domingo, 27 de fevereiro de 2022

Sábado de Carnaval em Tempos de Chumbo

 




Sábado de Carnaval em Tempos de Chumbo


Dário Borim Jr. 

dborim@umassd.edu 


Eram oito minutos para a meia-noite, quando meu filho mais velho, Ian, escreveu-me uma mensagem via Messenger, do Facebook. Eu já dormia há pelo menos uma hora, sem sequer lembrar, na cama, que era noite de Carnaval. Fora impensável que algum dia antes da velhice aguda ou de qualquer caduquice precoce eu pudesse passar uma noite dessas em branco, sem uma caipirinha ou um velho samba qualquer. Mas os nossos tempos andam um tanto lúgubres, e isso, o tal lapso, de fato me aconteceu sem choro e sem vela, pelo menos por enquanto. Neste momento, entretanto, a melancolia e um profundo desapontamento com a raça humana são os sentimentos que me fazem chorar por dentro, temer pelo futuro desse mundo besta, dominado por ganância material, poder e egocentrismo. Pelas 10 horas, um tanto antes de ir para cama (para mim algo tão ridiculamente cedo num sábado de Carnaval), eu pedira a Ann, minha esposa, uma pausa ao assistirmos um belo e maluco filme de Wes Anderson, The French Dispatcher, com o qual tentávamos pôr de lado as notícias tão tristes que chegavam dos milhares de refugiados e das bombas e mísseis russos caindo sobre Kiev e outras cidades da Ucrânia.

Não respondi, assim que li, àquela perguntinha rápida, que veio em português, “Alô pai, tudo bem?”, porque eram quatro e pouco da manhã quando a vi, e o remetente deveria estar dormindo. Acabou que a mensagem dele me inspirou a assentar agora, às 5h26 da manhã, para me desabafar um pouco por essas mal traçadas linhas eletrônicas de um documento em Word. Diga-se de passagem, é muito bom ter um filho que de vez em quando me pergunta: “Quando vai sair a próxima crônica?” Foi mesmo assim que surgiu a anterior, “Tudo positivo”, de mês e meio atrás, sobre nós, uma família de três pessoas, mais três cuidadoras e um enfermeiro, vivendo sob o mesmo teto em quarentena por conta do coronavírus.

Desta feita, não tenho muito motivo para alegria ou muita inspiração para o humor com o qual tratei daquele tema sócio-sanitário. Bem, talvez. Como cronista, raramente me retrato carente de umas pitadas irônicas ou pelo menos agridoces.

Então, como estão vocês, que gostam da farra desregrada e da graça infantil que marcam a Festa de Momo no Brasil? Eu gostaria de escrever aqui sobre muitas e memoráveis ocasiões de total imersão nesse mundo da fantasia, em que as pessoas dançam, bebem, comem e sorriem muito, deixando de lado por uns dias, ou pelo menos por umas horas, as metafóricas pequenas dores de dente do dia-a-dia, ou mesmo os desafios muito maiores, e nada poéticos, como os de minha realidade atual, quando nos assolam alguns casos de câncer na família, ou a solidão deprimente e a gradativa demência de nossos idosos.

Eu não queria dedicar muito espaço nesta crônica às lembranças daqueles dias de quase êxtase ao longo das décadas – mas quem sabe mais tarde algumas cenas de conversas bem-humoradas e de festas e blocos de fantasias com os amigos poderão me visitar o espírito. Nesta noite em Dartmouth, Massachusetts, o intenso frio, o gelo e a neve ali do lado de fora, por exemplo, poderiam me levar a relembrar as fantásticas noites de Carnaval que passei aqui mesmo em casa alguns anos atrás. Bem, aqui vai o filme – não resisti. A lista de convidados tinha mais de 30 pessoas, mas só quatro tiveram a coragem de vir comemorar comigo essa tradição brasileira que tanto amo. É que naquele sábado de Carnaval de repente caiu uma enorme tempestade de neve. Se quase trinta pessoas não vieram, outras quatro que se aventuraram a dirigir para cá ficaram presas, ilhadas na alegria por três dias, até que as ruas fossem desbloqueadas e o mundo das dores de dente pudesse levá-los de volta para suas vidas normais, sem batucada e sem fantasia.

