segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Décadas



Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu

Quem teve a idéia de cortar o tempo em fatias,
a que se deu o nome de Ano, foi um indivíduo genial.
Industrializou esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão.
– Carlos Drummond de Andrade

O que é uma década? Todos sabem que é um período de dez anos, mas que surpresa tive eu numa fila de supermercado essa semana! Li a manchete numa revista semanal: “Acaba-se mais uma década!” Como é que é? Já estamos ao fim de mais uma? E como é que eu não me dei conta disso antes? Nem por um minuto nesses últimos doze meses pensei que estaríamos finalizando os primeiros dez anos do século XXI. Espera aí, não foi outro dia que tivemos aquela festa toda, depois de certo pânico com os computadores, pois eles entenderiam a chegada do ano (20)00 como a volta ao ano de 1900? É claro que também havia os grupos messiânicos e apocalípticos prevendo o fim do mundo em 2000.

O tempo é apenas uma referência em nossas vidas. Aquilo que de fato acontece em dez anos é o que nos marca e o que importa. Como referência, o tempo tem que ser vivido várias vezes durante certos períodos específicos para que possamos nos referenciar a ele corretamente, ter a uma razoável noção do que é um minuto, uma hora, um dia, uma semana, um mês, um ano e... uma década. Ninguém obviamente pôde ainda viver uma vida de mil anos. Portanto, é pela abstrata percepção do tempo histórico – a constatação de fatos que nós não vivemos diretamente – que podemos acreditar na veracidade de um milênio.

É muito mais fácil, porém, apreender o conceito por trás de uma década. Mesmo assim, essa idéia não é acessível a todos. Como pode um homem de 25 anos de idade entender bem o que é uma década? Ele só viveu metade de uma enquanto adulto! O problema maior, eu acho, é que na vida não há tempo para treinamento ou ensaio: antes de aprendermos a viver (se é que aprendemos) já estamos sendo testados pelas contingências do acaso, muitas vezes até pelos horrores da tragédia, que, aliás, nos chegarão, mais cedo ou mais tarde.

Agora, já vivendo na casa dos 50, tenho marcas na história da minha existência que me ajudam a entender o que é uma década. Estou aqui, morando mais uma vez nos Estados Unidos, há dez anos. Dez anos anteriores àquela mudança eu me casava. Entre hoje, o início de 2000, e o raiar da década de 1990, rolaram duas décadas – mas o que são 20 anos? Bem, mudei-me de casa umas 15 vezes, perdi ótimos amigos, uma queridíssima prima, e até uma irmã. Prefiro, pois, relembrar Fernando Sabino, para quem o “valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis”.

Por outro lado, foram tantas coisas boas. Nasceram-me dois lindos e saudáveis filhos, mais gigante e apaixonante golden-retriever. Vi meu pai praticamente renascer depois uma cirurgia cardíaca, minha mãe sobreviver penosamente a um câncer, e quatro de meus sobrinhos e sobrinhas se formarem e se casarem. Foi o tempo em que descobri o email, o telefone celular (e, depois, as suas maravilhosas mensagens comumente chamadas de “torpedos”) e as conversas instantâneas por computador (os ditos chats). Conclui dois mestrados e um doutorado, escrevi três livros, publiquei uns 30 trabalhos acadêmicos em vários países, e nove artigos de página integral no Estado de Minas. Também criei um blog de crônicas, através do qual compartilho idéias e histórias ao conversar com amigos-leitores espalhados pelo mundo. Ah... viajei muito, também -- a pelo menos quinze países.

Então é isso aí – uma década é tempo para muitas realizações e eventos radicais nas nossas vidas, mas não é nenhuma eternidade. Mais difícil é pensar que sabendo bem como uma década é pouco tempo, o ser humano só pode, em média, desfrutar de algumas delas: pouco mais que cinco após se tornar adulto. Então, aos 50 anos, sabendo mais ou menos o que cabe e não me cabe numa década, quantas me restam? Três já foram para o espaço. Se for de sorte mediana (tendo em mente a expectativa de vida média perto de 73), terei mais duas décadas e uns quebrados pela frente, antes de bater as botas. Se concordarmos com o grande filósofo romano Sêneca, tudo isso é bobagem: “O importante é viver bem, não viver por muito tempo. Muitas vezes vive bem quem não vive muito”.

