sábado, 19 de julho de 2008

Encantado





En-
can-
ta-
do



dborim@umassd.edu
[Cassamento de Carla e Leandro, 21/junho/08]

O título desta crônica resume meu estado de espírito diante do desenrolar das férias que me chegaram ao fim no segundo fim-de-semana de julho. Com Ian, filhote de 15 anos e 1,82 m. de altura, cheguei a Belo Horizonte sem muita impaciência (só um pouquinho) quatro horas antes que Brasil e Argentina jogassem no Mineirão pelas Eliminatórias da Copa do Mundo de Futebol.

É verdade que nossa seleção poderia ter jogado bem melhor e vencido los hermanos del sur. Mas, passada a frustração momentânea, concordo com meu filho: a equipe do Dunga não jogou tão mal, o que fica comprovado pelos clipes dos melhores momentos da partida, já postados para o mundo ver numa popular página da internet, o http://www.youtube.com/. O que importava para nós dois era estarmos lá no estádio, carne e osso, diante da seleção brasileira em jogo tão importante. Foi mesmo uma noite inesquecível para pai e filho que moram no exterior, dois fanáticos por futebol, esporte este que nos aproxima e nos faz cúmplices das mesmas emoções.

A alegria de rever parentes e amigos também veio de imediato e, em poucos dias, muitos de nós presenciaríamos o belo e chiquérrimo casamento de uma sobrinha/prima. A cerimônia religiosa, na Basílica de Lourdes, incluiu um vasto e bem escolhido repertório musical, com direito a um show à parte de um renomado barítono, um afiado trompete de fazer vibrar a alma, e um comovente coral de música sacra que escapuliu do tradicional numa breve visita à sensibilidade popular de Erasmo e Roberto Carlos. A festa no Buffet Catharina embalou centenas de convidados em gastronomia de fino trato, ao som de uma banda a tocar valsas, boleros, sambas, e vários ritmos pop dos anos 60-90 por seis horas consecutivas. Esta mesma banda acompanhou o noivo (habilidoso ao piano e na guitarra), sua noiva híper-entusiasmada, e outros membros do clã. Ao delírio de novos fãs, a família unida subiu ao palco para protagonizar uma longa cantoria de velhos clássicos dos Beatles.

Nos dias seguintes minha festa particular continuou. Foram inúmeras as garrafas de vinho e cerveja com parentes e outros seres queridos cujas amizades já duram mais de 30 anos. Foram múltiplos os eventos especiais que, pela ocasião da minha presença, reuniriam dezenas de pessoas a quem estimo e admiro até o ponto de viver sonhando com nosso próximo encontro, amigos esses que tornaram a viagem ao Brasil um encanto geral. Para ser sincero, devo dizer que a realização de um desses eventos não teve a nada a ver com minha presença. A sorte simplesmente esteve ao meu lado. Por isso pude participar de uma divertidíssima reunião de amigos, turma que festejou muito enquanto freqüentava o segundo grau na primeira quinzena da década de 1970.

Mas para não dizer que só falei de gente chegada, resta-me compartilhar a alegria que tive ao vencer o preconceito e ir viver uma experiência inusitada: dançar samba no Parque Municipal de Belo Horizonte. Como é que é?, vocês que conhecem o local estarão se perguntando. É isso mesmo: deixei o descabido medo de roubos e assaltos de lado e, imaginem, para lá me dirigi, sozinho, em plena noite de domingo. E não me arrependi. Muito pelo contrário. Senti orgulho de não ter sucumbido aos meus próprios temores, agradecendo aos céus pela extraordinária oportunidade que tinha esse expatriado dançando ao som de quatro bandas de samba, ali rodeado de jovens e não-tão jovens que curtiam o ritmo maior do Brasil e o glorioso grand-finale de mais um Festival Internacional de Teatro de Belo Horizonte.

Nessa vida, mais encantados nos sentimos quando uma luz, aparentemente insossa, nos acorda do sono da complacência. É quando uma graça cai dos céus e não nos escondemos dela como se essa fosse relâmpago sob chuva de verão.

