sábado, 7 de junho de 2008

Sambas dos animais


Sambas dos Animais

Dário Borim Jr.
[Sampson, um golden retriever nascido em Minnesota em setembro, 2003]

“O homem antigamente falava / Com a cobra, o jabuti e o leão”. Assim tem início umas das canções mais interessantes de um compositor-filósofo: o inigualável ícone da contracultura brasileira, Jorge Mautner (um carioca filho de judeu austríaco). O assunto é sério em “O mundo dos animais”, faixa interpretada pela jovem cantora brasiliense Adriana Maciel e incluído numa bela coletânea de música infantil brasileira (que agrada a adultos também). O disco foi lançado pelo selo norte-americano Putumayo em setembro de 2007 com o título Brazilian Playground.

O tratamento do tema é leve, em ritmo de samba mais lento que o tradicional, quase o de um samba-canção, apesar de revelar um inequívoco desencanto com os rumos tomados pelos seres humanos. Por um lado vem a brincadeira que nos alerta: “Olha o macaco na selva / Não á macaco, baby / É o meu irmão”. As transformações por nós realizadas deram fim àquele tempo de paz em que a gente “falava com os animais”. Infelizmente, a era de comunicação e integração entre as pessoas e os bichos não volta mais: “Pois o homem rei do planeta / Logo fez uma careta / E começou a sua civilização”.

Não consigo pensar no assunto dessa canção sem relacioná-lo a um conto da grande escritora brasileira Clarice Lispector (também de origem judaica). Em “O búfalo”, que integra o volume Laços de família, publicado em 1960 (e reeditado pela Rocco em 1998), a narrativa nos leva a um zoológico. Seguimos os passos, os olhares e as emoções de uma mulher que de tão frustrada no amor quer exprimir (e talvez expelir) todo o seu ódio num encontro com qualquer animal selvagem que se apresente diante dela com os mesmos sentimentos hostis. Incapaz de conversar com eles, condição esta imposta por nós mesmos, segundo Jorge Mautner, a mulher na verdade se surpreende com a paz, dignidade, harmonia, e até carinho, entre os bichos.

Naquela ocasião, por exemplo, um leão lambia a testa da leoa. Depois ele passeou “enjubado e tranqüilo, e a leoa lentamente reconstituiu sobre as patas estendidas a cabeça de uma esfinge” (126). A mulher vestindo um casaco marrom (sem nome, no conto) revoltou-se diante do amor entre os dois animais, do seu romance em plena primavera. Mais tarde ela vai adquirir uma imensa vontade de matar “aqueles macacos em levitação pela jaula, macacos felizes como ervas, macacos se entrepulando suaves, a macaca com o olhar resignado de amor, e a outra macaca dando de mamar” (127).

Um charmoso, inocente e brincalhão quati (animal que eu vim a conhecer solto e contente diante das Cataratas do Iguaçu) também desconserta aquele ser humano solitário e sem paz interior. “De dentro da jaula o quati olhou-a. Ela o olhou. Nenhuma palavra trocada” (130). O animal, porém, parecia fazer-lhe uma pergunta, o que a perturbava. “A testa estava tão encostada às grades que por um instante lhe pareceu que ela estava enjaulada e que um quati livre a examinava” (130). De tanto provocá-lo, a mulher finalmente consegue vislumbrar ódio em um animal do zoológico, um búfalo, mas prefiro deixar aqui, em suspense, o desfecho da trama.

Por ter sido extremamente influenciada pelos filósofos existencialistas, Lispector se ocupou de analisar, na sua obra, as fascinantes diferenças e semelhanças entre os humanos e os animais, preocupação esta que aparece em outros contos de Laços de família. Naturalmente o tema é complexo e não há espaço nesta crônica para maiores digressões. Vale dizer que para Lispector muitos humanos agem como se os animais não tivessem, também, muitos de nossos sentimentos, como a tristeza, o medo, a saudade, o ódio, a alegria, a ternura e o amor. Algumas das cruciais diferenças, entretanto, são que, por um lado, eles não sofrem com o conflito de emoções em torno de uma mesma situação de vida; por outro lado, não sonham com auto-superação e acumulação de posses através das guerras ou das glórias da ciência com que se transforma o ambiente onde somos criados.