Como dizia John Lennon, “a vida é o que nos acontece enquanto estamos ocupados fazendo outros planos”. Millôr Fernandes também colabora: “quem mata o tempo não é assassino; é um suicida”. Por isso quero e vou renovar minhas esperanças e reconstruir sonhos agora e a cada fim de ano – saravá! Bem, o relógio está batendo. É melhor acabar logo esta crônica e tomar mais um trago de uma excelente cachaça, a Vale Verde, que recebi de uma amiga a quem conheço há quase três décadas. Com aquela água-benta, digo, aguardente, ela me desejava mais 50 anos de vida. Os Oscar Niemeyer e Manoel de Oliveira da vida existem, sim. Quem sabe tomaram dessa pinga ou de outra tão boa para alcançar os cem anos de idade mais que lúcidos – produtivos!
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sábado, 12 de dezembro de 2009

Outono de ciúmes

Outono de ciúmes


Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu



Ainda não sei bem de que vou tratar nesta crônica. Devido ao pouco espaço que temos nos jornais, é preciso ser objetivo. Por isso mesmo eu nem deveria tecer estas considerações, pois já estão utilizando três ou quatros linhas da parcela que me cabe nesta página de jornal. Este preâmbulo me faz pensar em certos acadêmicos. Ao iniciarem suas palestras falam que vão ser breves, mas acabam por gastar quase dez minutos antes mesmo de ler uma linha do seu trabalho.

Ao especular sobre o que escrever, lembranças da noite anterior me cutucam a mente. Então, como vai ficar esta crônica? Sobre o quê estou aqui para conversar? Meu leitor tem certa vantagem sobre mim. Você que agora lê estas “mal traçadas linhas” já sabe qual é o título desta crônica, mas eu ainda não. A primeira idéia que tive foi chamá-la de “Arqueologia do ciúme”, mas desisti. É muita ambição para pouco espaço que, aliás, vai acabar logo. Bem, já que as folhas por aqui caíram todas e o outono está quase por desaparecer por completo (nevou duas vezes esta semana!), resolvi intitular este texto de “Outono de ciúmes”.

São tantas as inspirações por trás dessa escolha que eu nem poderia sequer mencioná-las todas por aqui, muito menos as desenvolver a contento. Quem sabe começo pelo fim, como o faz Machado de Assis em Memórias póstumas de Brás Cubas? Revisito as conversas de ontem à noite na casa do professor Frank Sousa, então. Estavam lá dois distintos convidados, Carlos Reis e João Cezar de Castro Rocha, críticos de peso no mundo da literatura de Portugal e do Brasil, respectivamente. Antes de começarmos a contar dezenas de piadas (ou anedotas, como dizem os portugas), demos prosseguimento informal às discussões que predominaram pela tarde adentro, quando tivemos um belo colóquio na Universidade de Massachusetts Dartmouth.

Organizado por Sousa, aquele encontro acadêmico enfocava a literatura de Eça de Queirós e Machado de Assis. Reis e Rocha foram as grandes estrelas, e dois dos assuntos que mais renderam análises foram adultério e ciúme. Sobre essas questões, Reis, mundialmente reconhecido como um dos maiores especialistas em Eça, discorreu sobre o romance A correspondência de Fradique Mendes. Por seu turno, Rocha, grande teórico da narrativa machadiana, fez instigantes alusões ao mais famoso livro de Gustave Flaubert, Madame Bovary, ao dissecar os percalços da crítica ferrenha com a qual Machado Assis condenara O primo Basílio, a obra do seu contemporâneo português.

Horas mais tarde, pouco antes do jantar, tive o prazer de apresentar uma pergunta aos ilustres convidados. A questão tinha surgido durante minha aula da última quinta-feira, sobre Dom Casmurro. Um aluno, Marc McCarthy, me perguntara se eu sabia por que razão, ou sob quais circunstâncias da vida real, Machado de Assis teria abordado tão bem os temas do ciúme e do adultério em Dom Casmurro e Memórias póstumas. Não foi Machado um homem de vida burguesa bem comportada, um homem apaixonado por sua casta esposa, Carolina, a portuguesa que, segundo João Cezar, tivera grande influência sobre a carreira do magistral escritor brasileiro?