Carta de Clarice


Dário Borim Jr.



Em 1995 o jornal O Estado de São Paulo publicava a seguinte carta escrita em Berna, Suíça, a 2 de janeiro de 1947. Suspeita-se que tenha sido redigida pela grande romancista Clarice Lispector.

Querida,
Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Nem sei como lhe explicar minha alma. Mas o que eu queria dizer é que a gente é muito preciosa, e que é somente até um certo ponto que a gente pode desistir de si própria e se dar aos outros e às circunstâncias. Depois que uma pessoa perde o respeito a si mesma e o respeito às suas próprias necessidades - depois disso fica-se um pouco um trapo.

Eu queria tanto, tanto estar junto de você e conversar e contar experiências minhas e dos outros. Você veria que há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo. Eu mesma não queria contar a você como estou agora, porque achei inútil. Pretendia apenas lhe contar o meu novo caráter, um mês antes de irmos para o Brasil, para você estar prevenida. Mas espero de tal forma que no navio ou avião que nos leva de volta eu me transforme instantaneamente na antiga que eu era, que talvez nem fosse necessário contar. Querida, quase quatro anos me transformaram muito. Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma num boi? Assim fiquei eu... em que pese a dura comparação... Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões - cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também minha força. Espero que você nunca me veja assim resignada, porque é quase repugnante. Espero que no navio que me leve de volta, só a idéia de ver você e de retomar um pouco minha vida - que não era maravilhosa mas era uma vida - eu me transforme inteiramente.

Uma amiga, um dia, encheu-se de coragem, como ela disse e me perguntou: "Você era muito diferente, não era?". Ela disse que me achava ardente e vibrante, e que quando me encontrou agora se disse: ou esta calma excessiva é uma atitude ou então ela mudou tanto que parece quase irreconhecível. Uma outra pessoa disse que eu me movo com lassidão de mulher de cinqüenta anos. Tudo isso você não vai ver nem sentir, queira Deus. Não haveria necessidade de lhe dizer, então. Mas não pude deixar de querer lhe mostrar o que pode acontecer com uma pessoa que fez pacto com todos, e que se esqueceu de que o nó vital de uma pessoa deve ser respeitado. Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que você imagina que é ruim em você - pelo amor de Deus, não queira fazer de você mesma uma pessoa perfeita - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse o único meio de viver.

Juro por Deus que se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia - será punida e irá para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não será punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo aquilo que sua vida exige. Parece uma vida amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma. Espero em Deus que você acredite em mim. Gostaria mesmo que você me visse e assistisse minha vida sem eu saber. Isso seria uma lição para mim. Ver o que pode suceder quando se pactua com a comodidade de alma.

On Tom Jobim


By Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu

This year we celebrate 50 years of bossa nova, and there is, indeed, much to rejoice, because whether one likes or dislikes this type of music, no one can deny its historically decisive role in the development of Brazilian music (especially the genre known as MPB) and its major influence upon jazz and world music at large. When we think of bossa nova, we must necessarily remember Antonio Carlos (Tom) Jobim, who died almost 14 years ago in a New York City hospital. It is high time we learned more about a priceless poetic legacy to the music and music-lovers of the world. Poet and novelist Helena Jobim's book entitled Antônio Carlos Jobim: um homem iluminado makes his personal, intellectual, and professional history come alive in a compelling story for all readers. It is, likewise, an illuminating document for researchers in the fields of music, literature, art, philosophy, and popular culture.

As if it were not for the vast, intimate, and revealing set of photographs, the engaging elegance and unique structure of the prose, the resourceful catalog of recording data, or even the enlightening description of creative processes and partnerships of a true twentieth-century's genius, one single piece of writing added to Helena Jobim's endearing biography of her brother makes it all worth it. In 1970 Tom is interviewed by one of Brazil's perhaps most intelligent and controversial journalists of all times, Carlos Lacerda (151-163).