Infelizmente, vivo o que muita gente pode estar vivendo neste Carnaval 2022: uma angustiosa mistura de pessimismo e medo, empatia e dor, diante do ocorrido no mundo nos últimos dois anos, com a morte de pelo menos seis milhões de vidas, e diante das cenas deploráveis do momento na Europa, onde um governo engana uma nação de dimensões continentais e, assim, justifica, através de sofisticada produção de fake news e outras técnicas de propaganda em massa, uma guerra sangrenta e sem sentido numa invasão brutal sobre as terras de um país vizinho com o qual compartilha muita história, afeto e DNA. 

Nesses mesmos tempos de guerra e sofrimento na Ucrânia, entretanto, é alientador ver a ajuda que milhares de refugiados estão recebendo na Polônia. Pessoas na estação de trem expõem placas com os nomes de cidades poloneses maiores, aquelas que têm como oferecer melhor infraestrutura de apoio, e para onde  eles oferecem caronas. Também é incrível que pessoas que estão indo para a Ucrânia nos mesmos trens que trazem os refugiados. Muitos vão de volta para o seu país para lutar, como voluntários. Vi que uma senhora com mais de 50 anos, e que mora em Londres, tinha cruzado a Europa e estava a caminho de Kiev para cuidar da mãe de 90 anos. Vi ainda mulheres e suas filhas fazendo coquetel molotov nas ruas de Kiev: para resistir aos ataques, vale a pena! São momentos que nos trazem um pouco de esperança e nos fazem um pouco menos envergonhados de sermos seres humanos, da mesma espécie de tipos como Putin e outros líderes idiotas egocêntricos.

Resta-nos recordar que esses tempos passarão, que há novos protestos surgindo contra os russos por todo o mundo, até na Rússia. Que um dia a verdade e a maldade sempre são descobertas. E que uma característica que nos destaca, enquanto brasileiros, é a esperança e a capacidade de sorrir e fazer festa mesmo que com pouco, mesmo que incialmente acanhados, frustrados ou desconfiados, para depois, como dizia Sérgio Sampaio em outros anos de chumbo, de muita violência política e manipulação oficial, nos anos de chumbo da diatura militar, “eu quero é botar, meu bloco na rua, brincar, botar pra gemer... gingar, pra dar e vender”.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Tudo Positivo

 




Tudo Positivo

              Dário Borim Jr.

 

Duas palavras ganharam força nesses tempos de pandemia do coronavírus: o desejado “negativo” e o abominável “positivo”. Chegou o dia em que eu mesmo tive que encarar o segundo termo depois de um teste rápido feito em Belo Horizonte, logo depois de passar três maravilhosas semanas em Paraguaçu. Era o tipo de resultado que pouco tempo atrás engendrava muito medo e apreensão, além de boas chances de sérias complicações médicas, isolamento em hospitais, grande desconforto físico e mental, e, em tantos casos, óbito. Porém, vieram as vacinas no início do ano passado, mesmo que no Brasil chegariam com muito atraso por conta da ignorância (e mau-caráter) de alguns de nossos governantes.

O fato é que nesse fim de ano, em quase todos os cantos do planeta, as festas agruparam amigos e familiares saudosos e ávidos por alegria e carinho, e o resultado foi muito negativo, no sentido de que tantos testes que fizemos desde então deram positivo, marcando a presença, no nosso organismo, de daquele mesmo vírus letal. Ainda bem que ele passou a ter que lutar contra o gênio da ciência humana, capaz de desenvolver tão rapidamente os antídotos que o reduziriam os seus poderes maéficos àqueles de um fracote, como se o COVID fosse o agente de uma leve e temporária gripe, na maioria dos casos.

Como dizia, em poucos dias entre dezembro de 2021 e janeiro de 2022, o abominável “positivo” se espalhou pelo mundo afora, e nossa casa em Paraguaçu não foi exceção. Em poucos dias, como comentamos brincando, “ficamos tudo positivo”: meu pai, de 99 anos, três de suas cuidadoras, um enfermeiro, meu filho Ian e eu! Fim do mundo? Não, mas foi desconcertante – e foi preciso nos adaptarmos! De repente, a casa de meu pai na Aureliano Prado virou uma espécie de Hospital Borim, com muito exagero, claro! Então, vamos dizer, aquilo virou uma Casa Borim de Repouso e Quarentena, pois nós, seis dos sete infectados, incluindo Terezinha, Queila e Jonathan, passamos a morar juntos. É mole?