Aconteceu-me de ter visto, recentemente, uma bela versão cinematográfica de um romance do escritor inglês Graham Greene, Fim de caso. Naquele triângulo amoroso criado por Greene, quem mais sofria de ciúme era o escritor ficcional Maurice Bendrix, o amante, e não a infeliz esposa, Sarah Miles, ou seu marido, Henry, um burocrata tão sem-sal quanto desapaixonante (serve o neologismo?). Tanto os colegas naquele jantar saboroso, intelectual e anedótico, quanto os meus alunos de literatura, ouviram de mim pouco mais que uma pergunta: haveria alguma relação entre a sofisticada e profunda tematização que Machado faz do ciúme em Dom Casmurro e a sua suposta paternidade do poeta Mário de Alencar, oficialmente registrado e reconhecido como filho de José de Alencar? Sabe-se que Mário de Alencar tinha mais que as mesmas iniciais do autor carioca, M. A. Havia também fortes semelhanças físicas com Machado, e ambos eram epiléticos. Ademais, argumenta-se que Machado de Assis teve conduta antiética ao promover o “filho” a membro da Academia Brasileira de Letras.

Infelizmente não há mais espaço para reproduzir aqui as discussões que se seguiram. Elas ficam para a fértil imaginação do leitor, imaginação esta que não faltou aos ciúmes de Maurice Bendrix, Brás Cubas, Bento Santiago e, talvez, Machado de Assis. Se foi assim, assim será. E salve-se quem puder.

domingo, 22 de novembro de 2009

Coisa Linda



Fins de semana podem ser de vários tipos. Alguns nos reservam enormes novidades. Outros são tão desanimadores que nos fazem questionar a própria validade desses dias que passamos distantes do local de trabalho. É verdade que com a internet (ou mesmo há muitos anos antes dela), podemos levar os afazeres profissionais para casa. Principalmente nós, professores, lutamos com a separação emocional entre labor e prazer em frente a uma tela de computador.

Para mim, há muito mais vida nos fins de semana do que nos demais dias. Apesar disso, desde que haja de fato tempo e oportunidade para as novidades, não me importo de trabalhar um pouco aos sábados e domingos. Em alguns dos meus fins de semana atípicos, as novidades inexistem ou se escondem. Talvez o que me falte, então, seja apenas o devido entusiasmo para buscá-las.

Em outros fins de semana, de repente chega-me uma abundância de possibilidades de entretenimento. Esse foi o caso da semana passada (13-15 de novembro), em que Gal Costa se apresentou no belo teatro Zeiterion, situado a menos de 15 minutos da minha casa. E que maravilha de apresentação acústica foi aquela numa prazerosa noite de sexta-feira, em meio a um outono de temperaturas bastante amenas!

A adorável sexagenária baiana, ícone de meus sonhos nos anos 70 e 80 (alguns deles sapecosos), cantou e sorriu ao lado de um exímio (e simpático) violonista brasileiro radicado em Nova Iorque há quase 20 anos, Romero Lubambo. Os dois artistas, alegres e bem-dispostos, conversavam entre si e com o público sem a menor inibição, entre canções que passeavam do samba de raiz à bossa nova e à MPB, sem deixar ninguém imune aos irresistíveis charmes de Ary Barroso, Chico Buarque, Tom Jobim, Noel Rosa, Caetano Veloso e outros gênios tupiniquins.

Em certo momento, eu que me encontrava ao lado de um dos meus melhores amigos, o filósofo Rick Hogan, sussurrei que a interpretação que acabávamos de ouvir de “Dindi”, uma pérola musical de Tom Jobim, era, e continuaria a ser até o fim do show, a mais graciosa canção daquele variado repertório. Logo eu reconheceria, entretanto, que errara, pois ao retornarem ao palco para cantar dois temas após ouvirem um retumbante “mais um”, Gal e Romero fascinaram a platéia com algo ainda mais formoso e encantador que “Dindi”. Era a vez de “Lindeza”, tema de Caetano Veloso originalmente lançado no seu disco Circuladô (1991).