Some of Tom's greatest anguish (but not resentment) resulted from his own image in the Brazilian press: too often distorted and misunderstood. The harshest attacks on him arguably came from prejudiced critics who, rather unfairly and unwisely, regarded his music as imitation of foreign sounds. He once declared to his family: "Lacerda's article is the only serious piece that describes who I am" (151). Of course Helena Jobim's moving and enchanting book serves to fill in some of that void. Quoting Pablo Picasso (and Tom Jobim loved quoting artists and poets, such as Carlos Drummond, Fernando Pessoa and Guimarães Rosa), the carioca maestro once explained that out of that anguish, his own "cube of darkness," he was "born again" on a daily basis (163).

Jobim's exceptional talent as a songwriter follows a tradition in Brazilian music since Chiquinha Gonzaga 150 years ago: sometimes to bridge over and sometimes to do away with the illusive divide between erudite and popular culture, including music and poetry. Toward that goal (just naturally and smoothly being driven to it, rather than pursuing it) he was certainly lucky and clever enough to chose and to be chosen to work with giants of either end, such as Radamés Gnatalli and Dolores Duran, or other outstanding bards, like Chico Buarque de Hollanda and Vinicius de Moraes, whose art has also spanned all over that open field of borderless creation.

The author of "Waters of March" actually read, questioned, and recreated the world he lived in not only through mesmerizing melody, but also through down-to-earth poetry. Helena Jobim does justice to her brother's poetic voice in many dazzling instances. It all starts on a high note of low spirits by a singular composer whose ecological concerns made him a bit gloomier every day. It is indeed too sad that he had to leave us prematurely, at the peak of his career but before writing another 500 tunes of inexplicable grace. Tom could have added one more stanza to his own verses, the one that stands as an epigraph in Um homem iluminado: "Every time a tree is cut down here on Earth, I believe it will grow again somewhere else, in another world. So, when I die, it is to this place that I want to go, where forests live in peace."

sábado, 7 de junho de 2008

Sambas dos animais


Sambas dos Animais

Dário Borim Jr.
[Sampson, um golden retriever nascido em Minnesota em setembro, 2003]

“O homem antigamente falava / Com a cobra, o jabuti e o leão”. Assim tem início umas das canções mais interessantes de um compositor-filósofo: o inigualável ícone da contracultura brasileira, Jorge Mautner (um carioca filho de judeu austríaco). O assunto é sério em “O mundo dos animais”, faixa interpretada pela jovem cantora brasiliense Adriana Maciel e incluído numa bela coletânea de música infantil brasileira (que agrada a adultos também). O disco foi lançado pelo selo norte-americano Putumayo em setembro de 2007 com o título Brazilian Playground.

O tratamento do tema é leve, em ritmo de samba mais lento que o tradicional, quase o de um samba-canção, apesar de revelar um inequívoco desencanto com os rumos tomados pelos seres humanos. Por um lado vem a brincadeira que nos alerta: “Olha o macaco na selva / Não á macaco, baby / É o meu irmão”. As transformações por nós realizadas deram fim àquele tempo de paz em que a gente “falava com os animais”. Infelizmente, a era de comunicação e integração entre as pessoas e os bichos não volta mais: “Pois o homem rei do planeta / Logo fez uma careta / E começou a sua civilização”.

Não consigo pensar no assunto dessa canção sem relacioná-lo a um conto da grande escritora brasileira Clarice Lispector (também de origem judaica). Em “O búfalo”, que integra o volume Laços de família, publicado em 1960 (e reeditado pela Rocco em 1998), a narrativa nos leva a um zoológico. Seguimos os passos, os olhares e as emoções de uma mulher que de tão frustrada no amor quer exprimir (e talvez expelir) todo o seu ódio num encontro com qualquer animal selvagem que se apresente diante dela com os mesmos sentimentos hostis. Incapaz de conversar com eles, condição esta imposta por nós mesmos, segundo Jorge Mautner, a mulher na verdade se surpreende com a paz, dignidade, harmonia, e até carinho, entre os bichos.