Ainda bem que a casa é grande, tinha um quarto para cada um dos “covidados”, os convidados a viver juntos pelas circunstâncias, enquanto durasse a nossa quarentena. É claro que nos preocupamos muito com o Vô Dário, por conta de sua idade avançada e saúde debilitada, e ele foi o foco de nossas atenções e carinhos. Mas nem só de drama e medo vive uma comunidade atacada pelo coronavírus! Foram muitos os momentos de intensa descontração e alegria, de pura amizade e prazer em estarmos juntos. Várias vezes curtimos as abundantes mangas e as uvas do nosso quintal, comemos todos juntos na cozinha, após encaminharmos o Dário para os seus aposentos. E a conversa fluía leve, longa e reveladora. Conversamos muito sobre nosso passado, nossas aventuras, nossas viagens, nossos percalços, nossos planos e nossos dilemas enquanto pessoas de idade, escolaridade, e origem socioeconômica muito diversas. Foi particularmente interessante ouvir causos sobre como era a vida de uma outra Paraguaçu que nunca vi, a Paraguaçu das festas de fim de semana nas roças, nos sítios e na periferia.

Alguns momentos foram de fato comoventes e inesquecíveis. Destaco as cenas de paciência e de jeitinho doce das cuidadoras e enfermeiros em horas difíceis, quando, por exemplo, Dário saía um pouco do seu consciente e se mostrava intransigente e indelicado na recusa aos remédios. Em outras ocasiões, era divertido e gratificante ver as cuidadoras e o infermeiro sairem de manhã das próprias camas e dos próprios quartos onde normalmente pernoitava a família do patrão. Veio também a hora de eu retirar do forno e servir pães de queijo recém-assados para eles, enquanto eles assistiam televisão. Numa das noites, Ian preparou uma massa (que aprendera a fazer quando morou na Itália) e a serviu para os nossos “covidados” com muita satisfação.

Para ser bem sincero, Ian também foi protagonista da hora mais bela de todos aqueles rememoráveis momentos que vivi nesta viagem ao Brasil, que para mim termina daqui a poucas horas em voo sem escala para Nova York. Ele, aliás, já está a caminho da Big Apple. Saiu pelo fim dessa manhã. Portanto, nos ares há um bom tempo, Ian sobrevoou há pouco o esplendor da mata amazônica, como indicava um aplicativo informativo sobre voos em tempo real.

Para encerrar esse retrato de dificuldades mas também de superação de adversidades em tempos de doença e confinamento, volto meus olhos para quando eles se enevoaram de orgulho e gratidão ao meu filho mais velho (em seis dias completando 29 bem-vividas primaveras). Estávamos os três à mesa de jantar: avô, filho e neto, ninguém mais. Foi quando Dário começou a clamar de dores no corpo, repetindo uma ladainha curta, mas perfurante, nos nossos peitos: “Tem misericórdia de mim, meu Deus, tem misericórdia de mim”! Então logo o neto se levantou e se pôs em pé atrás do avô para iniciar uma gentil massagem pelas costas e ombros tensos do nosso querido nonagenário.

O olhar de meu pai, que estivera assentado e cabisbaixo de frente pra mim, rapidamente mudou da água pro vinho. Havia a luz de real alívio no seu semblante cansado. Foi quando ele alterou o enredo de sua cantilena. Olhando para mim, enquanto se deliciava do amor e do carinho do neto de um metro e noventa de altura (que permanecia massageando-o em pé, às suas costas, sorrindo para mim), meu pai passou a repetir outro canto: “muito obrigado, menino Jesus, muito obrigado”. Sentindo uma emoção sem par e sem explicação naquela hora, eu apenas desejei imortalizar aqueles minutos de integral contentamento e gratidão por um gesto tão singelo, mas tão transformador. É o que faço agora, e agradeço a Deus pela chance de valorizar o ato tão simples que tanto nos mostra o poder do amor, da empatia e do bem-querer.


quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Nefasto desejo de fim de ano

 

Nefasto desejo de fim de ano

 

Dário Borim Jr.

dborim@umassd.edu  

Nesta quarta-feira em que um amigo muito especial já se encontra em outro plano de existência, acordei mais triste do que esperava estar. Quase uma semana depois de sua partida, tive, há poucos minutos, um desejo de fim de ano. Precisei escrevê-lo para compartilhar com alguém a minha angústia. Juro, não é uma questão de vingança. Desculpem a franqueza do que vou-lhes dizer!

