estas que muitas vezes enriquecem seu ensaio com humor inusitado. Ao discutir algumas belas mas soturnas e deprimentes modinhas, Faour cita uma parte da entrevista com José Ramos Tinhorão em que o renomado e polêmico historiador analisa “Perdão, Emília,” de autor desconhecido. Gravada em 1902 por Bahiano e Mário Pinheiro, seus versos contam, segundo Tinhorão, “a história de um cara que vai ao cemitério pedir perdão à mulher porque lhe tirou a virgindade e não se casou com ela. No meio da música vem a grande surpresa: a morta ganha fala e esculhamba o cara” (28-29).

Na versão original, a musa-morta desabafa: “Monstro tirano, pra que vens agora? / Lembrar-me as mágoas que por ti passei? / Lá nesse mundo em que vivi chorando, / Desde o instante em que te vi e amei” (29). Faour arremata, com ironia, que foi por “acaso que deram voz à mulher nesta música–mesmo que depois de morta. Em geral não era assim” (29). Em plena informalidade, o autor observa que canções desse tempo “causavam um amargor no estômago que nem uma tonelada de Sonrisal daria jeito” (29). Explica ele que aquelas imagens dramáticas se tornariam “um indicativo de bom gosto. A música tida como bonita em geral continha alguma tragédia ou um quê de melancolia embutido” (29).

Com uma linguagem despojada (ao mesmo tempo informal e jocosa, e muitas vezes, irônica), Faour discorre sobre uma das principais vocações da música popular brasileira: elaborar uma múltipla crônica de costumes. Entre tais costumes, destaca-se a acentuada tendência do compositor, músico e consumidor-cidadão ao culto e estetização da fossa, do amor frustrado, da tristeza e da solidão. Segundo as contas de Faour, até a década de 60 do século passado, 90% de todas as canções amorosas brasileiras abordavam o desencanto amoroso.

O pesquisador também apresenta, com inúmeros argumentos e detalhes, uma aparente forma de esquizofrenia brasileira. Por um lado, setores da sociedade reprimem a tematização da sexualidade na música, impondo-lhe censura e punindo severamente os transgressores. Por outro lado, escancaram-se, desde os primeiros sambas até as banais formas de “bunda music,” os princípios da castidade e do decoro. Popularizam-se assim as “safadanças”, termo do próprio autor, isto é, o maxixe, o forró, a lambada, e o funk, enquanto se celebra e se abusa do duplo sentido da linguagem, da dita sacanagem, e da escatologia.

Em conclusão, a obra de Rodrigo Faour é ambiciosa e atinge seus objetivos, constituindo um adicional de peso (literal e metaforicamente) a uma distinta lista de obras que retratam com rigor, minúcia e zelo a história tão picante quanto mirabolante da canção brasileira.

sábado, 26 de julho de 2008

Bossa & Samba Thrill


Dário Borim Jr.


dborim@umassd.edu

Since June, 2008 there has been a new compact disc out there, The Bossa Project, featuring enchanting ways by which music travels deeply into and across cultures. It is truly inspiring when an artist who has proven to be extremely successful with the public and the critics alike takes a chance by landing in considerably new territory. In truth, though, the group Chicago's career and Robert Lamm's particular history of daunting crossovers and fusions of various pop genres and jazz (within and without the band) have subtly prepared us for the unpredictable, for the novelty that is fresh and authentic in its bold flight beyond previously established musical boundaries. Lamm, for those who may not know, has had much to do with the unprecedented trajectory which marks Chicago’s 40 plus years of unrelenting music writing and performance. Among so many other achievements, including the sale of more than 120 million copies of their recordings, the band has been the only U.S. group to visit Billboard ranks for four decades in a row.