Já que os tempos de conversa aberta entre humanos e animais já se exauriu, como sugere Jorge Mautner, ou que nunca existiu, com a necessária transparência, até mesmo entre os humanos, como implica Lispector, é hora de amarmos mais uns aos outros, humanos, e também os animais. Sem mesmo contarmos com as benesses de uma linguagem humana precisa, sem erros e rodeios, talvez seja hora de tentar aprender algo: como deixar de lado a soberba e a auto-promoção em detrimento do bem alheio, e abraçar os sambas dos animais, brincando e harmonizando-nos como muitas crianças da nossa espécie ainda conseguem.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Solidão em suburbano


Dário Borim Jr.

dborim@umassd.edu

O expresso das 4:45 partiu da estação cinco minutos atrasado naquela tarde — um tropeço na vida agitada de qualquer nova-iorquino. Uma vez dentro de um vagão para não-fumantes, lotado como de costume na hora do pico, encontrei por sorte uma vaga num daqueles desconfortáveis bancos plásticos de trens suburbanos.

Após mais um árduo dia de trabalho, eu sentia todo o meu corpo doer. Pior que braços e pernas, entretanto, algo me afligia por dentro. Meses de solidão e anonimato numa megalópole haviam assegurado à tristeza o direito de me dominar e me pôr em desordem as emoções.

Disfarcei o olhar por todas as direções em busca de fisionomias, senão amigas, pelo menos cordiais. Para o meu desalento, os semblantes dos passageiros espelhavam o mesmo vazio que sentia eu em mim mesmo. Eles também pareciam precisar de contato humano, mas não se dispunham a dar um passo sequer para consegui-lo. Longe disso, os passageiros achavam sempre um refúgio para os seus sentimentos: ler, ler e ler, até que chegassem finalmente a suas estações de destino.

Ávido por iniciar uma conversa, eu percebi no banco de trás uma senhora de meia idade. Tive esperança. Imaginei que fosse simpática e que até gostasse de uma prosa leve, jovial. Para minha decepção, a madame permaneceu estática: nem por uma vez a vi desencalhar os olhos de seu The Wall-Street Journal durante os seus sólidos trinta minutos de viagem.

Acredito que muitos visitantes à área metropolitana de Nova Iorque concordariam comigo: está para nascer na terra gente mais ocupada, individualista e insensibilizada que os habitantes da maior cidade do Ocidente. De Greenwich, Connecticut, trago na memória um dos meus argumentos. Ali na mesma estação de trem, no mesmo horário, todo santo dia, as pessoas estão "se encontrando". O curioso é que elas nem se olham. Ocorre uma pitoresca cena diária: enquanto esperam a condução para o trabalho ou a escola, dezenas de pessoas suspendem os jornais e revistas até bem perto dos olhos. Seriam míopes? Aposto que não. Apesar de se verem todos os dias, os passageiros da estação de Greenwich não se conhecem, ou, quem sabe, orgulhosamente disfarçam que não.

A viagem rumo à bela estação central em Manhattan continua, mas chega o momento em que decido vaguear por outros carros do comboio. Acabo encontrando o carro-bar, onde seis homens bebem algo naquela tarde de verão. Alguns deles olham para o chão e, outros, para a paisagem monótona e inútil de prédios sujos, uma das vistas que admiravam pelas janelas do carro que deveria ser o mais descontraído e interessante de todos. Fui, urgentemente, comprar uma cerveja. De fato, ainda tinha fé que alguma conversa saísse por ali. Mais uma garrafinha de Miller, uma terceira, e nem mesmo uma palavra disseram. Nem eu. Um pouco mais deprimido, deixei o vagão.

Era com o objetivo de dar alívio à minha alma ferida que eu me dirigia à ilha de Manhattan, o coração do lazer daquela fascinante cidade norte-americana, para turistas. Em certos bares do Greenwich Village, eu encontraria a paz de espírito com que sonhava sufocar minha nostalgia e autocomiseração. Mas até que chegasse à estação central, sofri os dissabores da mais plena solidão e impotência diante da frieza humana. Um convívio passageiro e fortuito era só o que eu queria; porém, era muito a pedir dos outros viajantes e de mim mesmo. Só me restava uma alternativa. Como qualquer outro indivíduo a bordo, também me tornei um leitor sem mais me importar com o ambiente. Carregava eu também uma alma ausente e seca, fingindo ter a única alma viva naquele trem.
Posted by Picasa

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Rumo ao Caribe

Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu

Dizem que tudo o que se torna rotina um dia acaba perdendo o fascínio. Deve ser por isso que enquanto eu sonho acordado, os passageiros ao meu lado dormem profundamente neste vôo Rio-Miami. A viagem é longa, e há muito tempo para pensar. Como o meu destino final é o Caribe (San Juan del Puerto Rico, mais precisamente), paisagens de praias e ilhas, com seus sons de salsa, calipso, reggae e merengue logo me convidam a refletir sobre o que possivelmente me espera nos próximos trinta dias que passarei de férias por ali.

