quinta-feira, 13 de março de 2008

Blogs

Quem tem medo dos blogs?

Dário Borim Jr. (dborim@umassd.edu
)

[Foto de Rick e Blanca, dois amantes dos blogs]

O título desta crônica tem um “que” de brincadeira, é claro. Afinal de contas, os blogs que habitam a grande rede de comunicação virtual não ameaçam nem escondem quaisquer armadilhas para nós, que até ontem éramos mortais. (Agora, com os blogs gratuitos, todos nós podemos virar imortais!)

Mas para que servem os blogs? Melhor seria perguntar: para que não servem os blogs? O indivíduo hoje pode ler uma notícia de jornal online e imediatamente mandar um comentário sobre ela, comentário que é publicado em segundos no próprio jornal. Mas os blogs servem a muitos propósitos. Professores, por exemplo, criam blogs para seus cursos com documentos que os alunos poderão acessar a qualquer momento.

Não faz muito tempo que eu mesmo passei a me interessar pelos blogs. Depois criei coragem para tentar estabelecer o meu próprio, através do portal totalmente gratuito, o Blogger:
http://www.blogspot.com/. Descobri que não era preciso obter um diploma do MIT para se ter uma página interativa na internet. Achei o processo bastante simples. Daí nasceu o Ponteio Cultural das minhas crônicas online: http://www.drborim.blogspot.com/.

Bom, um dos mais gratificantes aspectos da amizade é querer e poder compartilhar com amigos as nossas conquistas. Então, quando pude, convidei alguns deles a ver o quanto era fácil criar um blog e quanta satisfação era possível dele extrair. Primeiro me seguiu o conselho uma grandíssima amiga paulista, Wania Ribeiro*, que hoje publica seus belos poemas – como e quando bem entende, mas sempre para o grande deleite de seus alunos e amigos. Outro companheiro escolhido foi Rick Hogan, professor de filosofia que se aposentou da UMass Dartmouth alguns anos atrás. E não é que o Riquinho se tornou um grande fanático pelas liberdades e aventuras de se ter um blog?

Hoje, menos de cinco semanas depois de iniciar o seu blog, meu amigo Rick* já é capaz de fazer ali mil maravilhas. São centenas de páginas narrando viagens acumuladas ao longo de mais de quatro décadas pelos quatro cantos do globo, da África do Sul ao Tibete, ou do Egito à Patagônia. Ademais, nos deliciamos com centenas de fotografias – e até mesmo alguns de seus estudos filosóficos sobre Nietzsche (e outros mestres do pensamento) – também publicados ali. Sua paixão pelos blogs logo se estendeu a sua esposa, Blanca Rodriguez*, que se encontrava escrevendo um livro de receitas espanholas. Ela então passou a compor o seu próprio blog com todas aquelas apetitosas opções culinárias para milhares de mestres-cucas um dia experimentar.

É bom lembrar que quando lidamos com a internet e computadores em geral, nós, pessoas com mais de 40 anos de idade, não somos tão espertos quanto nossos filhos, cuja maioria nunca viu uma máquina de datilografia. Então é preciso ter paciência, porque inevitavelmente serão cometidos alguns erros no aprendizado. O importante é não perder a paciência e manter a perseverança. Quando eu mesmo ajudava Rick a criar o seu blog, de algum modo misturamos os códigos de identificação e personalização. Por quase uma hora nossas identidades estiveram cruzadas na grande rede. Quando Rick tentava abrir o seu blog (para desenvolvê-lo), caía logo no meu. E eu, quando tentava alterar algo no meu próprio blog, de repente me via diante da página ainda deserta do blog do meu amigo.

Não sei se os desvios foram efeitos de uns copos de vinho tinto. Mas o fato é que se devem controlar os nervos nessas horas, porque quase tudo se resolve na grande rede quando é mantida a calma e a graça. Sem desespero, somente um pouco de medo, Rick e eu logramos separar nossas identidades. A partir daí seus olhos adquiriram novo brilho e não houve mais limite para o seu prazer de publicar e imortalizar histórias e imagens de sua incrível jornada por esse largo e lascado planeta Terra.