Lamm's new release inspires us into that artistic courage while confirming our trust in his ability to breakthrough, to visit, to take risks, to mingle, and to come out anew, more creative and more convincing in his honest approach to making art music. Opening with a fabulous bossa nova rendition of “A Man and a Woman,” the main theme of a French romantic feature movie (directed by Claude Lelouch, 1966) that helped launch the music of Antonio Carlos Jobim, Luís Bonfá and Vinicius de Moraes, The Bossa Project is not just bossa nova, even though bossa is huge anyway, whether one likes it or not. By the way, celebrating 50 years of existence now, this Brazilian style is no passing fad in the sublime hands and horns of a Stan Getz, or the like. It remains an emotionally vibrant and yet gracefully seducing type of musicality with an open door to multiple explorations, including unheard-of mixing with contemporary trends in electronica and so-called world music.

Lamm goes beyond bossa nova by including three remixed tunes or by mixing it with jazz in multiple cuts, especially in “Haute Girl,” co-written with band partner (and arranger) John Van Epps. The Chicago founder artist (actually born in New York City) also encounters and excels in nothing but samba, which is no easy terrain for any musician not born, raised or intensively trained in Brazil. He does it marvelously in Van Epps' tune "Samba in Your Life” or in his own delightful composition, "Send Rain." Since bossa is undeniably rooted in samba, a musical dialog between the two music styles (or two points in the musical development lane that keeps stretching forward in time) can be enchanting in João Gilberto or Rosa Passos, but so is it in "Speak Low," by Kurt Weill and Odgen Nash.

For Brazilian music fans, here is a tip: Lamm's rendition of "Águas de Março" ("Waters of March"), the only original tune from Brazil in the disc, would make Jobim rejoice with us. It is, of course, not your average song. Several years ago Los Angeles Times music critic Leonard Feather argued that Jobim’s stylized samba had the most complex harmonic structure among all popular tunes he knew. He then placed “Waters of March” among the top ten compositions of all times. First released in 1972 and superbly recorded in 1974, by Elis Regina and Tom Jobim, “Águas de Março” was also chosen by influential newspaper Folha de São Paulo’s readers as the most beautiful Brazilian song ever written. Flutist Zé Luis helps, but it is mostly due to Lamm's credit (with his soothing voice naturally resembling that of our beloved Ipanema genius) that an unforgettable, world-class masterpiece continues to entrance us, as it wears new hats and new clothes on international shores from time to time.

sábado, 19 de julho de 2008

Encantado





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can-
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dborim@umassd.edu
[Cassamento de Carla e Leandro, 21/junho/08]

O título desta crônica resume meu estado de espírito diante do desenrolar das férias que me chegaram ao fim no segundo fim-de-semana de julho. Com Ian, filhote de 15 anos e 1,82 m. de altura, cheguei a Belo Horizonte sem muita impaciência (só um pouquinho) quatro horas antes que Brasil e Argentina jogassem no Mineirão pelas Eliminatórias da Copa do Mundo de Futebol.

É verdade que nossa seleção poderia ter jogado bem melhor e vencido los hermanos del sur. Mas, passada a frustração momentânea, concordo com meu filho: a equipe do Dunga não jogou tão mal, o que fica comprovado pelos clipes dos melhores momentos da partida, já postados para o mundo ver numa popular página da internet, o http://www.youtube.com/. O que importava para nós dois era estarmos lá no estádio, carne e osso, diante da seleção brasileira em jogo tão importante. Foi mesmo uma noite inesquecível para pai e filho que moram no exterior, dois fanáticos por futebol, esporte este que nos aproxima e nos faz cúmplices das mesmas emoções.

A alegria de rever parentes e amigos também veio de imediato e, em poucos dias, muitos de nós presenciaríamos o belo e chiquérrimo casamento de uma sobrinha/prima. A cerimônia religiosa, na Basílica de Lourdes, incluiu um vasto e bem escolhido repertório musical, com direito a um show à parte de um renomado barítono, um afiado trompete de fazer vibrar a alma, e um comovente coral de música sacra que escapuliu do tradicional numa breve visita à sensibilidade popular de Erasmo e Roberto Carlos. A festa no Buffet Catharina embalou centenas de convidados em gastronomia de fino trato, ao som de uma banda a tocar valsas, boleros, sambas, e vários ritmos pop dos anos 60-90 por seis horas consecutivas. Esta mesma banda acompanhou o noivo (habilidoso ao piano e na guitarra), sua noiva híper-entusiasmada, e outros membros do clã. Ao delírio de novos fãs, a família unida subiu ao palco para protagonizar uma longa cantoria de velhos clássicos dos Beatles.