Naquela ocasião, por exemplo, um leão lambia a testa da leoa. Depois ele passeou “enjubado e tranqüilo, e a leoa lentamente reconstituiu sobre as patas estendidas a cabeça de uma esfinge” (126). A mulher vestindo um casaco marrom (sem nome, no conto) revoltou-se diante do amor entre os dois animais, do seu romance em plena primavera. Mais tarde ela vai adquirir uma imensa vontade de matar “aqueles macacos em levitação pela jaula, macacos felizes como ervas, macacos se entrepulando suaves, a macaca com o olhar resignado de amor, e a outra macaca dando de mamar” (127).

Um charmoso, inocente e brincalhão quati (animal que eu vim a conhecer solto e contente diante das Cataratas do Iguaçu) também desconserta aquele ser humano solitário e sem paz interior. “De dentro da jaula o quati olhou-a. Ela o olhou. Nenhuma palavra trocada” (130). O animal, porém, parecia fazer-lhe uma pergunta, o que a perturbava. “A testa estava tão encostada às grades que por um instante lhe pareceu que ela estava enjaulada e que um quati livre a examinava” (130). De tanto provocá-lo, a mulher finalmente consegue vislumbrar ódio em um animal do zoológico, um búfalo, mas prefiro deixar aqui, em suspense, o desfecho da trama.

Por ter sido extremamente influenciada pelos filósofos existencialistas, Lispector se ocupou de analisar, na sua obra, as fascinantes diferenças e semelhanças entre os humanos e os animais, preocupação esta que aparece em outros contos de Laços de família. Naturalmente o tema é complexo e não há espaço nesta crônica para maiores digressões. Vale dizer que para Lispector muitos humanos agem como se os animais não tivessem, também, muitos de nossos sentimentos, como a tristeza, o medo, a saudade, o ódio, a alegria, a ternura e o amor. Algumas das cruciais diferenças, entretanto, são que, por um lado, eles não sofrem com o conflito de emoções em torno de uma mesma situação de vida; por outro lado, não sonham com auto-superação e acumulação de posses através das guerras ou das glórias da ciência com que se transforma o ambiente onde somos criados.

Já que os tempos de conversa aberta entre humanos e animais já se exauriu, como sugere Jorge Mautner, ou que nunca existiu, com a necessária transparência, até mesmo entre os humanos, como implica Lispector, é hora de amarmos mais uns aos outros, humanos, e também os animais. Sem mesmo contarmos com as benesses de uma linguagem humana precisa, sem erros e rodeios, talvez seja hora de tentar aprender algo: como deixar de lado a soberba e a auto-promoção em detrimento do bem alheio, e abraçar os sambas dos animais, brincando e harmonizando-nos como muitas crianças da nossa espécie ainda conseguem.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Solidão em suburbano


Dário Borim Jr.

dborim@umassd.edu

O expresso das 4:45 partiu da estação cinco minutos atrasado naquela tarde — um tropeço na vida agitada de qualquer nova-iorquino. Uma vez dentro de um vagão para não-fumantes, lotado como de costume na hora do pico, encontrei por sorte uma vaga num daqueles desconfortáveis bancos plásticos de trens suburbanos.

Após mais um árduo dia de trabalho, eu sentia todo o meu corpo doer. Pior que braços e pernas, entretanto, algo me afligia por dentro. Meses de solidão e anonimato numa megalópole haviam assegurado à tristeza o direito de me dominar e me pôr em desordem as emoções.

Disfarcei o olhar por todas as direções em busca de fisionomias, senão amigas, pelo menos cordiais. Para o meu desalento, os semblantes dos passageiros espelhavam o mesmo vazio que sentia eu em mim mesmo. Eles também pareciam precisar de contato humano, mas não se dispunham a dar um passo sequer para consegui-lo. Longe disso, os passageiros achavam sempre um refúgio para os seus sentimentos: ler, ler e ler, até que chegassem finalmente a suas estações de destino.