Misturando-se a formas e sensações que observo à janela ou que construo eu mesmo na base da imaginação, vêm-me à mente algumas reminiscências de quando eu estava prestes a sobrevoar as águas do Caribe pela primeira vez. Deixava o centro de Bogotá, de táxi, rumo ao aeroporto internacional sem conseguir esconder muito bem o medo que tinha daquela cidade tão violenta. Logo pude ver estampada em vários postes de luz a figura de um brasileiro que também me inspirava medo, com a sua mania de cavalos e chicotes: o presidente e ditador João Baptista Figueiredo. Ele estaria visitando o país em breve. Eu tinha mais um pequeno motivo para apressar minha saída.

A certo momento o motorista me perguntou qual era o meu destino. Numa língua mista, o tal de "portunhol" que eu vinha aprimorando ao passar anteriormente pela Bolívia, Peru e Equador, eu lhe disse: "Me voy al Panamá, talvez a Costa Rica, o mismo Guatemala. Pero mi destino final son los Estados Unidos". O homem achou estranho eu me dirigir ao aeroporto sem saber para qual país estaria viajando. Expliquei-lhe que por causa das leis do Panamá e de outros países da América Central não se vendia passagem só de ida ao passageiro que partisse da Colômbia. Eu ingenuamente tinha muita esperança de encontrar alguma solução para aquele impasse burocrático no aeroporto, pois queria conhecer um pouco daquela região estreita e rodeada de mares. Mas se a dificuldade fosse muito grande, pegaria o próximo vôo para os Estados Unidos. Infelizmente, assim o fiz.

Hora e meia após chegar ao aeroporto de Bogotá já estava abordo de um velho DC-8 da extinta companhia norte-americana Branniff. Apesar de frustrado por não poder ver a América Central com os pés no chão, agora me entusiasmava com as informações transmitidas aos passageiros. O comandante anunciou "Jamaica à vista", e logo se pôs a relatar dados sobre a bela ex-colônia inglesa. Qual foi a minha surpresa quando passamos a sobrevoar uma massa de terra muito maior e nenhuma voz a mencionou pelos alto-falantes.

"Aquilo é Cuba, meu caro", disse um passageiro à minha esquerda. "Não sabe que aviões americanos não devem nem mencionar a ilha de Fidel em seus serviços de bordo?" Mas o céu estava limpo e quem quis pôde ver as belas ilhas de Cuba, sem problema. E não há Guerra-Fria que lhes negue o charme e as cores.

Sete anos depois daquelas primeiras impressões dos arquipélagos caribenhos lá estava eu de novo sobrevoando os mesmos mares. E antes que houvesse muito tempo para me aprofundar nos mistérios e imbecilidades da política internacional, pousávamos em Miami. Menos de quatro horas mais tarde, já em outra aeronave, me aproximava das ilhas de Porto Rico, terra de saboroso rum e de um sapinho do tamanho de uma unha, que canta a noite inteira como se fosse gente grande em serenatas sem fim.

O sabor da piña-colada e a força do balanço caribenho se tornavam mais vivos em mim, diante da iminência do pouso em San Juan. Acima de tudo, o prazer advinha da enorme expectativa de re-encontrar alguém muito especial que ali morava. Agora ainda posso ver aqui de cima, um pouco antes de encarar a pista que nos levará ao terminal de passageiros, um restinho desse maravilhoso mar azul-esverdeado, tão cristalino como os seus olhos, Ann. Então Tom Jobim e Vinícius de Moraes me dão uma colher. Nesses divinos instantes posso apostar que “há menos peixinhos a nadar no mar, do que os beijinhos que eu darei na sua boca”.
Posted by Picasa

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Em Nova Orleãs, É uma BRASA, Mora?


Em Nova Orleãs, É uma BRASA, Mora?

Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu

Há grandes vantagens na carreira de professor universitário. Uma delas é participar de congressos em diversas partes do país e do estrangeiro. Boa parte de nossas despesas (senão quase todas elas) é paga pela instituição em que trabalhamos. Isto quer dizer que temos direito a certo tipo de “turismo intelectual” quase gratuito.

Os leitores desta crônica que viajam a negócios poderão dizer, “nós também”. Eu diria, pelo que sei, “não é bem assim”. Enquanto outros profissionais viajam sob pressão para “produzir resultados” e seguem uma agenda apertadíssima de cursos e negociações, nós, acadêmicos, vamos de encontro a ambientes descontraídos, habitados por pessoas contentes por estarem distantes das suas rotinas. Desta forma reveem velhos colegas de profissão e fazem novas amizades. E sempre há um tempinho para socialização (sessões de vinho e queijo, por exemplo, ou algo muito melhor).

Infelizmente nem todos os professores universitários, mesmo que tenham obtido seus PhDs da vida, têm esse tipo de privilégio. Milhares deles lutam para sobreviver lecionando em três ou quatro escolas que não lhes pagam o suficiente e nem lhes dão apoio para desenvolvimento profissional. Depois de tantos anos de estudo e tanto dinheiro gasto na educação, é lamentável submeter-se a tal penúria.

Bem, aonde quero chegar não é nenhum mar de lamúrias. Muito pelo contrário: quero compartilhar o deleite que foi minha recente viagem ao nono congresso internacional da BRASA (Associação de Estudos Brasileiros), entidade que agrega centenas de estudiosos de diversas disciplinas (da arquitetura ao cinema, da literatura à ciência política), todos voltados para o Brasil. Desta vez o encontro bi-anual se realizou em Nova Orleãs, cidade que ressuscitou das águas e dos escombros causados pelo furacão Katrina em mais um nefasto mês de agosto, o de 2005.

Devo dizer que o congresso foi mesmo uma verdadeira extravagância cultural. Em certos momentos 27 sessões com quatro ou cinco apresentadores aconteciam ao mesmo tempo. No total, eram centenas de pesquisadores reunidos. E como se debates acadêmicos não fossem o suficiente, ainda transcorriam sessões simultâneas com alguns dos melhores e mais recentes lançamentos do cinema brasileiro. E mais: no espaço de dois dias e três noites teríamos concertos de chorinho e jazz, além de rodas de samba e de capoeira.

Enquanto todas essas atividades acadêmico-culturais transcorriam nas salas e salões do belo campus da Universidade de Tulane, havia toda uma maravilhosa cidade a ser explorada.
Portanto, com maior ou menor disposição, quase todos (senão todos) os participantes do congresso escapariam pelo menos uma vez dos ares fechados da universidade. Era para dar uma olhada no French Quartier, o bairro francês tão apreciado pela música, principalmente jazz, blues, rock e cajun, e pela distinta arquitetura, com maravilhosos sobrados de estruturas metálicas entalhadas e varandas que nos convidam à paz e à descontração. Isso, é claro, sem falar no que denominei de “folclore da sacanagem”, a atitude carnavalesca de liberação sexual radical que dura o ano inteiro, sob o qual co-existem coloridos e alegres semi-prostíbulos e bares gays por todos os cantos.

Bom, e se isso tudo não fosse o bastante, há ainda centenas de outras opções em diferentes bairros ao redor do French Quartier. Em muitos destes, dizem, oferecem-se as verdadeiras jóias da cozinha e dos ritmos locais. Para um desses recantos me dirigi com três colegas da BRASA (Richard Gordon, Robert Moser, e Cristiano da Silva), na noite de sexta-feira, dia 28 de março, depois de muito bla-bla-blá intelectual. Apresentavam-se gigantes do jazz em uma casa bastante humilde e discreta, mas muito tradicional, o Donna’s. O clarinetista Evan Christopher e o pianista Tom McDermott já nos haviam dado arrepios de prazer estético quando, de repente, para um coração brasileiro, eles arrebentaram a boca do balão: tocaram delícias de um Pixinguinha, de um Abel Ferreira, e de um Ernesto Nazareth.