Hoje ainda é dia 30 de dezembro. Portanto, o ano de 2020 ainda não acabou. Mas, pelo que mais o marcará na história da humanidade, o drama desses terríveis meses não vai acabar com a passagem do ano. Eu tenho certeza disso, e muitos de vocês também, por vários motivos, mas mesmo assim já tenho um desejo para a entrada do ano novo, sempre tão comemorada por muitas e diversas culturas mundo afora e muitas vezes tomada como momento para pedir benesses e redenções pessoais. Muitas comemorações desse ano, claro, vão ser, infeliz mas inevitavelmente, diferentes. E isso é mais do que preciso. Porém, sabemos: muita gente não vai colaborar. É principalmente para essas pessoas que agora escrevo.

Em meus dois países do coração, nada menos que meio milhão de pessoas já sucumbiram ao coronavírus desde março (quase 200 mil ao sul da linha do Equador, e quase 300 mil ao norte). Tenho muito amor pela terra e pelo povo que mora ou no maior país da América Latina, ou na nação mais populosa da América do Norte. No primeiro, vivo existencial, emocional e intelectualmente desde o meu nascimento ao fim da década de 1950. Vim ao mundo lá pelas verdes colinas do Sul de Minas, de onde nunca saí, tanto pela forma com que ganho a vida quanto pelos sentimentos e preocupações constantes com a gente que mais amo. No segundo país, me vejo presencialmente desde o meu renascimento educacional, pessoal e profissional, mudança radical que tomou seu maior impulso junto às Montanhas Rochosas do Wyoming, trinta e oito anos atrás. É mesmo uma segunda vida, não?

Mas vejam bem: a questão não é nacionalismo, como querem equacionar nossos dois atuais presidentes, Jair Bolsonaro e Donald Trump, que em comum tanto têm de ignorância, insensibilidade e maquiavelismo. O problema é maior, é mundial, é da espécie humana. Os hospitais de todo o planeta, com poucas exceções, estão sofrendo de uma hemorragia que não vai se estancar em tempo de evitar novos milhares de mortes a cada dia, sim, a cada dia, pelos próximos meses, até que as novas vacinas nos salvem de uma tragédia coletiva muito maior do que a já causada pela atual pandemia.

Enquanto isso, milhares ou, possivelmente, milhões de indivíduos negaram e ainda negam a existência ou gravidade da tragédia, e, os mesmos (ou quase os mesmos) milhares ou milhões também se opuseram e ainda se opõem ao uso de máscaras e distanciamento social. Agora, mais recentemente, muitos deles são contra e fazem propaganda para descrédito das vacinas que já começaram e vão algum dia salvar todo o mundo.

Então chegou a hora e vou direto ao meu mais nefasto – mas sincero – desejo de fim de ano. Naturalmente não sou Deus, nem com maiúscula, nem com minúscula, mas por uma questão de justiça cósmica, e por uma questão de lógica sanitária e evolutiva da espécie humana, desejo que nesse ano que se inicia, em menos de 48 horas, que morram primeiro os tais milhares ou milhões de indivíduos que citei acima.

Sim, eles merecem pelo menos se infectarem e então terem que torcer muito pelo seu Deus, com maiúscula ou com minúscula, pois, se o caso da doença for sério e eles precisarem de tratamento hospitalar, então não será nem minimamente justo que tais indivíduos tenham acesso às CTIs de nenhum hospital do planeta! Desejo que não se salvem do vírus algoz (pois foram amigos dele), se para sua sobrevivência tenham que se afogar ao léu e falecer por falta de atendimento médico outros milhares ou milhões que pensaram e agiram tanto em proteção da própria pele quanto na preservação da saúde da família, dos vizinhos e da humanidade como um todo. 

Mas, esperem. Tenho uma ressalva: não quero ser maniqueísta. Desejo então que no fim (ou, até com mais clemência, fora) dessa fila dos condenados sigam aqueles indivíduos que adotaram tal atitude negacionista, as pessoas que negam ou não aceitam como verdadeiros os conceitos comprovados cientificamente, por uma questão de desconhecimento ou inocência diante do discurso político sedutor de nossos dirigentes e seus comparsas, gente que tragicamente confunde liberdade com irresponsabilidade.



sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Aproximações de Clarice Lispector

Aproximações de Clarice Lispector:

Um depoimento à Fundação Joaquim Nabuco

 

Clarice Lispector

Luta sangrenta pela paz, 20/maio/1975

Óleo sobre madeira (Acervo Fund. Casa de Rui Barbosa)