Ao sairmos do teatro, voltei a sussurrar ao ouvido de meu amigo: “Riquinho, essa última foi ainda mais especial, não? E como se a beleza dessa canção por si mesma não fosse suficiente para me ‘derrubar’ emocionalmente e me fazer chorar um pouquinho, ela simplesmente foi a primeira canção que toquei no primeiro programa de rádio que fiz na vida, oito anos atrás”. (O aniversário do Brazilliance, aliás, é dia 4 de dezembro, e recordações de velhos shows me estão garantidas para os próximos dias!)

Como havia ainda mais um motivo para me ter emocionado ao final daquele show, novamente abordei meu amigo, o ouvinte mais fiel que Brazilliance já teve até hoje: “Tem mais, companheiro. Aquela música do Caetano se fez inseparável de uma velha história de amor que jamais vou esquecer”. Rick apenas sorriu. Sabia de quem se tratava. Também sabia que seu amigo era um dos últimos românticos, como ele próprio. Além de concordar com aquela avaliação de “Lindeza”, Rick não quis dizer mais nada senão algo assim, em bom português, “Ai, Darinho... você e suas paixões!”

Certas experiências pessoais, inclusive as paixões, podem se esticar por meses, anos ou até mesmo décadas afora, mas alguns fins de semana são tão interessantes, tão “longos” e recheados de novidades, que a gente se esquece que eles vão se acabar, e que teremos que voltar à rotina. O espaço desta crônica é limitado, como também é limitado o tempo entre uma sexta-feira e a segunda que nos empurra de volta à mesmice.

Por isso não terei meios para discorrer sobre a festa de degustação de vinhos da qual participei numa charmosa galeria de arte, logo na noite seguinte àquela do show da Gal. Tampouco poderei contar do fenomenal espetáculo que Milton Nascimento (o de Três Pontas), acompanhado de excelente banda, deu-nos no domingo em Boston (sim, naquele mesmo fim de semana), com direito a “Coração de estudante”, “Canção da América” e “Para Lennon e McCartney”.

Termino, pois, com alguns versos de “Lindeza”, que na voz de Gal Costa comoveram centenas de almas, fazendo história, numa sexta-feira-dia-treze, dia de muita sorte em New Bedford, Massachusetts: “Coisa linda/ É mais que uma idéia louca/ Ver-te ao alcance da boca/ Eu nem posso acreditar/ Coisa linda/ Minha humanidade cresce/ Quando o mundo te oferece/ E enfim te dás, tens lugar/ Promessa de felicidade/ Festa da vontade/ Nítido farol, sinal/ Novo sob o sol/ Vida mais real/ Coisa linda/ Lua lua lua lua”.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

D. H. Lawrence: Livros e perplexidades



Dário Borim Jr.

[Foto de Lawrence aos 21 anos]
Apesar de suas múltiplas conexões com a ciência, com outros ramos das humanidades, ou com as outras artes, entre as quais a pintura e o cinema, a literatura é um mundo em si, um sistema galáctico de emoções, sensações, e imaginação sem fim. Leio há muitos anos, é claro, e sou apaixonado por narrativas e versos de simbolismo inusitado, de plasticidade na linguagem e desafios nas idéias que me contorcem, massageiam ou revigoram a consciência. De palavra em palavra que leio ou escrevo, reavalio e reinvento o mundo dentro de mim.

A literatura reafirma, galvaniza, sugere, explica, e torna ainda mais misteriosa a vida e todos os seus mais controvertidos e mais enigmáticos segredos, inclusive o amor e a morte. Lembro-me agora de certo dia de abril, quando as belas e coloridas manhãs do outono em Belo Horizonte me fascinavam e eu vivia um fervor de sentimentos e desejos. Pensei que se eu perdesse todos os outros motivos para querer viver, eu gostaria de continuar vivendo pelo prazer de ler. Eu ainda não tinha a menor idéia de que em poucos anos me tornaria um professor universitário de literatura e outros irmãos mais nobres na maravilhosa família das artes, tais como o cinema e a música.