Nos dias seguintes minha festa particular continuou. Foram inúmeras as garrafas de vinho e cerveja com parentes e outros seres queridos cujas amizades já duram mais de 30 anos. Foram múltiplos os eventos especiais que, pela ocasião da minha presença, reuniriam dezenas de pessoas a quem estimo e admiro até o ponto de viver sonhando com nosso próximo encontro, amigos esses que tornaram a viagem ao Brasil um encanto geral. Para ser sincero, devo dizer que a realização de um desses eventos não teve a nada a ver com minha presença. A sorte simplesmente esteve ao meu lado. Por isso pude participar de uma divertidíssima reunião de amigos, turma que festejou muito enquanto freqüentava o segundo grau na primeira quinzena da década de 1970.

Mas para não dizer que só falei de gente chegada, resta-me compartilhar a alegria que tive ao vencer o preconceito e ir viver uma experiência inusitada: dançar samba no Parque Municipal de Belo Horizonte. Como é que é?, vocês que conhecem o local estarão se perguntando. É isso mesmo: deixei o descabido medo de roubos e assaltos de lado e, imaginem, para lá me dirigi, sozinho, em plena noite de domingo. E não me arrependi. Muito pelo contrário. Senti orgulho de não ter sucumbido aos meus próprios temores, agradecendo aos céus pela extraordinária oportunidade que tinha esse expatriado dançando ao som de quatro bandas de samba, ali rodeado de jovens e não-tão jovens que curtiam o ritmo maior do Brasil e o glorioso grand-finale de mais um Festival Internacional de Teatro de Belo Horizonte.

Nessa vida, mais encantados nos sentimos quando uma luz, aparentemente insossa, nos acorda do sono da complacência. É quando uma graça cai dos céus e não nos escondemos dela como se essa fosse relâmpago sob chuva de verão.

Carta de Clarice


Dário Borim Jr.



Em 1995 o jornal O Estado de São Paulo publicava a seguinte carta escrita em Berna, Suíça, a 2 de janeiro de 1947. Suspeita-se que tenha sido redigida pela grande romancista Clarice Lispector.

Querida,
Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Nem sei como lhe explicar minha alma. Mas o que eu queria dizer é que a gente é muito preciosa, e que é somente até um certo ponto que a gente pode desistir de si própria e se dar aos outros e às circunstâncias. Depois que uma pessoa perde o respeito a si mesma e o respeito às suas próprias necessidades - depois disso fica-se um pouco um trapo.

Eu queria tanto, tanto estar junto de você e conversar e contar experiências minhas e dos outros. Você veria que há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo. Eu mesma não queria contar a você como estou agora, porque achei inútil. Pretendia apenas lhe contar o meu novo caráter, um mês antes de irmos para o Brasil, para você estar prevenida. Mas espero de tal forma que no navio ou avião que nos leva de volta eu me transforme instantaneamente na antiga que eu era, que talvez nem fosse necessário contar. Querida, quase quatro anos me transformaram muito. Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma num boi? Assim fiquei eu... em que pese a dura comparação... Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões - cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também minha força. Espero que você nunca me veja assim resignada, porque é quase repugnante. Espero que no navio que me leve de volta, só a idéia de ver você e de retomar um pouco minha vida - que não era maravilhosa mas era uma vida - eu me transforme inteiramente.