Ávido por iniciar uma conversa, eu percebi no banco de trás uma senhora de meia idade. Tive esperança. Imaginei que fosse simpática e que até gostasse de uma prosa leve, jovial. Para minha decepção, a madame permaneceu estática: nem por uma vez a vi desencalhar os olhos de seu The Wall-Street Journal durante os seus sólidos trinta minutos de viagem.

Acredito que muitos visitantes à área metropolitana de Nova Iorque concordariam comigo: está para nascer na terra gente mais ocupada, individualista e insensibilizada que os habitantes da maior cidade do Ocidente. De Greenwich, Connecticut, trago na memória um dos meus argumentos. Ali na mesma estação de trem, no mesmo horário, todo santo dia, as pessoas estão "se encontrando". O curioso é que elas nem se olham. Ocorre uma pitoresca cena diária: enquanto esperam a condução para o trabalho ou a escola, dezenas de pessoas suspendem os jornais e revistas até bem perto dos olhos. Seriam míopes? Aposto que não. Apesar de se verem todos os dias, os passageiros da estação de Greenwich não se conhecem, ou, quem sabe, orgulhosamente disfarçam que não.

A viagem rumo à bela estação central em Manhattan continua, mas chega o momento em que decido vaguear por outros carros do comboio. Acabo encontrando o carro-bar, onde seis homens bebem algo naquela tarde de verão. Alguns deles olham para o chão e, outros, para a paisagem monótona e inútil de prédios sujos, uma das vistas que admiravam pelas janelas do carro que deveria ser o mais descontraído e interessante de todos. Fui, urgentemente, comprar uma cerveja. De fato, ainda tinha fé que alguma conversa saísse por ali. Mais uma garrafinha de Miller, uma terceira, e nem mesmo uma palavra disseram. Nem eu. Um pouco mais deprimido, deixei o vagão.

Era com o objetivo de dar alívio à minha alma ferida que eu me dirigia à ilha de Manhattan, o coração do lazer daquela fascinante cidade norte-americana, para turistas. Em certos bares do Greenwich Village, eu encontraria a paz de espírito com que sonhava sufocar minha nostalgia e autocomiseração. Mas até que chegasse à estação central, sofri os dissabores da mais plena solidão e impotência diante da frieza humana. Um convívio passageiro e fortuito era só o que eu queria; porém, era muito a pedir dos outros viajantes e de mim mesmo. Só me restava uma alternativa. Como qualquer outro indivíduo a bordo, também me tornei um leitor sem mais me importar com o ambiente. Carregava eu também uma alma ausente e seca, fingindo ter a única alma viva naquele trem.
Posted by Picasa

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Rumo ao Caribe

Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu

Dizem que tudo o que se torna rotina um dia acaba perdendo o fascínio. Deve ser por isso que enquanto eu sonho acordado, os passageiros ao meu lado dormem profundamente neste vôo Rio-Miami. A viagem é longa, e há muito tempo para pensar. Como o meu destino final é o Caribe (San Juan del Puerto Rico, mais precisamente), paisagens de praias e ilhas, com seus sons de salsa, calipso, reggae e merengue logo me convidam a refletir sobre o que possivelmente me espera nos próximos trinta dias que passarei de férias por ali.

Misturando-se a formas e sensações que observo à janela ou que construo eu mesmo na base da imaginação, vêm-me à mente algumas reminiscências de quando eu estava prestes a sobrevoar as águas do Caribe pela primeira vez. Deixava o centro de Bogotá, de táxi, rumo ao aeroporto internacional sem conseguir esconder muito bem o medo que tinha daquela cidade tão violenta. Logo pude ver estampada em vários postes de luz a figura de um brasileiro que também me inspirava medo, com a sua mania de cavalos e chicotes: o presidente e ditador João Baptista Figueiredo. Ele estaria visitando o país em breve. Eu tinha mais um pequeno motivo para apressar minha saída.