Muitos memoráveis livros eu já li por me encontrar embrenhado na carreira acadêmica. Também muitos outros livros eu pude desfrutar, apesar dos compromissos profissionais que ocasionalmente me empurram a obras que não necessariamente desejo ler (ou reler pela sétima vez). Recentemente, uma daquelas pérolas literárias que me caíram às mãos sem compromisso é sobre um dos mais intrigantes escritores dos últimos dois séculos, David Herbert Lawrence, nascido em 11 de setembro de 1885. Em D. H. Lawrence: Interviews & Recollections um pesquisador da Universidade de Alberta (Canadá), Norman Page, reúne uma variedade de textos que realçam as complexas reviravoltas da vida e inusitadas facetas da genialidade daquele escritor inglês, filho de um quase analfabeto operário de uma mina de carvão e uma orgulhosa intelectual feminista.

Certamente não há espaço aqui para se discutir com profundidade os dilemas de uma vida tão curta (mas tão agitada), ou tampouco as riquezas de um vasto legado literário. Apesar de ter vivido apenas 44 anos, em que sofreu com uma saúde debilitada por violenta pneumonia na infância e uma fatal tuberculose em idade adulta, Lawrence fez fama de conquistador de inúmeros corações e um incansável carpinteiro das letras. Tendo viajado por todos os continentes, ele residiu em oito países. Publicou em sua breve vida, nada menos que treze romances, nove coleções de contos e dez livros de poemas, além de seis peças teatrais e vários ensaios literários.

A obra de Norman Page inclui precioso material pelas suas curiosidades, lirismo e perplexidades expostos em notas e passagens de livros anteriormente publicados sobre o autor de Mulheres apaixonadas e O amante de Lady Chatterley. Alguns desses textos ou fragmentos são assinados por grandes nomes da literatura mundial, tais como Aldous Huxley (autor de Admirável Mundo Novo) e E. M. Foster (Passagem para a Índia). São também de enorme interesse os depoimentos, literários ou não, de membros de sua família e das mulheres com quem o extraordinariamente carismático Lawrence se envolveu. Não se encontra quase nada de clichê no decurso da sua vida, uma vida que na obra de Page, aliás, reluz através de eventos e imagens tratados por pessoas diferentes a expor, às vezes, diversos e conflitantes ângulos de interpretação.

Apenas para evocar uma dessas imagens mais desconcertantes, basta-nos relembrar que Lawrence tinha mesmo um enorme poder de fascinação e sedução. Em 1912, aos vinte seis anos de idade, fora convidado para almoçar na casa de um de seus professores de literatura na Universidade de Nottingham. O jovem escritor conheceu, apaixonou-se e fez apaixonar-se a esposa daquele professor. Tinha ela 32 anos e se chamada Frieda Weekley. Apenas seis semanas após esse primeiro contato, a aristocrática Frieda revelou sua nova paixão ao marido, despediu-se de suas três crianças, e mudou-se, com David, da Inglaterra para a Alemanha, sua terra natal. Casaram-se David e Frieda dois anos mais tarde, e nunca mais se separam até a morte do escritor, na cidade francesa de Vence em 1930. Apesar dessas circunstâncias, penso que não devemos julgar o comportamento do casal sem lermos um pouco mais sobre eles. Naturalmente, as surpresas da vida e dos livros publicados por aí não se esgotam com este ponto final.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Guinness, graças a Deus



Dário Borim Jr
dborim@umassd.edu

Nunca escrevi crônica assim: esboçando palavras no branco de um saquinho para pessoas que passam mal no avião. Espero que o leitor não se incomode com esse prelúdio. É que meu computador portátil encontra-se em um compartimento distante do meu assento neste vôo 133 da companhia irlandesa Aer Lingus entre as cidades de Shannon e Boston. De fato estou longe do computador em conseqüência de dois gestos generosos. Uma das aeromoças antes de decolarmos se prontificou a achar um passageiro que trocasse de assento para que um jovem casal viajasse junto. Não tive por que não lhe atender ao pedido. A generosidade das aeromoças irlandesas, especialmente a de uma morena de olhos azuis chamada Michelle Flannery, foi uma espécie de posfácio a um livro de prazeres que li nessa visita a Dublin, jornada que se encerra nesta tarde de 14 de setembro. Tenho algumas histórias pra contar, é claro, sobre essa viagem cujo objetivo fora a um congresso interdisciplinar sobre as culturas lusófonas na Universidade Nacional da Irlanda em Maynooth.