Minhas conexões com a obra de Clarice Lispector se iniciaram na adolescência, quando, poucos anos antes de ela falecer, decifrei e me deleitei com alguns dos enigmas de Perto do coração selvagem. Na época eu lia, sem saber, vários dos títulos que a tinham influenciado profundamente naquela mesma fase instável de formação, que Clarice passou entre o Recife (de onde saiu aos 15 anos) e o Rio de Janeiro (onde floresceu como escritora). Eu mesmo me mudara, também aos 15 anos, de Paraguaçu (cidadezinha no Sul de Minas), para Belo Horizonte (a moderna capital dos mineiros). Absorvemos, os dois, ela nos anos 30, e eu nos 70, um bom número em comum de narrativas inesquecíveis, como Crime e castigo, de Mikhail Dostoiévski, e Siddhartha, de Herman Hesse.

Clarice, que essa semana completaria 100 anos, infelizmente nos deixou muito cedo, um dia antes de completar 57 anos, isto é, só um pouco mais jovem do que estou eu, no momento. No ano de sua morte, também partiu deste mundo um dos grandes amigos-poetas de Clarice, Carlos Drummond de Andrade. Naquele mesmo ano de 1977, eu me formava em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais, e logo me sentiria um tanto desnorteado intelectualmente diante de enorme perda, a de dois dos maiores poetas brasileiros, ele, do verso, e ela, da prosa.

Enquanto professor universitário, minha ligação com a poeta-em-prosa Clarice Lispector tem passado por modestas, mas, afáveis experiências. A primeira vez que utilizei seus textos em sala de aula foi quase 30 anos atrás. Eu dava meu primeiro curso de literatura na vida. Foi na Universidade de Minnesota, no Meio-Oeste dos Estados Unidos. Tratava-se de uma disciplina eletiva da graduação voltada para a criação poético-musical de Caetano Veloso, autor sobre o qual Clarice exerceu significativa influência. Naquela ocasião lemos Laços de família, meu favorito entre os seus livros 27 publicados em vida.

Até recentemente, enquanto pesquisador eu não tinha dedicado muita atenção à obra de Clarice Lispector, mas desde os tempos de Minnesota tenho trabalhado com o seu legado em cursos de bacharelado. Enquanto isso, foram surgindo oportunidades de fazer algumas palestras na Europa e nos Estados Unidos e de escrever algumas crônicas sobre a autora. Também publiquei, no Peru, um ensaio acadêmico sobre a linguagem figurativa no conto “A imitação da rosa”.

Atualmente ministro um seminário na pós-graduação, aqui na Universidade de Massachusetts Dartmouth, que é todo voltado para a crônica brasileira. Clarice já teve um grande destaque nos nossos debates. Nos últimos dois meses tenho pesquisado essa parte do seu legado, suas inusitadas crônicas. Ademais, há duas semanas fiz uma palestra sobre o tema no Colóquio Laços com Clarice, um evento organizado por três instituições: a nossa, o Instituto Federal de Pernambuco, e a Universidade Federal de Alagoas.

Resta-me confessar que me encontro mais apaixonado do que nunca pela obra de Clarice Lispector. Acredito que esse entusiasmo e prévios estudos que fiz sobre a crônica enquanto gênero híbrido para a Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos nos últimos dez anos poderão resultar em um novo livro. A cada dia não vejo a hora de explorar a audácia, complexidade, criatividade, inovação e profundidade dos escritos claricianos que inicialmente apareceram em jornais e revistas do Rio de Janeiro. Espero, assim, contribuir para amenização do preconceito que ainda subexiste, em geral, contra a crônica enquanto expressão artística, e, em particular, contra aquela vasta e fascinante – porém, pouco estudada – porção da obra de uma imortal da literatura mundial.

sábado, 14 de novembro de 2020

Novos amigos


 

Novos amigos


Dário Borim Jr.