Era uma BRASA, mora, testemunhar o fantástico encontro do jazz e do blues de Nova Orleãs com o chorinho e o maxixe do Rio de Janeiro. Tudo se mesclava ali mesmo, onde as águas assassinas já tinham rolado como se fossem prenúncio do fim do mundo. Elas nem por isso teriam afogado o espírito harmonioso e viajante da arte, que não perdeu o barco de ida e de vinda, por mares distantes e rumo a tradições musicais nem tão dessemelhantes.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Terras estrangeiras




Terras
estrangeiras

Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu

Segundo o crítico Fernão Pessoa Ramos, há uma forte tendência no cinema brasileiro dos últimos treze anos: um tipo de acusação direcionada à nação como um todo, o grande vilão. Essa seria uma nação que se afoga num imundo mar de incompetência. Nossos cineastas contemporâneos, por seu turno, seriam navegadores cujo grande deleite é lavar nossa roupa suja diante de viajantes estrangeiros, principalmente aqueles trans-vestidos, na própria tela de cinema, com alguma indumentária e sobriedade a lhes outorgar autoridade moral (ou outro senso de superioridade) diante de sórdidos e ignóbeis terceiro-mundistas.

Ramos chama de “narcisismo às avessas” o conceito que toma emprestado do grande dramaturgo e cronista Nelson Rodrigues. Nos dias em que a seleção nacional de futebol não jogava bem, Rodrigues podia perceber que as vaias no Maracanã revelavam nossas “humilhações hereditárias”. Depois de muitas gerações sofrendo das mesmas frustrações e ansiedades, o ser brasileiro, escreve Rodrigues, “virou o seu narcisismo pelo avesso”, passando a cuspir “na sua própria imagem”.

O efeito daquele tipo de cinema a expor tão exaustiva e implacavelmente os podres poderes e fatais inaptidões de uma nação seria uma espécie de catarse, como os gritos no estádio de futebol. Através dessa catarse, no escurinho do cinema, o espectador podia se sentir melhor: ficava com pena, mas se afastava daquela repugnante realidade retratada pelo cineasta.

Com o filme Terra estrangeira, de 1995, os diretores Walter Salles e Daniela Thomas dão tremendo fôlego à recuperação do cinema nacional depois de cinco anos de um marasmo quase completo, herança nefasta do governo Fernando Colllor. Entretanto, além da crise política e econômica brasileira dos anos 80 e início dos 90, inevitáveis descaminhos no mundo do crime em Portugal compelem a protagonista de 28 anos, Alex, a refletir sobre a sua profunda decepção com a vida no “eterno país do futuro”. Tal sentimento, discute o crítico José Carlos Avellar, era compartilhado por milhares de jovens da classe média brasileira no início dos anos 90: “a sensação de se fazer parte de um país que não presta, de não se ter raiz nem identidade, de se viver em sua própria terra como se essa fosse uma terra estrangeira”.

Terra estrangeira, porém, deve permanecer excluído à síntese que Ramos aplica à produção cinematográfica do período de “retomada” do cinema nacional. Primeiro, vemos que a crítica social ao Brasil não é extensiva, impiedosa ou recalcitrante. Em seguida, constata-se que a imagem de Brasil terra-mãe-não-gentil é ali diluída pelas imagens muito mais problemáticas de outro país: um Portugal velho e inóspito, incapaz e indisposto a absorver os imigrantes vindos de países dos quais Lisboa tanto sugou recursos naturais e divisas comerciais enquanto metrópole imperial, e para os quais mandou, até 50 anos atrás, milhões de emigrantes. Numa terceira reflexão, aponta-se a ausência daquela típica personagem que representasse a autoridade estrangeira, emoldurando e ratificando a incompetência brasileira. Finalmente, a sensação que se tem ao assistir Terra estrangeira é a de que os realizadores da obra (nesse sentido, produtores, diretores e artistas) não objetivam o distanciamento entre a platéia e o universo dramatizado na tela.

Portanto, Salles e Thomas não configuram o tal narcisismo às avessas, cujo objetivo seria fazer com que o povo brasileiro despedaçasse sua auto-imagem para então se sentir mais distante do seu país de origem, ainda que lá mesmo continuasse residindo. O que temos neste belo filme, tão rico em simbolismos imagéticos quanto poético e pungente nos seus diálogos é, em particular, um drama sobre a imigração e a emigração entre o Brasil, Portugal, e Espanha (para onde fogem os protagonistas). Em um sentido mais amplo, vislumbra-se um estudo das inusitadas contingências e das típicas maledicências da vida no exterior. Discutem-se, pois, com o devido respeito, a imigração penosa e a complexidade quase sem fim da vida em terras estrangeiras, essas terras-mães nem sempre gentis para com seus filhos legítimos e ilegítimos que, por ora ou por gerações, se encontram destituídos de emprego, esperança e auto-estima.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Blogs

Quem tem medo dos blogs?

