segunda-feira, 26 de maio de 2014

Um Delicioso Caos de Lembranças do Cairo e Istambul

Um Delicioso Caos no Cairo e Istambul



Camelos no Cairo

Dário Borim Jr
dborim@umassd.edu

Há dias tão intensos de emoções e estímulos para reflexões e, ao mesmo tempo, tão repletos de aventura e de novidades, que nos vemos incapazes revivê-los e avaliá-los em retrospectiva organizada e sensata. Vivemos então um delicioso caos de momentos memoráveis.
Ainda à espera de uma conexão no aeroporto de Istambul, em viagem de volta a Massachusetts, tento encontrar uma síntese para um turbilhão de experiências. Impossível! Até mesmo escolher um tópico para essa crônica, a primeira sobre minha viagem de uma semana a Turquia e também de uma semana ao Egito, parece-me tarefa além de minha capacidade. Viajar para países muito distantes de onde vivemos, sociedades de costumes e línguas muito diferentes dos nossos e dos que conhecemos, é algo extremamente desafiador e gratificante.
Em Istambul, a quinta maior cidade do mundo, ocorre o meu primeiro contato com uma sociedade acentuadamente muçulmana (talvez 50% de seus habitantes reverenciem Alá). Para cá viajei com o principal propósito de apresentar um trabalho acadêmico sobre a canção “O que Será,” de Chico Buarque de Holanda, e o filmeDona Flor e Seus Dois Maridos, de Bruno Barreto, baseado no romance homônimo de Jorge Amado. Aqui encontrei uma belíssima cidade em profunda e acelerada transição, marcada tanto por prosperidade e acentuados contrastes sócio-econômicos quanto por ativismo politico e violência policial sob acirrados conflitos ideológicos.
No cerne desses conflitos, de uma parte se quer uma cidade e um país moderno, de muitos shopping centers, e uma Istambul recortada por viadutos e autopistas. Por outro lado, preocupa-se com a preservação do patrimônio cultural, a efetivação de transporte público de qualidade, a manutenção de ruas e avenidas arborizadas (tomadas por gente, e não por velozes carros), a sustentação e expansão de muitos parques e praças, e a imagem de uma cidade onde os arranha-céus têm que se restringir a determinas áreas apenas. Por conta dessas diferenças, protestos e confrontos com a polícia têm deixado manchas sangrentas na história do país.
Após uma semana na maravilhosa Turquia, era hora de ir visitar o Ian, o filhote mais velho, que acabava seu ano escolar na Universidade Americana do Cairo naquele mesmo dia da minha chegada, 18 de maio. Na maior capital do mundo árabe também tem havido lutas sangrentas entre manifestantes e policiais. Se em Instambul há dinheiro sobrando, pois a economia do país anda firme e forte faz mais de dez anos, aqui também há desentendimento sobre como usar esses recursos. Na capital dos egípcios, entretanto é a falta de dinheiro e as desavenças políticas entre religiosos e militares o que faz o barco balançar. Sofrendo as consequências de dois golpes de estado em menos de quatro anos, o país agora atravessa uma de suas maiores crises econômicas e sócio-políticas. As forças militares e para-militares têm reagido com violência aos protestos dos muçulmanos e outros descontentes.
Comparados com os da Turquia, os problemas do Egito são muito mais vastos e profundos. Enquanto a antiga Istambul se tornou uma nova “moda,” a cidade mais procurada por turistas europeus, o oposto ocorreu ao Cairo. A cidade africana vive as nefastas consequências da sua péssima imagem na mídia internacional. O chocante número de mortes nos conflitos políticos nas ruas dessa e de outras cidades (duas mortes desse tipo ocorreram enquanto estive no país) e o desconforto dos toques de recolher impostos por soldados carregando metralhadoras por todos os cantos da cidade afastaram os turistas. Esse é um peso enorme nos ombros de uma população que, em grande número, vive da economia informal do turismo. Um quarto da economia do Egito, aliás, depende da presença de turistas, e estes sumiram. A falta de dinheiro é recompensada por pães distribuídos gratuitamente e por outros subsídios governamentais. Para muitos egípcios, só mesmo Alá poderá dar jeito numa situação sufocante, e em nome de Alá muitos vão às caóticas ruas do Cairo protestar contra a ilegitimidade do governo instaurado à força, e contra a falta de liberdade e de emprego.
Apesar das marcantes diferenças entre as duas maiores cidades daquela parte do mundo, ambas me encantaram. Lá vivem pessoas que adoram conversar, descontrair tomando um chá, fumando suas shishas nos seus narguilês (o tabaco por meio de cachimbos de água), ou jogando gamão, a sorrir por quase nada e ajudar a quem precise. Ambas são, com certeza, fontes inesgotáveis de surpresas para um viajante ocidental. É como se estivéssemos nós mesmos em um filme que retratasse a vida como ela era milhares de anos atrás.
Como esquecer o charme e a aventura de um cotidiano jamais visto? São as roupas coloridas das mulheres ou suas burcas negras, ou mesmo seus véus e cachecóis. São os turbantes de todos os matizes de homens e meninos. É a roupa tradicional masculina do dia a dia – preta ou acizentada – que mais parece a velha batina abandonada pelos padres no Brasil há várias décadas. São as casas, palácios, igrejas e mesquitas de arquitetura inesquecivelmente variada porque elevadas ao longo dos séculos por gente de origens e valores muito díspares. São os cheiros das ervas e especiarias, dos peixes assados na chapa, e de tantas outras comidas feitas sobre os passeios ou mesmo junto a eles, mas nas próprias ruas.
São os animais, tais como camelos, cavalos, coelhos, galinhas, bodes, gatos e cães – todos convivendo com gente deitada em camas em plena rua, com transeuntes e seus telefones celulares (caros e baratos), com músicos, artesões, pescadores e vendedores ambulantes de sucos e chá. Lá estão eles entre centenas de barracas de toalhas, tapetes, frutas, pães e roscas, milhares de antenas parabólicas, motos, bicicletas, lambretas, charretes, e carros de todos os valores, de um BMW novinho em folha a um sedam russo caindo aos pedaços. São todos os seres e coisas movidos ou situados em meio à forte poluição do ar e aos sons de canções tradicionais, buzinas incessantes, sirenes de carros da polícia e do exército, sem falar das melódicas chamadas para a reza muçulmana cinco vezes ao dia através de altofalantes espalhados por todos os cantos. O Cairo e Istambul nos levam a um mundo que tão fascinantemente mescla os milênios enquanto desorienta e reorienta o ser ocidental rumo à beleza da diversidade humana, com suas múltiplas culturas, hábitos e habitats.