Ontem apanhei meu guarda-chuva verde e saí pra dar uma voltinha pela vila onde moro, aqui ao sul de Massachusetts. Fui tirar umas fotos das folhas do outono que se esconde aos poucos, a maioria embelezando em última instância o chão onde caíram. Foi minha maneira de homenageá-las e guardá-las para apreciação por pelo menos mais uns dias (possivelmente por alguns anos), pois o vento, as vassouras e os aspiradores elétricos não as iam deixar durar mais que poucos dias. Fico com a mesma impressão que talvez tivesse Claude Monet cento e pouco anos passados. Precisamos captar esse brilho e nos iluminarmos a alma.
Este ano de 2020, mais do que nunca, quero ir ver as cores, as formas e os movimentos fora de casa, onde basicamente trabalho, como e durmo! Talvez essa fome de viver mais e melhor ocorra porque esteja eu, como quase nós todos, um tanto mais sensível. Sem oportunidade para ver meus amigos, ou me divertir como antes da pandemia, o que fazia vendo shows, dando risadas, etc., eu agora -- mais do que nunca, como dizia --faço novos amigos entre as plantas, os passarinhos, os insetos, as núvens, os rios, o mar, a lua, e muito mais. Que sorte!
E vou fotografando o que posso, o que é minha maneira de amar a tudo aquilo tão belo e de graça, sem riscos de contágio, a não ser o contágio do deslumbre, da admiração, e do respeito ao que nasce tão formoso, mas, como tudo, morre e às vezes renasce no ano seguinte, talvez, se o ser humano não destrói tal harmonia e diversidade, queimando ou roçando os campos, expulsando ou matando os animais. Hoje em dia estou tentando viver cada dia mais nesse plano da contemplação que me leva a pensar e a escrever como forma de viver mais livre e mais prazerosamente, dentro dos limites desses nossos tempos de crise e risco, de isolamento e saudade.

domingo, 25 de outubro de 2020

Justiceiros do Mal em Nome do Bem

 



Dário Borim Jr.

dborim@umassd.edu  

Há poucos minutos eu ainda oscilava entre escrever estas linhas em inglês ou português. Até me veio uma ideia esdrúxula: que tal compor uma sentença inteira em uma língua e, imediatamente, sua versão na outra? Eu teria uma crônica para cada um de dois públicos. Nunca soube de nenhum poeta que tivesse feito algo assim. Não serei eu um pioneiro dessa verve bilíngue em prosa. A origem da dúvida é a de que neste outono eu leciono dois cursos que me inspiram a refletir bem além do meu normal. Um deles, na graduação, é todo ministrado em inglês: “Gênero e Sociedade no Cinema Brasileiro”. O outro, na pós-graduação, é um seminário que dou em português: “A Crônica Brasileira”. Ambas as turmas me provocam a pensar de um modo livre, criativo e emocional, tanto nas aulas à distância, via Zoom, como nas tantas vezes que depois, sozinho, sigo por aí, pensando com os meus botões.

No curso em inglês, vimos semanas atrás o documentário Waste Land, sobre o belo trabalho do artista plástico paulista Vik Muniz junto a uma comunidade de coletores de recicláveis num lixão do Rio de Janeiro. Também vimos o biofilme Kinsey, sobre o astuto e pioneiro biólogo e sexólogo norte-americano, Alfred Kinsey. No seminário para nossos mestrandos e doutorandos discutimos várias crônicas escritas nas décadas de 1960 e 1970. Dedicamos grande parte do tempo a dez crônicas assinadas por Clarice Lispector. Como aqueles dois filmes, alguns desses textos claricianos, principalmente “Literatura e Justiça” e “Mineirinho,” nos compelem a ponderar sobre os desafios de nossos dias, especialmente nas iniquidades socioeconômicas e nas múltiplas formas de violência racial.

Além das ideias e confabulações partindo diretamente das questões discutidas nas aulas, outros questionamentos relacionados àqueles temas andam mexendo comigo. São derivados de quatro ou cinco cenas descritas pela mídia. São situações ou desenvolvimentos recentes. Gostaria de explorá-los um por um aqui, com alguma profundidade, mas não há espaço nesta crônica. Vou, quem sabe, tentar elaborar alguma síntese ao refletir sobre eles e suas interligações.

Vamos lá. Alguns dias atrás, eu li que quatro adolescentes, dois de 12 e dois de 13 anos, abusaram sexualmente de uma garota de 11 anos em Nova Tupi, um bairro na região Norte de Belo Horizonte. Como se já não fosse um ato de horror e crueldade, há outros agravantes na notícia. Um jovem de 23 anos filmou as cenas de sexo oral e penetração forçada. A seguir, enviou o vídeo aos pais da menina via WhatsApp. Respirem fundo: tem mais uma dose absurdo e maldade: a mãe de uns dos agressores mais jovens inocentou o filho e declarou à imprensa que a vítima “não era de boa fama”.