A certo momento o motorista me perguntou qual era o meu destino. Numa língua mista, o tal de "portunhol" que eu vinha aprimorando ao passar anteriormente pela Bolívia, Peru e Equador, eu lhe disse: "Me voy al Panamá, talvez a Costa Rica, o mismo Guatemala. Pero mi destino final son los Estados Unidos". O homem achou estranho eu me dirigir ao aeroporto sem saber para qual país estaria viajando. Expliquei-lhe que por causa das leis do Panamá e de outros países da América Central não se vendia passagem só de ida ao passageiro que partisse da Colômbia. Eu ingenuamente tinha muita esperança de encontrar alguma solução para aquele impasse burocrático no aeroporto, pois queria conhecer um pouco daquela região estreita e rodeada de mares. Mas se a dificuldade fosse muito grande, pegaria o próximo vôo para os Estados Unidos. Infelizmente, assim o fiz.

Hora e meia após chegar ao aeroporto de Bogotá já estava abordo de um velho DC-8 da extinta companhia norte-americana Branniff. Apesar de frustrado por não poder ver a América Central com os pés no chão, agora me entusiasmava com as informações transmitidas aos passageiros. O comandante anunciou "Jamaica à vista", e logo se pôs a relatar dados sobre a bela ex-colônia inglesa. Qual foi a minha surpresa quando passamos a sobrevoar uma massa de terra muito maior e nenhuma voz a mencionou pelos alto-falantes.

"Aquilo é Cuba, meu caro", disse um passageiro à minha esquerda. "Não sabe que aviões americanos não devem nem mencionar a ilha de Fidel em seus serviços de bordo?" Mas o céu estava limpo e quem quis pôde ver as belas ilhas de Cuba, sem problema. E não há Guerra-Fria que lhes negue o charme e as cores.

Sete anos depois daquelas primeiras impressões dos arquipélagos caribenhos lá estava eu de novo sobrevoando os mesmos mares. E antes que houvesse muito tempo para me aprofundar nos mistérios e imbecilidades da política internacional, pousávamos em Miami. Menos de quatro horas mais tarde, já em outra aeronave, me aproximava das ilhas de Porto Rico, terra de saboroso rum e de um sapinho do tamanho de uma unha, que canta a noite inteira como se fosse gente grande em serenatas sem fim.

O sabor da piña-colada e a força do balanço caribenho se tornavam mais vivos em mim, diante da iminência do pouso em San Juan. Acima de tudo, o prazer advinha da enorme expectativa de re-encontrar alguém muito especial que ali morava. Agora ainda posso ver aqui de cima, um pouco antes de encarar a pista que nos levará ao terminal de passageiros, um restinho desse maravilhoso mar azul-esverdeado, tão cristalino como os seus olhos, Ann. Então Tom Jobim e Vinícius de Moraes me dão uma colher. Nesses divinos instantes posso apostar que “há menos peixinhos a nadar no mar, do que os beijinhos que eu darei na sua boca”.
Posted by Picasa

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Em Nova Orleãs, É uma BRASA, Mora?


Em Nova Orleãs, É uma BRASA, Mora?

Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu

Há grandes vantagens na carreira de professor universitário. Uma delas é participar de congressos em diversas partes do país e do estrangeiro. Boa parte de nossas despesas (senão quase todas elas) é paga pela instituição em que trabalhamos. Isto quer dizer que temos direito a certo tipo de “turismo intelectual” quase gratuito.

Os leitores desta crônica que viajam a negócios poderão dizer, “nós também”. Eu diria, pelo que sei, “não é bem assim”. Enquanto outros profissionais viajam sob pressão para “produzir resultados” e seguem uma agenda apertadíssima de cursos e negociações, nós, acadêmicos, vamos de encontro a ambientes descontraídos, habitados por pessoas contentes por estarem distantes das suas rotinas. Desta forma reveem velhos colegas de profissão e fazem novas amizades. E sempre há um tempinho para socialização (sessões de vinho e queijo, por exemplo, ou algo muito melhor).