sexta-feira, 11 de abril de 2014

Sinergia das Artes



Debra Mann Quartet em Noite de Tom Jobim

Sinergia das Artes

Dário Borim Jr.

Que privilégio conviver numa comunidade onde conhecemos muita gente criativa, onde podemos nos sentir imersos num circuito das artes, literatura, e meios de comunicação de massa! Há certos dias em que parece que a energia positiva que passamos e recebemos uns dos outros atinge graus mais elevados. A sensação de companheirismo e co-autoria do nosso viver através  das artes se torna mais nítida, mais envolvente, mais inspiradora. Ontem, dia 10 de abril, de 2014, foi assim.
Meu ponto de partida é a edição de ontem do Brazilliance, meu programa semanal de rádio e internet, sempre das 16h00 às 19h00 (h. de Brasília). Encontrava-me, então, mais solto e descontraído que nas três semanas anteriores, quando recebi no estúdio da WUMD (a emissora universitária onde produzo meu show há 12 anos e meio) nada menos que 14 alunos de três escolas secundárias da região. Eles aprenderam um pouco sobre o mundo da comunicação e sobre a música brasileira. Leram e ouviram de mim sobre 14 dos nossos estilos musicais. Eles fizeram uma provinha em que tinham que descobrir qual gênero musical eu tocava ao vivo na rádio. Três deles conseguiram acertar 13 das 14 perguntas! Para mim era um prazer especial oferecer instrução e divertimento musicais a esses jovens membros da comunidade onde moro. É claro que não é fácil educar e entreter 14 adolescentes assentados no carpete de um pequeno estúdio, mas, pelo menos para mim, valeu a pena.
Ontem, porém, éramos só eu e Deus, no estúdio, e muita gente querida no outro lado da comunicação, os ouvintes (meus conhecidos ou não) que se espalham por esta região costeira da Nova Inglaterra, e por outras partes dos Estados Unidos, Europa e América Latina. Um daqueles ouvintes, o Juan, me chamou ao telefone. Tinha gostado de uma canção que eu tocara há minutos. Ele conhecia a cantora/pianista, Debra Mann, que interpretara “Água de Beber”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Juan queria saber, gentilmente, se eu tinha interesse em entrevistá-la ao vivo no programa, pois ela era sua amiga. Qual foi a sua surpresa quando eu lhe disse que a conhecera pessoalmente duas semanas atrás, quando ela se apresentou com mais três músicos na International House of Rhode Island, uma bela escola de inglês para estrangeiros em Providence, onde, no mesmo evento, e com muita honra, fiz uma minipalestra sobre Tom Jobim logo antes do concerto. O repertório do quarteto, aliás, foi inteiramente dedicado à obra do Maestro Soberano, uma apresentação musical de jazz, samba, e bossa nova fenomenal, com a ilustre participação de Mike Turk, um gaitista de primeira ordem. Vale dizer que aquela noite de domingo teve muito mais, inclusive uma bela feijoada completa, regrada a caipirinha que não era só para gringo ver: era mesmo da boa!
A conversa que tive com Juan ao telefone foi o início de uma fantástica sequência de encontros e desdobramentos artísticos. Após o show, dirige-me ao centro histórico de New Bedford, para a edição mensal do que chamam de Aha Night, noite de eventos culturais realizados na segunda quinta-feira de cada mês. No Green Beans, um café, prestigiei o trabalho de Andrew, filho de meu amigo polonês, Yurek. Ele expunha fotografias obtidas em Amsterdã e na terra de seu pai. Minutos depois, caminhei  até o Museu de Arte de New Bedford com três amigos, Don (escultor e cineasta), Leila (fotógrafa e jornalista), e Beatriz (escultora e fotógrafa). Lá fui apresentado a um amigo de Beatriz, o David, que reconheceu o meu nome e minha voz por ele há muitos anos ser ouvinte do Brazilliance. Esse simpático professor de matemática (e inveterado viajante do mundo inteiro) fez uma festa pela chance de poder conversar cara a cara com o seu “favorito DJ”. Eu ri, é claro, porque, tenho a sensação de que sou DJ somente quando estou na rádio. Fora dela, “tiro a máscara”, e sou de novo apenas o Darinho. Não me acostumo com o status de celebridade regional da mídia… hahaha!
A noite teria muito mais a nos oferecer. Ainda no Museu de Arte de New Bedford, apreciamos as fantásticas esculturas em madeira de dois artistas locais, Ron Rudnicki e Leah Woods, para depois seguirmos a pé rumo ao Cork, um restaurante de menu espanhol (mas que oferece ótimas caipinhas). Lá se uniu a nós outro amigo de Beatriz, o Owen, que nos narrou o enredo de um impressionante script que ele escreveu para um filme alguns anos atrás. Enquanto o vinho descia, subia nosso entusiasmo pelas ideias e experiências artísticas e literárias de cada um. Don, por exemplo, dava-nos mais detalhes técnicos da filmagem de um curta-metragem que está concluindo nessas próximas duas semanas.
Owen explicava seu estranho, perigoso e ilegal método de aprender o português. Descobre canções brasileiras no YouTube, copia as letras e as imprime em papel, para depois colar a folha no painel do carro. Enquanto dirige na estrada, escuta uma Marisa Monte ou um Gilberto Gil e ao mesmo tempo passa os olhos nas lestras. Assim desenvolve seu vocabulário, ainda sem multa ou acidente. A um certo momento Owen perguntou ao grupo se todos por acaso ouviam um programa de rádio local sensacional, que tocava muito samba e bossa nova. Ele quase caiu de costas quando soube que ali falava com o próprio DJ daquele programa.
Beatriz, por seu turno, dava detalhes da trama de um script que está escrevendo no momento para uma peça de teatro. Ela já me conhece há uns dois anos quase, mas depois ouvir-me contar alguns “causos”, confessou que estava muito interessada em adicionar ao filme um personagem “parecido” comigo, com o meu jeito animado e criativo de falar de música e fotografia, de contar histórias e defender ideias numa mesa de bar.
Nada como conviver com a alegria, a sinergia, e a imaginação aquecidas ao sabor do vinho e da amizade. Rimos -- e rimos muito -- daquilo tudo que se disse sobre nossas vidas e nossas artes, e também das asneiras que me vieram à mente -- por exemplo, o fato de que “tchim-tchim”, como brindamos no Brasil, é o nome para a genitália masculina em japonês. Também gostaram da anedota em que Darinho, aos 22 anos, gastou do seu espanhol ao perguntar a um centro-americano, “Le gusta la pinga?” O hermano teve dúvidas sobre as minhas intenções. Mal sabia eu que “pinga” naquela parte do planeta também é o nome para aquele mesmo famoso órgão masculino.