Pra dar uma idéia de como Dublin se difere de muitas cidades, digo que a única vez em que vi um policial por lá foi quando uma mocinha fardada, de bochechas rosadas e pequenos olhos azuis, veio me perguntar se eu precisava de ajuda ao interpretar um mapa. Até o sol esteve generoso desde o dia em que cheguei, cinco dias trás. Dublinenses não estão acostumados com tantos dias claros em seguida e se sentiam no céu. Certamente o céu azul os tornava ainda mais alegres e simpáticos naquela cidade de muita chuva e frio.

Minha impressão, porém, é a de que mesmo em tempo ruim Dublin deva ser uma das cidades mais fascinantes entre as que já conheci. Não conheço todos os quatro cantos do planeta, como alguns amigos meus, para quem a Ásia e a África não são mistérios, mas já pus os pés em um bom número de cidades famosas, como Amsterdã, Bruxelas, Chicago, Las Vegas, Lisboa, Londres, Los Angeles, Madri, Montreal, Nova Iorque, Nova Orleãs, Paris, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e Toronto.

Daquelas cidades, nem mesmo Rio ou Nova Orleãs se compara a Dublin em dois quesitos: número de bares animados (em uma mesma área de acesso a pé) e grau de entusiasmo por música (ao vivo ou em disco). Há muito tempo ouvira falar de Dublin através de obras consagradas da literatura mundial, como as de James Joyce e Jonathan Swift. Finalmente chegara a hora de lá presenciar o hábito irlandês que mais se parece com meu ideal de alegria: muita conversa animada e muitas emoções à flor da pele, entre amigos, ao som de boa música e na companhia de muita cerveja, vinho, uísque ou qualquer que seja a opção etílica do freguês.

Dublin é peculiar por oferecer milhares de pubs a seus habitantes, tão faladores e brincalhões, e a seus visitantes, em número ainda maior, gente que logo se vê acostumada ao falatório e a cantoria geral. Na realidade, o melhor que a cidade tem a oferecer ocorre nos pubs. Somente na capital são consumidos em média um milhão de copos de Guinness, a distinta cerveja irlandesa, aquela bem preta e forte, que neste mês de setembro está comemorando 250 anos de existência. Em 1759, isto é, 200 anos antes de eu nascer, tomava corpo essa preciosidade que regularmente deslumbra o paladar de milhões de pessoas mundo afora.

Neste setembro de luz e temperaturas amenas, mês em que me torno um cinqüentenário, sinto-me honrado pela coincidência de datas que me associa à lendária morena. Os milhões de flores que acompanham a arquitetura medieval e habitam os parques, ruas e pubs de Dublin eu gostaria hoje de oferecer a meus pais, Lucy e Dário, que há meio século me trouxeram a um mundo onde as pessoas são capazes de pôr de lado o amargo da vida para poderem apreciar, de corpo e alma, o deleite refrescante da cerveja preta mais amarga e magicamente mais deliciosa da terra, graças a Deus!

sábado, 22 de agosto de 2009

Remédio para o Frio


Remédio para o Frio

[Dir. tec. Seydina, natural do Senegal, e jogadores do CVU e do IC]

Então o futsal de Paraguaçu se fez internacional mais uma vez em julho de 2009. No seu ginásio poliesportivo, o Ideal Clube recebeu a visita de um forte time de Los Angeles, Califórnia, com jovens de 14 a 16 anos: o CVU (Conejo Valley United). Em duas noites memoráveis para muitos de nós presentes, assisti com intenso interesse a quatro partidas, três das quais vencidas pelos norte-americanos, e a última, pelos brasileiros. Para o técnico do Ideal Clube, meu amigo Sílvio Seppini, o resultado negativo para as equipes de Paraguaçu se deveu a menor idade média de seus jogadores. Ele pode ter razão, mas, para mim, aquilo foi de qualquer modo uma experiência jamais vivida: jogos entre equipes de duas nações em minha pequena cidade. Além do mais, tive a chance de ouvir meu próprio filho, Ian, que de microfone na mão serviu ao evento como tradutor-intérprete no momento em que discursaram Sílvio, diretor de esportes do Ideal Clube, e Ângela Silva Santos, a presidente. Ian também colaborou para o brilho do evento ao liderar a interpretação a cappella do hino nacional dos Estados Unidos.