Dário Borim Jr. (dborim@umassd.edu
)

[Foto de Rick e Blanca, dois amantes dos blogs]

O título desta crônica tem um “que” de brincadeira, é claro. Afinal de contas, os blogs que habitam a grande rede de comunicação virtual não ameaçam nem escondem quaisquer armadilhas para nós, que até ontem éramos mortais. (Agora, com os blogs gratuitos, todos nós podemos virar imortais!)

Mas para que servem os blogs? Melhor seria perguntar: para que não servem os blogs? O indivíduo hoje pode ler uma notícia de jornal online e imediatamente mandar um comentário sobre ela, comentário que é publicado em segundos no próprio jornal. Mas os blogs servem a muitos propósitos. Professores, por exemplo, criam blogs para seus cursos com documentos que os alunos poderão acessar a qualquer momento.

Não faz muito tempo que eu mesmo passei a me interessar pelos blogs. Depois criei coragem para tentar estabelecer o meu próprio, através do portal totalmente gratuito, o Blogger:
http://www.blogspot.com/. Descobri que não era preciso obter um diploma do MIT para se ter uma página interativa na internet. Achei o processo bastante simples. Daí nasceu o Ponteio Cultural das minhas crônicas online: http://www.drborim.blogspot.com/.

Bom, um dos mais gratificantes aspectos da amizade é querer e poder compartilhar com amigos as nossas conquistas. Então, quando pude, convidei alguns deles a ver o quanto era fácil criar um blog e quanta satisfação era possível dele extrair. Primeiro me seguiu o conselho uma grandíssima amiga paulista, Wania Ribeiro*, que hoje publica seus belos poemas – como e quando bem entende, mas sempre para o grande deleite de seus alunos e amigos. Outro companheiro escolhido foi Rick Hogan, professor de filosofia que se aposentou da UMass Dartmouth alguns anos atrás. E não é que o Riquinho se tornou um grande fanático pelas liberdades e aventuras de se ter um blog?

Hoje, menos de cinco semanas depois de iniciar o seu blog, meu amigo Rick* já é capaz de fazer ali mil maravilhas. São centenas de páginas narrando viagens acumuladas ao longo de mais de quatro décadas pelos quatro cantos do globo, da África do Sul ao Tibete, ou do Egito à Patagônia. Ademais, nos deliciamos com centenas de fotografias – e até mesmo alguns de seus estudos filosóficos sobre Nietzsche (e outros mestres do pensamento) – também publicados ali. Sua paixão pelos blogs logo se estendeu a sua esposa, Blanca Rodriguez*, que se encontrava escrevendo um livro de receitas espanholas. Ela então passou a compor o seu próprio blog com todas aquelas apetitosas opções culinárias para milhares de mestres-cucas um dia experimentar.

É bom lembrar que quando lidamos com a internet e computadores em geral, nós, pessoas com mais de 40 anos de idade, não somos tão espertos quanto nossos filhos, cuja maioria nunca viu uma máquina de datilografia. Então é preciso ter paciência, porque inevitavelmente serão cometidos alguns erros no aprendizado. O importante é não perder a paciência e manter a perseverança. Quando eu mesmo ajudava Rick a criar o seu blog, de algum modo misturamos os códigos de identificação e personalização. Por quase uma hora nossas identidades estiveram cruzadas na grande rede. Quando Rick tentava abrir o seu blog (para desenvolvê-lo), caía logo no meu. E eu, quando tentava alterar algo no meu próprio blog, de repente me via diante da página ainda deserta do blog do meu amigo.

Não sei se os desvios foram efeitos de uns copos de vinho tinto. Mas o fato é que se devem controlar os nervos nessas horas, porque quase tudo se resolve na grande rede quando é mantida a calma e a graça. Sem desespero, somente um pouco de medo, Rick e eu logramos separar nossas identidades. A partir daí seus olhos adquiriram novo brilho e não houve mais limite para o seu prazer de publicar e imortalizar histórias e imagens de sua incrível jornada por esse largo e lascado planeta Terra.