sexta-feira, 7 de março de 2014

A Arte e os Novos Mundos





A Arte e os Novos Mundos

Dário Borim Jr.

Pude ver e enxergar melhor quando comecei a fazer caminhadas diárias com três focos constantes: a música (com sua poesia) aos ouvidos, a percepção do meu corpo como parte integrante do ambiente físico ao meu redor, e a curiosidade imaginativa para pensar e enquadrar o que via dentro das possibilidades técnicas da minha câmera, companheira inseparável. Assim vamos que vamos, numa atividade que para mim é poético-musical, terapêutica, e artística. A win-win-win situation, como poderíamos glosar uma frase feita em inglês para uma situação três vezes vitoriosa.
Após ler os franceses Jean-Jacques Rousseau e Jacques Derrida, o escritor e crítico Silviano Santiago, no seu livro Carlos Drummond de Andrade (Ed. Vozes 1976), escreve assim: “Poeta da re-presentação [sic], Drummond pouco uso dá ao ouvido que assim ensurdece em inutilidade; poeta da re-presentação [sic], Drummond muito uso dá à vista que, diante do silêncio do signo escrito (ou da imagem), apenas pode tentar escrevê-la de novo e diferentemente em signo, em poema” (99).
Caso existisse um órgão ativo que correspondesse à passividade da visão, continua Santiago, “seria este o das mãos que se exercitam em pintar signos sobre a folha de papel em branco, apagando-os sob a forma de voz, mas deixando que se falem plenos no próprio silêncio da escritura” (100). Mas para Santiago, “a própria noção de atividade e passividade não faz sentido, pois é a mão que escreve-lendo e que lendo-escreve, com a ajuda dos olhos” (100).
À audição, portanto, contrapõe-se a fala. Absorvemos e produzimos sons e seus signos. Com a visão, porém, não temos um sentido a dialogar. Vemos e ao mesmo tempo lembramos e imaginamos as coisas, com os neurônios a trabalhar, o coração a palpitar, mas não projetamos, literalmente de dentro de nosso ser, quaisquer imagens: temos que criá-las, e, pois, executá-las, fora do nosso corpo. Segundo Derrida e Santiago, cabe às mãos (e outras partes do corpo, eu diria) essa função através da voz poética – a meu ver, através da linguagem do fazer poético, dentro e muito além da poesia escrita. Entendo que assim, reagindo ao que vemos, ao que pensamos e ao que sentimos, nós artistas, com as mãos, pés, ou o corpo como um todo, criamos e projetamos imagens como atores, dançarinos, escultores, escritores, fotógrafos e pintores. Compomos imagens e seus signos, sejam eles com nossos movimentos e expressões faciais, com a tinta, a tela e tantos outros tipos de material concreto transformado em material plástico, ou ainda com a palavra escrita à mão ou no teclado.
Naquele processo de composição, o artista é livre da necessidade de representar a realidade como ela é. O Impressionismo, com suas imagens fora de foco, foi um grande passo àquela concepção moderna da arte, curiosamente, uma resposta estética ao impacto da fotografia sobre a história da arte. O gênio espanhol de Málaga, Pablo Ruiz Picasso, por seu turno, solidificou e radicalizou aquela liberdade através de distorções, fragmentações e super-imposições de planos de imagem. Para muitos historiadores, seus trabalhos cubistas comprovam a noção que a arte pode existir enquanto objeto de valor sem que ela revele qualquer tentativa de representar qualquer forma de realidade. Entre outros, destaca-se o valor conceitual da arte que provoca pensamento, reação estética e emoção, sem depender da lógica ou daquilo a que chamamos de mimese, a reprodução do real.
A fotografia, a meu ver, pode provocar os mesmíssimos fenômenos a partir da representação do real sem compromisso com o real, desse modo livre como a própria arte moderna. Segundo o periódico inglês The Guardian, leiloou-se no ano passado em Londres, pelo maior valor da história da fotografia, uma peça tirada pelo artista alemão Andreas Gursky. Entitulada “Rhein II”, com uma imagem minimalista de duas margens do famoso rio europeu, essa fotografia saiu por quase 3 milhões de libras esterlinas, fato que sugere algo a respeito do valor abstrato dessa forma de representação do real muito além do real.
Na semana passada, na Universidade de Massachusetts Dartmouth, falávamos dessas maravilhas entre os mundos do real e do imaginário num seminário sobre Carlos Drummond de Andrade. Foi quando confessei minha (quase?) obsessão pela fotografia. Entendi um pouco melhor a minha paixão ao discutirmos temas afins. Mas quis saber mais, muito mais. Enquanto me ensinam e me inspiram os artistas, teóricos e poetas a criar e a falar do simulacro do simulacro do simulacro que é nossa existência, continuo clicando. A vida é ao mesmo tempo luz e mistério. Antes mesmo de sair do prédio do College of Liberal Arts, minha modesta câmera já funcionava. Mostrando e sugerindo algo poético sobre a condição humana, quem sabe essa foto tirada minutos após o término da aula, ao entardecer, nos faça refletir um pouco mais sobre as relações entre nossos sentidos, nossas mentes, e nossas capacidades de ver, imaginar e (re)fazer novos mundos.


quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Inquietude, Quase Euforia





Inquietude, Quase Euforia

Dário Borim Jr.

O dia de ontem era um dos mais lindos que eu já tinha visto em toda a minha vida, conclui pela manhã mesmo -- apressadinho como sou para certas coisas, como também é meu pai. Logo ao chegar à Universidade de Massachusetts Dartmouth, onde trabalho há quase 14 anos, senti uma forma de inquietude, quase euforia, talvez um tipo de ansiedade pelo avesso. Dizem que um forte e recorrente elemento da ansiedade é o medo. Minha ansiedade vinha de um forte desejo, o de estar livre para fotografar o visual maravilhoso que me vinha acompanhando pela janela do carro, desde o momento em que saí de casa rumo ao câmpus. Nas ruas de Padanaram, esse vilarejo onde moro, as árvores estavam carregadas de neve úmida e pesada -- de características excelentes para construção de bonecos e de bolas que crianças arremeçam umas às outras. Ensaiavam o espetáculo de cores e transformações que a natureza nos traria naquela terça-feira.
Quando passei por uma ponte rotativa e o istmo que se segue a ela, os nervos do meu queixo se relaxaram e as íris dos meus olhos verde-castanhos adquiriram mais cor e viscosidade. As enormes placas de gelo sobre a água do mar cintilavam em tons azuis e dourados. Pensei: como seria bom fotografar aquilo tudo, mas as obrigações me chamavam a 10 km dali.
Quem sabe a parte de medo que existia na minha “inquietude, quase euforia” ou “ansiedade pelo avesso” viesse da consciência de que a neve tão fofa e volumosa (amontoada em grandes massas) poderia derreter rapidamente, pois a temperatura do ar subia ligeiramente sob os raios do sol. Assim que cheguei ao meu escritório, postei a seguinte mensagem no FaceBook: “Em poucas palavras: um dos dias mais lindos de toda a minha vida! Existe neve, existem 20 e tantos tipos de neve, pelo menos, sabem disso os esquimós. Entre ontem e hoje, alguns dos mais belos tipos caíram por aqui. Agora azulinho está o céu lá em cima, e aqui embaixo é uma maravilha total o que se vê sobre galhos, riachos, o mar, tudo, tudo, tudo! Se eu não estivesse agora para dar aulas... ai, ai, ai. Mas logo saio e registro um pouco dessa magia despretensiosa, dos milagres da natureza!” Aquela forma de desabafar e compartilhar minhas emoções recebeu várias respostas de simpatia imediatas (alias, mais de 50 nas últimas 24 horas), e ainda antes de entrar para a sala de aula, encontrei almas afins pelos corredores, gente que expressava a mesma admiração pela formosura do dia.
Minha aula de Português para Principiantes transcorreu em bom clima. Eu sentia que meu entusiasmo pelas paisagens externas me inspiravam lá dentro do prédio. Também ajudava lembrar que em pouco tempo eu poderia sair e fotografar, entre uma aula e outra. Dito e feito. Foram muitos os cliques. Contando com a boa impermeabilização das minhas botas, eu pude ir onde quisesse. Ora fazia a lente telescópica me trazer aos olhos os gigantescos grupos de árvores emolduradas pela neve a 500 metros de distância, ora me aproximava de outras plantas. Encontrava ângulos a destacar tanto as suas ranhuras e musgo bastante felizes com a umidade  quanto aquelas enormes bolas de “algodão” a dobrar os galhos, tudo a reluzir sob o sol e o céu azul.
A um certo momento me deti junto a um córrego que se escoa de um pequeno açude em frente ao Estacionamento Um, o que mais uso no câmpus. O córrego, como estava àquele momento, me trazia mais ardor do que qualquer outro elemento da natureza. De fato, nele se convergiam muitos elementos. A um canto, o azul do céu decorado de pequenas nuvens penetrava nas águas margeadas por enormes massas de neve. Por outro lado, mas ali mesmo, num espaço de três metros quadrados, as águas refletiam folhas marrons emolduradas por flocos de neve. A um outro canto, vários ramos de uma vegetação rasteira ascendendo da grama queimada pelo frio formavam arcos no ar a se unir às parábolas dos mesmos arcos refletidos na água. Ao longo dos poucos minutos em que eu me esforçava para captar a riqueza daquelas cenas, flocos ou massas maiores de neve caíam das ávores vizinhas, agora convidadas a dançar ao tom e à cadência dos ventos.
Quando caíam na água, aqueles pedaços de neve criavam sons delicados, quase como pedras jogadas ao longe, sobre as águas de um rio. Mais importantes para meus olhos e minhas lentes, eles também criavam dezenas de círculos e semicírculos concêntricos a se deslocarem sobre o azul, o branco, o verde e o marrom das águas até desaparecerem… até novos flocos caírem, seguindo a batuta do vento e as danças das folhas sobre as árvores. A menos de 10 metros daquele ponto do córrego, vislumbrei o tom dourado de muitos ramos de mais que dois metros de altura, também a dançar sob a força gentil dos ventos, uma espécie de cerca natural à frente de pinheiros (de um verde a sobreviver ao frio), e às margens do açude congelado (de um branco-liro liso e laminado).
Depois de fotografar tal abundância de cores e recortes, apenas um pouco daquilo tudo tão perto do meu local de trabalho, notei as curvas e as sombras de um morro encoberto de neve. Os raios de sol que ali chegavam se esticavam em diversos ângulos possibilitados pelas curvas da espessa camada de neve. Surgiam então espécies de mechas de luz branca desenhadas sobre o pano de fundo azul, o azul que a neve podia refletir do céu. Cliquei, é claro, pensando num amigo espanhol, o artista Ramon Salgado-Touzon. Era a única forma de despedida, um tanto minimalista, que me pudesse acalentar a alma. Era hora de finalmente amenizar minha inquietude, minha quase euforia, e me trazer de volta à realidade dos cursos que ensino e dos meus outros múltiplos afazeres acadêmicos.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