Outra cena abominável da semana foi a de dois ministros do governo Jair Bolsonaro. Assinaram um manifesto internacional (mas não global, como gostariam) galvanizando a importância das campanhas de condenação ao sexo que não seja entre homens e mulheres, e, exclusivamente, dentro do casamento. Fortificaram, também, um orgulhoso combate a qualquer forma de aborto, num gesto de aberração anacrônica assinada por autoridades governamentais de 36 países. Coincidentemente, são todos de governos autoritários, de direita ou ultra-direita. Essa equipe de cérebros deturpados no poder, liderada pelo Secretário de Estado norte-americano Mike Pompeo e patrocinada pela Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, a brasileira Damares Alves, é formada por gente que eu gostaria de denominar “justiceiros do mal”.

O tal time não inclui representantes de menos que um quinto dos 167 países que constituem as Nações Unidas, mas, mesmo assim, essa gente me dá calafrios de vergonha e medo. Os disparates são inúmeros. Talvez valha reiterar que enquanto milhares de mulheres morrem por terem-se engravidado, pois não têm acesso a clínicas autorizadas, gratuitas e profissionalmente preparadas, algumas daquelas autoridades veem certa (sórdida) missão divina tanto na salvação dos fetos, quanto na condenação de “criminosas” e “criminosos” à pena de morte. Ao mesmo tempo, essas criaturas que falam em nome de Deus também defendem em voz alta a abstinência sexual completa antes ou fora do casamento como solução preventiva ao aborto. Abstinência sexual compulsória tem seus muitos problemas, é claro, inclusive os riscos de obsessões advindas da proibição, e os dolorosos transtornos de homens e mulheres que se amam e se casam ainda virgens, para algum tempo depois um deles ou ambos se reconhecerem como homossexuais.

Dentro desse cenário de restrições e retrocessos, estão na mira dos poderosos da Polônia, Hungria, Uganda, Arábia Saudita, Brasil ou Estados Unidos (entre outras nações ditas civilizadas), o casamento ou o reconhecimento da união estável entre pessoas homoafetivas. Correm enorme perigo todos os seus direitos humanos já arduamente obtidos e assegurados por lei, entre os quais os incentivos fiscais e as vantagens de cofiliação a planos de saúde. Membros de minha família, amigos e vizinhos estão justificavelmente apreensivos, no momento em que o Congresso dos Estados Unidos está pronto para confirmar Amy Barrett, uma juíza católica que lê a bíblia e a constiuição do país literalmente, como nova membro da Suprema Corte. Ela se apresenta e age judicialmente  "originalista" – mesmo que ambos os documentos aos quais tem professa lealdade tenham sido escritos ou em épocas em que se queimavam e se apedrejavam homossexuais e adúlteros em praça pública, ou se exterminavam os nativos na conquista do oeste e se mantinha viva e ferrenha uma das instituições mais abomináveis da história da humanidade, a escravidão.

Finalmente, resta um sopro de esperança, pois nem tudo são sombras e espinhos nessa árdua e penosa caminhada em meio a uma pandemia sanitaria e política que avassala quase todos os cantos do mundo. De repente ouve-se do Vaticano uma voz de solidariedade e respeito humano, em defesa das relações homoafetivas. Papa Francisco, volta a contrariar os conservadores de plantão, claro, os filhos, netos, e bisnetos de Deus que dão continuidade à mesma linha de gerações que sobrevive às custas das fortunas herdadas sob a milenar harmonia entre justiceiros do mal em nome do bem, pontífices, monarcas, ditadores e fascistas.

PS: Entre outras fontes, veja: 1) https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/10/22/interna_gerais,1197125/menina-estuprada-por-adolescentes-norte-bh-pais-recebem-video-whatsapp.shtml e 2) https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/brasil-se-une-a-egito-indonesia-uganda-hungria-e-eua-em-declaracao-contra-o-aborto.shtml

 


segunda-feira, 6 de julho de 2020

Podres e Poderes em Tempos de Pandemia

Dário Borim Jr. 