*Wania Ribeiro’s Blog, Frutos do Coração: http://www.wboscariol.blogspot.com/
Rick’s Blog:
http://www.rhogan-ricksblog.blogspot.com/
Blog de Blanca:
http://blanca-blancarodriguezm.blogspot.com/




quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008




Sanduíches de letras

Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu

O que é que dá prazer à vida? Para alguns de nós, a lista é enorme. Para outros, nem tanto. Para terceiros, como alguns de meus conterrâneos, a resposta é muito simples: viver, sem querer viajar ou o que buscar fora do ninho. E não há nada de errado nisso, é claro, porque... bem, porque o que lhes dá prazer está ali mesmo, na cidade, bairro ou vilarejo onde moram: é a candura do convívio com parentes e amigos, em que não faltam boas anedotas, saborosas comidinhas, cerveja bem gelada, telenovela, ou futebol, e assim se vai levando a vida. Mas Paraguaçu, provavelmente como quase todas as cidades pequenas do mundo, também tem filhos radicados bem longe dali. Muitos de nós saímos por necessidades várias, mas principalmente por querermos melhores escolas ou melhores empregos. Alguns também se deixam levar por aventuras, como eu mesmo e meu colega de profissão e lazer, o professor Onésimo Teotónio Almeida, natural da ilha de São Miguel, dos Açores, que lançou recentemente mais um livro: Aventuras de um nabogador & outras estórias-em-sanduíches (Bertrand 2007).

Nossa profissão nos conduz a estudos muito sérios, acadêmicos que somos, com o objetivo de questionar e explicar livros e outros escritos. Acredito, entretanto, que, como eu, Onésimo também se veja longe de uma dedicação exclusiva a essa ocupação. No meu caso, em particular, fiz questão de colocar meu gosto pela escrita criativa no cerne de minha formação acadêmica. Graças ao reconhecimento dado ao creative writing no sistema universitário norte-americano, foi-me possível obter um de meus dois títulos de mestre nessa área. E por quê? Porque escrever histórias (sejam elas “reais” ou “inventadas”) me traz um enorme prazer. Onésimo, por seu turno, deixa claro em seu novo livro que escrever histórias (mesmo que as chame de estórias) só não é melhor que contá-las, ao vivo, cara a cara com os seus ouvintes. De fato, num congresso acadêmico aqui e ali, já presenciei e admirei os extraordinários talentos do colega na hora de narrar uma boa anedota. Porém, as suas Aventuras de um nabogador não deixam pra menos. As crônicas ali reunidas registram, com rara destreza e para a posteridade, a idéia e o testemunho de que é possível ser professor universitário e viver uma vida repleta de... aventuras.

Mas que tipo de aventuras? São assédios de uma aluna ninfomaníaca, sabotagens a um programa de rádio salazarista, pane de um avião em vôo transatlântico, exploração às cegas de uma selva sul-americana, etc., etc. Depois de ler suas dozes crônicas e os comentários que as antecedem ou as sucedem (formando as partes de um sanduíche de letras), melhor seria perguntar: que aventura não nos conta esse senhor parcialmente embrenhado no mundo dos livros, palestras, e múltiplas formalidades universitárias?

Em resumo, o cronista nos faz rir das enroscadas mirabolantes de quem trabalha com muita gente e viaja extensivamente, do Maine à Tailândia, da República Dominicana aos Açores, da Califórnia à Colômbia, e de Porto Rico a Rhode Island. E se considerarmos os inúmeros livros que o narrador lê e discute com peculiar humor e perspicácia, como bom e apaixonado professor de literatura que deve ser o Onésimo-de-carne-e-osso, então os quatro cantos do mundo se tornam seu fundo de quintal. Nós, leitores, que nos tornamos acompanhantes em suas travessias e seus refúgios, não queremos parar de ler. Queremos mais, até mesmo do próprio “pão” de cada crônica, porque o texto que apresenta cada um dos textos principais pode ser a melhor parte desse sanduíche de letras. Diante de tais plausíveis afeições, o que posso recomendar é o seguinte: uma segunda leitura de toda a obra, pois assim o sabor do recheio só poderá nos aumentar o paladar do pão, e vice-versa. Posted by Picasa

Mirem-se nas cenas de Atenas

                                                       A colina da Acrópole desde o Hostel Safestay (2025) Ei, senhor Chico Buarque de Holan...