Uma amiga, um dia, encheu-se de coragem, como ela disse e me perguntou: "Você era muito diferente, não era?". Ela disse que me achava ardente e vibrante, e que quando me encontrou agora se disse: ou esta calma excessiva é uma atitude ou então ela mudou tanto que parece quase irreconhecível. Uma outra pessoa disse que eu me movo com lassidão de mulher de cinqüenta anos. Tudo isso você não vai ver nem sentir, queira Deus. Não haveria necessidade de lhe dizer, então. Mas não pude deixar de querer lhe mostrar o que pode acontecer com uma pessoa que fez pacto com todos, e que se esqueceu de que o nó vital de uma pessoa deve ser respeitado. Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que você imagina que é ruim em você - pelo amor de Deus, não queira fazer de você mesma uma pessoa perfeita - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse o único meio de viver.

Juro por Deus que se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia - será punida e irá para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não será punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo aquilo que sua vida exige. Parece uma vida amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma. Espero em Deus que você acredite em mim. Gostaria mesmo que você me visse e assistisse minha vida sem eu saber. Isso seria uma lição para mim. Ver o que pode suceder quando se pactua com a comodidade de alma.

On Tom Jobim


By Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu

This year we celebrate 50 years of bossa nova, and there is, indeed, much to rejoice, because whether one likes or dislikes this type of music, no one can deny its historically decisive role in the development of Brazilian music (especially the genre known as MPB) and its major influence upon jazz and world music at large. When we think of bossa nova, we must necessarily remember Antonio Carlos (Tom) Jobim, who died almost 14 years ago in a New York City hospital. It is high time we learned more about a priceless poetic legacy to the music and music-lovers of the world. Poet and novelist Helena Jobim's book entitled Antônio Carlos Jobim: um homem iluminado makes his personal, intellectual, and professional history come alive in a compelling story for all readers. It is, likewise, an illuminating document for researchers in the fields of music, literature, art, philosophy, and popular culture.

As if it were not for the vast, intimate, and revealing set of photographs, the engaging elegance and unique structure of the prose, the resourceful catalog of recording data, or even the enlightening description of creative processes and partnerships of a true twentieth-century's genius, one single piece of writing added to Helena Jobim's endearing biography of her brother makes it all worth it. In 1970 Tom is interviewed by one of Brazil's perhaps most intelligent and controversial journalists of all times, Carlos Lacerda (151-163).

Some of Tom's greatest anguish (but not resentment) resulted from his own image in the Brazilian press: too often distorted and misunderstood. The harshest attacks on him arguably came from prejudiced critics who, rather unfairly and unwisely, regarded his music as imitation of foreign sounds. He once declared to his family: "Lacerda's article is the only serious piece that describes who I am" (151). Of course Helena Jobim's moving and enchanting book serves to fill in some of that void. Quoting Pablo Picasso (and Tom Jobim loved quoting artists and poets, such as Carlos Drummond, Fernando Pessoa and Guimarães Rosa), the carioca maestro once explained that out of that anguish, his own "cube of darkness," he was "born again" on a daily basis (163).

Jobim's exceptional talent as a songwriter follows a tradition in Brazilian music since Chiquinha Gonzaga 150 years ago: sometimes to bridge over and sometimes to do away with the illusive divide between erudite and popular culture, including music and poetry. Toward that goal (just naturally and smoothly being driven to it, rather than pursuing it) he was certainly lucky and clever enough to chose and to be chosen to work with giants of either end, such as Radamés Gnatalli and Dolores Duran, or other outstanding bards, like Chico Buarque de Hollanda and Vinicius de Moraes, whose art has also spanned all over that open field of borderless creation.

The author of "Waters of March" actually read, questioned, and recreated the world he lived in not only through mesmerizing melody, but also through down-to-earth poetry. Helena Jobim does justice to her brother's poetic voice in many dazzling instances. It all starts on a high note of low spirits by a singular composer whose ecological concerns made him a bit gloomier every day. It is indeed too sad that he had to leave us prematurely, at the peak of his career but before writing another 500 tunes of inexplicable grace. Tom could have added one more stanza to his own verses, the one that stands as an epigraph in Um homem iluminado: "Every time a tree is cut down here on Earth, I believe it will grow again somewhere else, in another world. So, when I die, it is to this place that I want to go, where forests live in peace."

Mirem-se nas cenas de Atenas

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