Nas arquibancadas, eu me assentava perto de Maristela Dunn, mãe entusiasmada de dois craques em campo, Christopher e Brian. Ela e eu temos as mesmas condições de expatriados e de pais de filhos com cidadanias duplas. Uma pessoa de invejável disposição e criatividade, Maristela era a grande responsável pela realização daquele evento esportivo, assim como a de tantos outros eventos turísticos e culturais dos quais 14 meninos californianos desfrutaram em Paraguaçu, cidades vizinhas, e Bertioga, uma cidade praiana paulista onde os garotos trocaram as bolas pelas ondas tropicais.

Assistindo àqueles jogos no ginásio do Clube não deixei de pensar nos velhos tempos, quando a nova sede do Ideal dava os primeiros passos e nem piscina ali havia. Só tínhamos uma quadra externa e esta era controlada pelo sr. Neném Órfão. Bons tempos aqueles em que um pequeno caso de mau comportamento de um dos meninos levava o sr. Neném a clamar, “Respeitem meus 60 anos, meus rapazes”. Nostalgia por nostalgia, para mim nada é melhor que relembrar a época das grandes olimpíadas dos anos 70, quando mais de uma dezena de cidades do Sul de Minas aqui vinham para competir. Era tempo de fazer muito frio em Paraguaçu – o que criava mais uma justificativa para se tomar uma pequena dose de conhaque antes de entrar nas quadras.

Também gosto de relembrar uma noite em que nossa equipe de handebol jogava muito bem contra a equipe representando a cidade de Lavras, considerada a melhor do certame. Eu era o goleiro do Ideal Clube e de alguma forma fazia milagres impedindo uma esperada lavada sobre a nossa fraca equipe. Houve então o momento em que foram chamar as autoridades do Ideal para presenciar aquele fenômeno. Segundo as más línguas, o goleiro se fazia notar não apenas pelas suas magistrais defesas, mas, também, pela estranheza de seu uniforme, um agasalho (sob o calção!) que não lhe servia de tão pequeno e de tão revelador das canelas desabrigadas do frio.

 

Ao chegarem os senhores da diretoria, o desastre já tinha ocorrido. O placar, que inacreditavelmente fora de 1 a 1 na primeira etapa, agora expunha a equipe local a um ridículo 7 a 1. A causa do desengano nunca se soube. Houve quem dissesse que alguns dos atletas da nossa equipe tinham se excedido no remédio para o frio. Outros puseram a culpa no goleiro que, de repente, perdeu a figa da sorte e caiu na desgraça.

Resta pensar que, se naquela época fazer uma partida de qualquer esporte contra uma equipe de Alfenas ou de Machado já era uma honra, pode-se imaginar a satisfação dos meninos do Ideal Clube ao enfrentar equipes estrangeiras, como as da Califórnia ou a da Austrália, equipe visitante que tivemos em quadra de poucos anos atrás. É assim que percebemos como que os privilégios do mundo globalizado de hoje têm suas vantagens sobre as limitações e provincianismo de ontem. Não nos esqueçamos, porém, que as noites frias da era das olimpíadas de Paraguaçu ainda não tiveram rivais à altura: com ou sem lavada no placar, nós atletas e nós torcedores sempre ganhávamos em termos de diversão e aprimoramento técnico, com muito ou nada de remédio para o frio.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

O kaol é nosso

O kaol é nosso

Dário Borim Jr
dborim@umassd.edu


Quem diria que Paraguaçu também dá compositor, radialista e agente cultural de renome nacional? E quem diria que um de nós batizou o mais famoso PF (prato feito) de Belo Horizonte, o kaol? Quem me disse isso foi o Dr. José Côdo, meu caro cunhado, um amante de todas as coisas de Minas Gerais, mas principalmente as de Ubá, onde nasceu, de Belo Horizonte, seu segundo berço, e de Paraguaçu, pela qual também nutre especial afeição. Zé Côdo outro dia me falava todo entusiasmado desse tal de Rômulo Coimbra Tavares Paes (1918-1982), ou “o Lupicínio Rodrigues de Belo Horizonte”, como o chamava o compositor Gervásio Horta. Noventa e um anos atrás, Rômulo Paes não nascera na capital do Estado, mas, sim, na princesinha do Sul de Minas. Era então o dia da graça de 27 de julho de 1918.