Até ontem, dia 5 de julho de 2020, diz a Universidade Johns Hopkins, havia pouco mais de 11 milhões e trezentos mil casos confirmados de COVID-19 pelo mundo afora. Já foram bem mais de meio milhão de mortos depois de passado apenas meio ano, afirma a mesma instituição de inquestionável renome ético e científico. Para mim, é, ao mesmo tempo, aterrecedor e misterioso como que para muitas pessoas tais dados não importam, pois, elas dizem por aí, “a maioria dos casos da doença é coisa passageira” ou “a pandemia é histeria da mídia sensacionalista e mentirosa”.
Que cataclismo ou mesmo que tragédia quase apocalíptica já teríamos vivido, se mais chefes de estado pensassem assim tão levianamente, como o fazem os dois arrogantes, insensíveis e maquiavélicos idiotas que, por “coincidência apenas” (desculpem a ironia), fazem de tudo, igual e simultaneamente, para promover seus egos e incentivar as suas reeleições ao seduzir seus alienados apoiadores e (des)comandar, sem nenhum escrúpulo, as duas nações mais infectadas do planeta, os Estados Unidos e o Brasil. Esses são, aliás, os dois países dos quais sou cidadão, pateticamente envergonhado e temeroso pelo presente abominável e pelo provável futuro de enormes sofrimentos sob os efeitos de um único agente invisível, um vírus a desorganizar ou mutilar a sociedade global, essa mesma que andava, até pouco tempo, muito orgulhosa de sua poderosa tecnologia e avanços científicos.
Entre tantos motivos para lamentarmos o momento em que vivemos, como a perda apressada e isolada de nossos queridos, o desemprego maciço, a solidão aguda, os transtornos psíquicos, a violência doméstica, o alcoolismo, o desespero e a fome que assolam meio mundo, é preciso perceber e reiterar outras transformações que também têm seu impacto sobre a comunidade mundial. Por exemplo, nunca vi tantos pais e filhos andando juntos na rua de minha pequena cidade, ou mães e filhas pedalando suas bicicletas nas estradas rurais. Aliás, nunca vi tantas bicicletas e tantas pessoas fora de casa, ou vizinhos conversando entre si, sem pressa. Nunca vi tantas empresas privadas doando altas somas de dinheiro para amenizar os riscos de médicos e enfermeiros, além de outros trabalhadores essenciais. Nunca vi tanto céu azul sem os riscos brancos de aviões que nos proporcionam viagens inesquecíveis, sim, mas que também destroem as camadas de ozônio sobre nós. Nunca vi tanta gente falar da saudade de amigos e familiares e, particularmente, de seus abraços apertados. É ausência do calor humano que vem do que vem do carinho e da empatia, que na sua falta, estudos comprovam, pode até matar um recém-nascido.
Tudo na vida tem os seu momentos e seus ímpetos de ação e reação, e assim são milhares de indivíduos hoje dedicados às pesquisas que certamente nos trarão vacinas e outros medicamentos capazes de aniquilar a presença nefasta do vírus assassino. Além dessas disposições positivas, destaca-se uma crescente consciência de que estamos todos no mesmo barco, que aquilo que ameaça a vida de uma pessoa carente de conforto material também ameaça a vida de uma pessoa abastada, como na hora de comprar algo ou receber uma diarista para limpeza da casa. Cresce também a noção de que saúde deve ser o bem de toda a humanidade, que algo tem que ser feito para que o pobre também tenha um ambiente doméstico salubre, com água corrente e água potável, com acesso a hospitais e alimentação sadia, pois, se não for suficiente o fato de sermos,  todos, humanos e merecedores dessas condições de vida decentes, não haverá trabalhadores para as colheitas, para as fábricas, para as lojas, para a entrega do que compramos online, para a limpeza das casas e dos hospitais onde tanto os ricos como os pobres estarão dependentes do trabalho alheio.
Por fim, com certo otimismo apuram-se nestes dias novos poderes de uma conscientização dos problemas mais sérios e sistêmicos, aqueles de enormes proporções, em boa parte das nações os podres do mundo. Uma noção mais acurada da própria disparidade socioeconômica e suas consequências, como a desigualdade entre as escolas e as oportunidades de ascensão profissional, como, também, das práticas seculares de cunho racista, agora afloram num período da história quando se faz necessário repensar e reestruturar as instituições, a distribuição de renda, e a mentalidade de cada um de nós, pelo que é justo e necessário diante de um planeta que passa e vai continuar a passar por gigantescos desafios (calamitosas tempestades, secas, enxentes, e outras pandemias, por exemplo), de onde e quando, acredito, não haverá muita saída, talvez nem num refúgio armado, blindado e subterrâneo suficientemente seguro para os ricos e egoístas de qualquer nação.

Mirem-se nas cenas de Atenas

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