O Peixe de um Cronista





O Peixe de um Cronista

Dário Borim Jr.

Qual é a diferença entre um cronista e um fofoqueiro? Não sei não. Existe? Talvez se possa dizer que o que vale é o intuito, e como funciona a coisa, e não como é a coisa em si. Por exemplo, a crônica é arte que visa entreter, informar e provocar reflexão ao contar um caso, seja ele alegre ou triste. A fofoca é vício, como birita, cigarro, chocolate, FaceBook, ou telenovela. Na pior das hipóteses, a fofoca é maliciosa -- ou até mesmo cruel. Sai da boca pelo prazer de espalhar notícias sobre acontecimentos e comportamentos que quase sempre comprometem a imagem de uma pessoa conhecida. Quase nunca positivos, esses casos são comumente mentirosos, frutos de um espírito maldoso e mesquinho. Na melhor das hipóteses, a fofoca é apenas leviana. Brota inocente de uma imaginação fértil e desocupada.
Quem sabe vocês já me conhecem de outros carnavais. Afinal de contas, escrevo e publico crônicas há mais de 30 anos. De outro modo, quem sabe, depois de ler os casos que pretendo aqui relatar, talvez vocês concordem comigo: pelo menos enquanto cronista, Dário Borim Jr.  não é fofoqueiro. Talvez o oposto dessa conclusão seja oposto a ela duas vezes: enquanto fofoqueiro, sou cronista. Verdade? Adoro e capricho não apenas ao escrever mas também ao contar, em viva-voz, um caso qualquer. Para aqueles que me conhecem pessoalmente, deixo essa querela para vocês decidirem por si mesmos, baseados nas lembranças de nossas conversas em festas, caminhadas e botequins.
De antemão, confesso: tenho a consciência tranquila e ponho a mão no fogo. Julguem-me, bem ou mal, entre uma crônica ou uma fofoca que ouvirem de mim, hahaha… mas falem de mim! Ah, isso já está estando indo longe demais: chega de teoria e filosofia! Estou (sem querer sonhar com tal honra) já soando como um Machado de Assis de meia-tigela, o que seria uma (des)honra a um dos maiores cronistas (ou fofoqueiros?) do Brasil.
O primeiro “causo” que pretendo relatar (porque em Minas contamos “causos”) é o de um professor, historiador e jornalista -- um grande amigo da Galícia. O segundo caso é o de um casal de amigos de alguns amigos meus. O problema é que o espaço para a crônica no jornal é menor que a paciência de quem espera uma boa fofoca. E eu gastei muito espaço aqui com minhas teorias e filosofias. Meu irmão, o Tatau, não por coincidência, engenheiro, detesta as partes teóricas das minhas crônicas. Acha que é pura encheção de linguiça, falta de assunto… hahaha. Desculpem, mas não sou um José Simão, da Folha de São Paulo. Sou um acadêmico, das humanidade: sem teoria, sou degolado pelo sistema.
Então, pronto: aqui vai o “causo” de hoje. Vim a conhecer Alberto Pena Rodriguez (seu nome de batismo) na Universidade de Massachusetts Dartmouth faz ano e meio.  Seu avô criou quatros filhos trabalhando de pescador, sem contar com mais que uma pequena barca de madeira. Vida penosa! O pai de Alberto, por outro lado, saía pelos mares como pescador e marinheiro por períodos de até um ano e meio. Depois regressava à Galícia, e o pequeno Alberto às vezes nem o reconhecia. O pai passava um ou dois meses com a esposa e dois filhos, antes de voltar novamente ao mar do Norte. Vida dura!
Alberto então começou a trabalhar temporariamente aos 15 anos de idade. Assim foi economizando dinheiro, ao frequentar o segundo grau, para poder estudar Jornalismo em Madri. Nos anos de faculdade, trabalhava durante o verão limpando as praias de seu vilarejo, Moanha, a 20 km de Vigo. Pouco tempo após se bacharelar, foi contratado pela TVE (Televisão Pública Espanhola) como jornalista correspondente na Galícia, com ótimo salário. Naquela parte do mundo e naquela época, início dos anos 90, um rendimento mensal de 3.000 dólares não era nada ruim para um jovem de 24 anos.
Sucesso profissional e dinheiro no bolso não lhe eram suficientes. Queria realizar outros sonhos, e um deles era entrar para o mundo acadêmico e se tornar pesquisador. Depois de três ou quarto anos trabalhando como jornalista, abandonou o emprego que lhe dava boa remuneração e prestígio social (pois aparecia diariamente na TV). Solicitou e recebeu uma bolsa de estudos para fazer doutorado em História do Jornalismo, novamente em Madri. Alberto, pois, trocava o bom salário de jornalista pelos baixos rendimentos de estudante-bolsista, mas com forte determinação ele buscava os seus ideais.
Poucos meses após se tornar doutor, passou em concurso para a Universidade de Vigo, onde logo foi promovido a decano e, em pouco tempo, a diretor da faculdade. Casado com Estela, uma advogada, e pai de Lina, de 9 anos, e Denís, de 2, Alberto deixou-os penosamente na Galícia por um semestre (é muito afetivo o meu amigo), período em que deu um seminário na Pós-Graduação em Estudos Luso-Afro-Brasileiros e Teoria e pesquisou no Arquivo Mendes-Ferreira da UMD. Nesse mesmo período, não apenas fez mais investigações, inclusive nas universidades de Harvard, UC Berkeley e Brown, mas também concluiu um livro sobre toda a história do jornalismo luso-americano.
Antes de regressar a sua família e a seu país, Alberto deu-me o prazer de vir almoçar comigo. Fiz-lhe um haddock fresco, apesar de saber que o homem  conhecia muito bem da arte de se preparar um bom pescado. Contou-me sua história diante de um cozinheiro curioso, que não se cansava de lhe fazer novas perguntas. Alberto disse que gostou do meu peixe, mas quem ganhou o peixe fui eu, um cronista (ou fofoqueiro de boas intenções) muito feliz ao ouvir tal bela história de um homem simples e generoso, uma pessoa inteligente e competente, um conhecedor e realizador de sonhos.



quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Sem o Sam





Sem o Sam

Dário Borim Jr.

Ontem pelas oito e meia da noite fazia muito frio por esta região da Nova Inglaterra: dois graus centígrados negativos, ou seis graus negativos, sob o efeito do vento. Esse talvez não fosse o maior impecilho a minha caminhada. Mais difícil era pensar na saudade que sentia do Sampson, ou, carinhosamente, do Sam, um belíssimo cão da raça golden-retriever, de 40 kg, pêlo dourado brilhante, súper liso e macio, olhos castanhos suaves, doces como mel, rodeados de uma moldura natural bem branca, como fossem óculos de nadadores.
Sam foi meu amigo fiel por dez anos. Ele e eu devemos ter ficado bem conhecidos nesta parte da cidade de South Dartmouth como companheiros inseparáveis de assíduas caminhadas. Em geral saíamos três vezes ao dia, perambulando por aí pelas ruas, fosse dia ou fosse noite, fizesse frio ou fizesse calor. Ele me ajudava a perder peso e eu lhe oferecia a chance de respirar ar livre, de cheirar todo tipo de coisas, vivas ou mortas, no asfalto e nos jardins dos vizinhos, além, é claro, de poder receber muitos mimos das pessoas que encontrávamos por acaso. Eu sempre dizia que Sam era um cachorro viciado em carinhos.
Sam era extremamente gentil e tolerante. Cresceu junto com Zach e Ian, e com eles brincou sem jamais perder a paciência com os ocasionais exageros de meninos ao lidar com seu “brinquedinho” de quatro patas. Zach tinha oito anos e Ian quase onze quando o adotamos em Minnesota. Eram três irmãos que traziam muitos sons, movimentos, amor e alegria à casa. Os amigos que cá vinham nos visitar eram logo alvo de um doce assédio, a incansável busca de Sam por afagos. Dava gosto ver um ser tão parecido a muitos de nós humanos, na nossa necessidade de atenção e chamego.
Antes de atingir a meia-idade canina, Sam também fora pura energia. Corria por todo canto, muitas vezes em alta velocidade. Se por acaso a porta ficasse aberta por alguns segundos, ele logo fugia afundando a pata no acelerador, sem medo. Certa vez isso aconteceu tão radicalmente que ele atravessou a porta feito um cometa em direção à rua. O vizinho que morava em frente, Doug Roscoe, meu colega na Universidade, vinha de carro para casa. Quando viu aquele bicho peludo se movendo como um Airton Senna sob efeito do álcool, parou o carro, mas não pôde evitar que Sam continuasse na sua corrida frenética, e que batesse na porta do seu carro. Felizmente Sam não se machucou, nem a lataria do carro se estragou.
Nossas caminhadas às vezes incluíam tempo para ele namorar um pouco. Aquela a quem eu considerava sua namorada é Piper, uma golden-retriever bem mais jovem e um pouco mais clara e mais leve do que ele -- também um doce de animal, que mora a poucas quadras daqui. Em frente à casa dela, os dois safadinhos corriam, rolavam na grama, e se mordiam levemente, com muito respeito.
Sam era um cão que não reconhecia muitas palavras, mas entendia muito bem suas próprias necessidades e as alheias. Ele entendia, principalmente, os sentimentos das pessoas a quem amava. Quando meu sogro faleceu, não deixou que Ann sofresse sozinha em nenhum momento. Compreendeu sua dor e a acompanhou pela casa noite e dia. Nas raras vezes em que eu adoeci nesses últimos dez anos, ou quando me recuperei de uma pequena cirurgia, Sam jamais me abandonou ao lado da cama. Ele de fato entrava em depressão e não comia nada por vários dias quando um de nós quatro viajava e se ausentava por algum período mais longo. Aliás, à noite ele não se afastava da porta de entrada da casa até que o último de nós quatro voltasse da rua a qualquer hora da noite.