Já passou da hora, pois, de sabermos todos que um paraguaçuense tem um monumento em sua homenagem em plena região nobre do centro de Belo Horizonte, exatamente na avenida Álvares Cabral junto à esquina com a rua da Bahia. Em minha mais recente viagem ao Brasil tive a oportunidade de visitar o monumento doado pela Usiminas à Prefeitura de Belo Horizonte em junho de 1995. Nele uma placa de bronze declara que, natural de Paraguaçu, Rômulo Paes “teve importante presença na vida cultural da cidade”.

Há poucas semanas homenageado em evento na Casa do Jornalista, Rômulo Paes representa um raro tipo de profissional, aquele ao mesmo tempo boêmio e empreendedor. Advogado, poeta, compositor, cantor, jornalista, radialista, produtor cultural, líder sindicalista, e também vereador da capital mineira, Paes fica na história como um grande freqüentador da noite belorizontina, especialmente das casas noturnas e cafés estabelecidos em eixos que atravessam o centro, desde o local do seu monumento até os bares da Lagoinha, e do Mercado Central até as imediações do bairro da Floresta. Durante aquela sessão solene foi lançado o disco Rômulo Paes e Coisas Mais, reunindo 14 canções de sua autoria interpretadas por vários músicos e cantores, inclusive Selma Carvalho, Helena Pena e o grupo Nós e Voz.

Na verdade as obras de Rômulo Paes, que incluem baião, foxtrot, marchinha, samba e toada, foram co-escritas por grandes nomes, como os de Adoniran Barbosa, Haroldo Lobo e Moreira da Silva, e gravadas por gente competente e famosa, como Dircinha Batista, Luiz Gonzaga e Orlando Silva. Tendo iniciado sua carreira de cantor de rádio em 1935, mais tarde Paes se tornaria diretor artístico da Rádio Guarani e diretor geral da Rádio Mineira, tendo lançado artistas de destaque, como Dalva de Oliveira. Alguns dos seus maiores sucessos, registrados na história da música popular brasileira, são as marchas “Já comi, já bebi”, “Galinha carijó”, e “Minha Belo Horizonte”, de 1957; e “Rua da Bahia,” lançada no Carnaval de 1962.

Paes ficou famoso por outro tipo de criação. Em reportagem publicada pelo jornal Estado de Minas (edição de 30 de maio, 2009, p. 20), Arnaldo Viana discorre sobre a história do famoso prato feito de Belo Horizonte, o “kaol”, iguaria lançada por um tradicional bar-restaurante, o Café Palhares, situado no número 638 da rua Tupinambás. Pois então, paraguaçuenses que moram ou visitam Belo Horizonte e que também queiram comer um kaol, como eu mesmo o fiz várias vezes lá pelos anos 70 e 80 afora: nosso conterrâneo está no centro desta criação culinária de 1950.

Assim narra Viana: “Sentado ao balcão, Rômulo Paes degustou o prato de arroz, ovo e lingüiça, que, para a maioria da freguesia, ganhava mais sabor se fosse precedido de uma pinguinha. […] E o poeta, compositor etc. etc. propôs ao João [Ferreira, dono-fundador do Café Palhares] batizar a singela iguaria: ‘Vamos lá: cachaça, arroz, ovo e lingüiça. Então vamos chamá-lo de kaol’, disse o multicultural Rômulo Paes. O ‘k’ entrou na pia batismal para dar certa nobreza ao prato, mas nem precisava. A nobreza, no caso, estava na simplicidade. E isso ninguém consegue explicar”.

Mirem-se nas cenas de Atenas

                                                       A colina da Acrópole desde o Hostel Safestay (2025) Ei, senhor Chico Buarque de Holan...