Infelizmente nem todos os professores universitários, mesmo que tenham obtido seus PhDs da vida, têm esse tipo de privilégio. Milhares deles lutam para sobreviver lecionando em três ou quatro escolas que não lhes pagam o suficiente e nem lhes dão apoio para desenvolvimento profissional. Depois de tantos anos de estudo e tanto dinheiro gasto na educação, é lamentável submeter-se a tal penúria.

Bem, aonde quero chegar não é nenhum mar de lamúrias. Muito pelo contrário: quero compartilhar o deleite que foi minha recente viagem ao nono congresso internacional da BRASA (Associação de Estudos Brasileiros), entidade que agrega centenas de estudiosos de diversas disciplinas (da arquitetura ao cinema, da literatura à ciência política), todos voltados para o Brasil. Desta vez o encontro bi-anual se realizou em Nova Orleãs, cidade que ressuscitou das águas e dos escombros causados pelo furacão Katrina em mais um nefasto mês de agosto, o de 2005.

Devo dizer que o congresso foi mesmo uma verdadeira extravagância cultural. Em certos momentos 27 sessões com quatro ou cinco apresentadores aconteciam ao mesmo tempo. No total, eram centenas de pesquisadores reunidos. E como se debates acadêmicos não fossem o suficiente, ainda transcorriam sessões simultâneas com alguns dos melhores e mais recentes lançamentos do cinema brasileiro. E mais: no espaço de dois dias e três noites teríamos concertos de chorinho e jazz, além de rodas de samba e de capoeira.

Enquanto todas essas atividades acadêmico-culturais transcorriam nas salas e salões do belo campus da Universidade de Tulane, havia toda uma maravilhosa cidade a ser explorada.
Portanto, com maior ou menor disposição, quase todos (senão todos) os participantes do congresso escapariam pelo menos uma vez dos ares fechados da universidade. Era para dar uma olhada no French Quartier, o bairro francês tão apreciado pela música, principalmente jazz, blues, rock e cajun, e pela distinta arquitetura, com maravilhosos sobrados de estruturas metálicas entalhadas e varandas que nos convidam à paz e à descontração. Isso, é claro, sem falar no que denominei de “folclore da sacanagem”, a atitude carnavalesca de liberação sexual radical que dura o ano inteiro, sob o qual co-existem coloridos e alegres semi-prostíbulos e bares gays por todos os cantos.

Bom, e se isso tudo não fosse o bastante, há ainda centenas de outras opções em diferentes bairros ao redor do French Quartier. Em muitos destes, dizem, oferecem-se as verdadeiras jóias da cozinha e dos ritmos locais. Para um desses recantos me dirigi com três colegas da BRASA (Richard Gordon, Robert Moser, e Cristiano da Silva), na noite de sexta-feira, dia 28 de março, depois de muito bla-bla-blá intelectual. Apresentavam-se gigantes do jazz em uma casa bastante humilde e discreta, mas muito tradicional, o Donna’s. O clarinetista Evan Christopher e o pianista Tom McDermott já nos haviam dado arrepios de prazer estético quando, de repente, para um coração brasileiro, eles arrebentaram a boca do balão: tocaram delícias de um Pixinguinha, de um Abel Ferreira, e de um Ernesto Nazareth.

Era uma BRASA, mora, testemunhar o fantástico encontro do jazz e do blues de Nova Orleãs com o chorinho e o maxixe do Rio de Janeiro. Tudo se mesclava ali mesmo, onde as águas assassinas já tinham rolado como se fossem prenúncio do fim do mundo. Elas nem por isso teriam afogado o espírito harmonioso e viajante da arte, que não perdeu o barco de ida e de vinda, por mares distantes e rumo a tradições musicais nem tão dessemelhantes.

Mirem-se nas cenas de Atenas

                                                       A colina da Acrópole desde o Hostel Safestay (2025) Ei, senhor Chico Buarque de Holan...