Sam tinha vários meios de se comunicar, naturalmente. Quando recebia um presente, como um pedaço de osso apropriado a seu peso e raça, percorria toda a casa chorando de alegria. Quando ele e eu nos aproximávamos de um quarteirão pelo qual ele não gostava de passar, diminuía a velocidade dos passos até parar, e depois me encarava. Era como dizer: “Por aí, não, meu velho. Tem alguma coisa nesse trajeto que me incomoda”. Infelizmente eu nunca descobri exatamente o que lhe era desagradável, mas sempre atendia ao seu pedido. Na hora em que ele se cansava de uma caminhada, repetia aquele mesmo comportamento. Eu lhe perguntava se estava cansado e queria voltar para casa. Ele imediatamente dava meia-volta, para que retornássemos e ele logo pudesse descansar em paz.
Pouco mais de duas semanas atrás, Sam e eu caminhávamos como de costume. Eu havia notado que nos últimos dias ele parecia cheirar o chão mais amiúde do que antes. Ele devia estar mais dependente do que nunca daquele sentido, o olfato, para se locomover. Eu não sabia que ele estava ficando cego rapidamente. Naquela tarde ele não viu uma caminhonete estacionada a sua frente e bateu com a cabeça no pára-choque. Achei aquilo um pouco estranho. Sam era como eu, muito avoado, distraído, mas não era para tanto.
No dia seguinte, uma quarta-feira (seis de novembro), ele deu outros sinais de que algo estava errado com ele. Na quinta-feira o levei à clínica veterinária. Fizeram alguns exames. A médica disse-me que infelizmente não gostava nada do seu comportamento. Parecia algo muito sério, pois Sam já era outro: tinha uma perna dura, se afastava de todas as pessoas, inclusive de mim, chorava um pouco, e ficava caminhando com dificuldade, em círculo -- às vezes até de marcha ré! Certamente era caso sério para um cirurgião neurologista, provavelmente um tumor cerebral.

A tristeza que foi vê-lo sofrer de dor e desorientação nos dias seguintes não vale a pena descrever aqui. Prefiro relembrar o enorme contentamento que ele nos trouxe por quase dez anos e registrar o prazer que foi poder tê-lo comigo por ainda mais duas noites. Dormimos, meu amigo e eu, lado a lado, em um colchonete posto ao chão. Em alguns momentos, ficamos de rostos quase colados. Apesar das suas intensas aflições físicas, Sam conseguiu adormecer em paz por várias horas, num silêncio e numa paz que jamais esquecerei. Jamais esquecerei, tampouco, a ternura do seu olhar, a maciez do pelo nas suas orelhas, ou o calor da sua pata ao nos cumprimentar como se fosse gente. No sábado, dia nove de novembro, Sam partiu, mas jamais será esquecido por qualquer um a quem tocou fundo no coração. E foram muitos de nós.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

A Descontração da Noite e a Magia das Artes


Café-Teatro Sagarana, em Mariana, MG


A descontração da noite e a magia das artes

Dário Borim Jr.

dborim@umassd.edu

 

Dentro do universo das redes que existem entre artistas e amantes da arte, no sentido mais amplo da palavra, incluindo as artes plásticas, performáticas e literárias, os eventos culturais programados para acontecer regularmente nos jogam sementes de um promissor porvir. Eles nos inspiram, fomentam pontes no tempo e no espaço que transformam as vidas das pessoas, ou pelo menos nos ofecerem entretenimento estético e razão para repensar nossa existência além da rotina, conforto e banalidade do dia-a-dia.

Não moro em Nova York, Paris, Londres ou Rio de Janeiro, mas a 10 minutos de carro da minha casa se encontra o centro histórico de uma cidade que nem é exatamente a cidade em que resido: New Bedford, Massachusetts. E a comunidade artística de New Bedford, que já foi uma das cidades mais ricas do mundo por conta da caça às baleias, no século XIX, conseguiu uma belíssima façanha: a Aha Night, ou Noite do Auê, que se realiza na segunda quinta-feira de cada mês. Os bares e restaurantes oferecem música ao vivo e cardápios especiais, e as galerias de arte (que são muitas) abrem novas exibições. Música, dança, brincadeiras para as crianças, e oficinas de arte e artesanato ocupam as ruas de pedra rodeadas de lanternas coloniais e arquitetura charmosa de um tempo em que o dinheiro abundante fazia muita diferença naquela paisagem urbana.