*Wania Ribeiro’s Blog, Frutos do Coração: http://www.wboscariol.blogspot.com/
Rick’s Blog:
http://www.rhogan-ricksblog.blogspot.com/
Blog de Blanca:
http://blanca-blancarodriguezm.blogspot.com/




quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008




Sanduíches de letras

Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu

O que é que dá prazer à vida? Para alguns de nós, a lista é enorme. Para outros, nem tanto. Para terceiros, como alguns de meus conterrâneos, a resposta é muito simples: viver, sem querer viajar ou o que buscar fora do ninho. E não há nada de errado nisso, é claro, porque... bem, porque o que lhes dá prazer está ali mesmo, na cidade, bairro ou vilarejo onde moram: é a candura do convívio com parentes e amigos, em que não faltam boas anedotas, saborosas comidinhas, cerveja bem gelada, telenovela, ou futebol, e assim se vai levando a vida. Mas Paraguaçu, provavelmente como quase todas as cidades pequenas do mundo, também tem filhos radicados bem longe dali. Muitos de nós saímos por necessidades várias, mas principalmente por querermos melhores escolas ou melhores empregos. Alguns também se deixam levar por aventuras, como eu mesmo e meu colega de profissão e lazer, o professor Onésimo Teotónio Almeida, natural da ilha de São Miguel, dos Açores, que lançou recentemente mais um livro: Aventuras de um nabogador & outras estórias-em-sanduíches (Bertrand 2007).

Nossa profissão nos conduz a estudos muito sérios, acadêmicos que somos, com o objetivo de questionar e explicar livros e outros escritos. Acredito, entretanto, que, como eu, Onésimo também se veja longe de uma dedicação exclusiva a essa ocupação. No meu caso, em particular, fiz questão de colocar meu gosto pela escrita criativa no cerne de minha formação acadêmica. Graças ao reconhecimento dado ao creative writing no sistema universitário norte-americano, foi-me possível obter um de meus dois títulos de mestre nessa área. E por quê? Porque escrever histórias (sejam elas “reais” ou “inventadas”) me traz um enorme prazer. Onésimo, por seu turno, deixa claro em seu novo livro que escrever histórias (mesmo que as chame de estórias) só não é melhor que contá-las, ao vivo, cara a cara com os seus ouvintes. De fato, num congresso acadêmico aqui e ali, já presenciei e admirei os extraordinários talentos do colega na hora de narrar uma boa anedota. Porém, as suas Aventuras de um nabogador não deixam pra menos. As crônicas ali reunidas registram, com rara destreza e para a posteridade, a idéia e o testemunho de que é possível ser professor universitário e viver uma vida repleta de... aventuras.

Mas que tipo de aventuras? São assédios de uma aluna ninfomaníaca, sabotagens a um programa de rádio salazarista, pane de um avião em vôo transatlântico, exploração às cegas de uma selva sul-americana, etc., etc. Depois de ler suas dozes crônicas e os comentários que as antecedem ou as sucedem (formando as partes de um sanduíche de letras), melhor seria perguntar: que aventura não nos conta esse senhor parcialmente embrenhado no mundo dos livros, palestras, e múltiplas formalidades universitárias?

Em resumo, o cronista nos faz rir das enroscadas mirabolantes de quem trabalha com muita gente e viaja extensivamente, do Maine à Tailândia, da República Dominicana aos Açores, da Califórnia à Colômbia, e de Porto Rico a Rhode Island. E se considerarmos os inúmeros livros que o narrador lê e discute com peculiar humor e perspicácia, como bom e apaixonado professor de literatura que deve ser o Onésimo-de-carne-e-osso, então os quatro cantos do mundo se tornam seu fundo de quintal. Nós, leitores, que nos tornamos acompanhantes em suas travessias e seus refúgios, não queremos parar de ler. Queremos mais, até mesmo do próprio “pão” de cada crônica, porque o texto que apresenta cada um dos textos principais pode ser a melhor parte desse sanduíche de letras. Diante de tais plausíveis afeições, o que posso recomendar é o seguinte: uma segunda leitura de toda a obra, pois assim o sabor do recheio só poderá nos aumentar o paladar do pão, e vice-versa. Posted by Picasa