Na última quinta-feira, na Aha Night deste mês de outubro, encontrava-me com dois amigos que conheci quase que exatamente um ano atrás. Em outra edição da Aha Night, em noite memorável, eu fizera minha estreia como fotógrafo em uma exposição coletiva denominada Postcards from New Bedford. Entre os visitantes, lá estavam Don Burton e Leila Kaas – ele, artista-cineasta americano, ela, professora-jornalista carioca. Apresentaram-se a mim e em pouco tempo nos sentíamos amigos. É que além da empatia e simpatia instantâneas que cada um parecida notar no outro, eles chegavam da Califórnia (onde moraram vários anos) com um recado de um amigo brasileiro que tínhamos em comum em Los Angeles, Sérgio Mielniczenko, o famoso radialista e attaché cultural do Consulado do Brasil naquela Meca do cinema. Uma nova cadeia de afeições e interesses artísticos em comum se criava rapidamente entre nós três.

Um ano mais tarde, Don, Leila e eu desfrutamos de mais uma noite artística pelas ruas de New Bedford. Vimos belíssimas exposições no Museu de New Bedford e ouvimos música clássica de violino e violão tocada por um trio assentado em um sofá cercado de dois abajures, tudo posicionado no meio da rua. Chegou a hora em que apenas Don e eu nos dirigimos a um pub onde uma banda de seis músicos tocava uns velhos blues e alguns rocks de arrepiar. Conversamos por mais de três horas, Don e eu, e não faltou assunto relacionado às artes e às emoções da vida noturna, onde se encontram pessoas criativas e abertas para a troca de histórias e ideias.

Papo vai, papo vem, falamos de literatura, e dali vieram lembranças de outras noites culturais programadas que marcaram a minha vida. O palco dessas memórias foi o Café-Teatro Sagarana, de Mariana, Minas Gerais. Hoje ele é gerenciado por Ana Lana Gastelois, mas, naquela época, nos meus bons tempos de professor da Universidade Federal de Ouro Preto, quem administrava a casa era sua mãe, Magdalena Gastelois, professora de francês, escritora de vários livros infantis, e mestre fundadora da famosa escola-piloto Picapau Amarelo (1969), de Belo Horizonte.

Minha amiga do peito, Magdalena era uma figura inesquecível pelo seu despojamento, sua coragem como inovadora do ensino de línguas estrangeiras através do teatro. Ela se apaixonara por uma esplendorosa casa edificada em uma fazenda da distante cidade de Campina (localizada no sudeste mineiro), e resolveu comprá-la – sim, apenas a casa. Ocupou-se então de transplantá-la em dezenas de viagens de caminhão, telha por telha, tijolo por tijolo, para um lote que havia comprado na cidade de Mariana. Conseguiu. A charmosa casa já foi material de reportagens em revistas de arquitetura. A parte onde funcionava o estábulo da construção original Magdalena transformou em café-teatro, o Sagarana, inaugurado em 1998 com mesas e cadeiras também num belo jardim em frente. Entre outros eventos inesquecíveis, disse eu a Don, Magdalena e outros professores ali realizavam semestralmente o Festival das Línguas, com peças de teatro encenadas pelos alunos da UFOP em francês, grego, inglês, espanhol e italiano.  

Também contei a meu amigo Don – nessa mais recente noite de Aha – que no período em que trabalhei na UFOP, entre 1997 e 2000, havia sempre uma programação cultural intensa programada para cada semana do ano letivo. Na quarta-feira, uma noite de debates, com professores, alunos e representantes da comunidade de Mariana e Ouro Preto. Na quinta, forró com diferentes bandas da região. E, na sexta, dança livre.

Naqueles anos eu vivia uma certa esquizofrenia histórica ao ter um pé assentado no fim do século XX, em Belo Horizonte, onde morava com minha família, e outro pé no fim do século XVIII, naquela cidade barroca, onde as “noites” às vezes duravam quase duas vezes mais tempo que os dias. Sob o luar e a luz das estrelas, rodeado de prédios coloniais, flores e coqueiros, a diversão e a troca de ideias eram intensas. Só mesmo acabavam no meio da madrugada. Eu não queria perder nada daquilo. Por isso ocasionalmente eu ficava até o fim do expediente. As consequências eram radicais para o corpo, mas fenomenais para a mente. Certas vezes deixei o café-teatro pelas três e tanto da madrugada para ir dormir num hotel onde eu residia por três dias a cada semana. Antes das sete horas já tinha que estar de pé de novo. Tomava duas ou três xícaras de café e saía cantando ou assobiando, quase que marchando, de tanta disposição para trabalhar. Ainda, é claro, sob efeito da magia da noite, logo estaria em sala de aula, onde possivelmente ministrava algumas de minhas melhores e mais inspiradoras aulas ao discutir as obras de Blake, Dickinson, Hardy ou Shakespeare.

Não se pode subestimar o prazer estético e o poder espiritual dos eventos culturais do Café-Teatro Sagarana e do Aha Night, na barroca Mariana ou na velha New Bedford, duas cidades históricas da minha própria história de vida, assim como todos os outros eventos programados e incentivados pelas comunidades dentro e fora das universidades. Se duvidarem, perguntem a meus ex-alunos da UFOP, ou visitem New Bedford na segunda quinta-feira de cada mês. Como dizia Hamlet a Horácio, “há mais coisas entre o céu e a terra do que podes sonhar na tua vã filosofia”. Muitas dessas coisas podemos descobrir ao desligar a TV e o computador para ir conviver um pouco mais sob a descontração da noite e a magia das artes.

Mirem-se nas cenas de Atenas

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