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008


Livros-filhos e amigos
Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu

Um dia, finalmente, o filho nasce. É aquele nosso primeiro livro sonhado e suado ao longo de muitos anos. Não é uma emoção tão intensa e maravilhosa quanto a do nascimento de um ser humano, cuja cor da pele, dos cabelos ou dos olhos possa dizer ao resto do mundo, “sim, ele vem de você; ele tem você nas entranhas”. O primeiro livro que publicamos, porém, nos expõe, e muito, principalmente a nós mesmos. Os holofotes caem sobre nós e temos que lidar com nossas inseguranças em momentos de glória. Recebemos carinho de futuros leitores e de amigos. Melhor, ainda, é a atenção que vem de leitores que já se tornaram amigos através de nossos escritos anteriormente publicados, em jornais e revistas, por exemplo. São amigos que surgiram sem a proximidade física, mas, sim, através das idéias compartilhadas, da empatia simpática e fortificante que nos inspira a escrever mais e a querer dialogar mais, apesar da correria ou do cinismo do mundo atual.

Meu primeiro rebento em forma de livro nasceu em dezembro de 2002, quase dez anos depois de me tornar pai, de verdade. Chama-se Paisagens humanas: crônicas de Paraguaçu e desse mundo afora (Ed. Papiro). Crônicas redigidas num período de vinte um anos se uniram em meio a um misto de emoções e pressões profissionais. Por um lado, nossa família ainda vivia as dores da perda precoce de minha irmã Ana Beatriz. Nosso pai completaria 80 anos naquele fim de 2002 e talvez o lançamento de um livro de um filho seu lhe trouxesse alguma alegria, o que de fato lhe aconteceu.

Por outro lado, eu atravessava talvez o momento mais delicado e imponderável na carreira de um professor universitário: a hora de solicitar tenure (estabilidade empregatícia, como se diz no Brasil). A turbulência daqueles dias passou e restou uma assertiva sensação de que a edição da obra tinha valido a pena, pois meus pais se libertaram do seu pesar momentaneamente e aproveitaram com grande entusiasmo o nascimento do “livro-neto”. Foi uma senhora festa aquela no Vale das Pedras, belo restaurante às margens do rio Sapucaí, no Sul de Minas. Ademais, também fui bem sucedido no pedido de promoção acadêmica junto à administração da UMass Dartmouth.

Agora, recentemente, pude apreciar a experiência de outra pessoa se tornando “pai” literário. Era a vez de um conterrâneo, muito amigo e querido, Delson Ribeiro de Andrade. Ele acabava de lançar Mochilas: o relato de uma aventura hippie nos anos setenta (Ed. Página Aberta, 2007). O livro narra eventos da sua própria vida transcorridos na velha Europa. Comumente chamado de “Brother”, ele é irmão do importante escritor mineiro Jeferson de Andrade. É dessas pessoas alegres e carismáticas, com enorme talento para contar histórias, tal qual seu pai, o teatrólogo Donato de Andrade.

Despretensioso, mas cativante, o Mochilas parece que nos convida a uma mesa de bar, onde vamos ouvir de um amigo as inúmeras peripécias de dois jovens companheiros que, aos vinte e poucos anos, partem do Rio de Janeiro rumo a Lisboa, com passagem marítima só de ida e 120 dólares no bolso. Em muitos países daquele continente e também no exótico Marrocos, eles sobreviveriam por mais de ano às duras custas, colhendo frutas ou vendendo brincos nas ruas, por exemplo. Ao mesmo tempo, se divertiriam nas incessantes descobertas de novas culturas e línguas de um mundo proibitivo (de tão caro e distante) aos pobres e à classe média brasileira durante os anos de ditadura militar.

Eu que vivi boa parte da adolescência escutando os relatos do Brother em primeira mão, redescobri no prazer de ler seu livro algumas das razões pelas quais eu próprio saíra do meu país em 1981, também com pouco mais de vinte e um anos de idade, em viagem arrojada e libertária pelas Américas do Sul e do Norte. Desta feita eu passaria sete domingos consecutivos em sete países diferentes, do Brasil ao Canadá. Pois, assim é a vida de muitos livros: nascem de deslocamentos do nosso “eu” e da interrupção da nossa rotina. Inspiram sonhos de viajantes e de progenitores das letras, como um rebento que vira trigo e vira pão, para depois alimentar os sonhos de novos inquietos e novos aventureiros.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008



Velhos carnavais de Minas

Praça Oswaldo Costa,
Paraguaçu, MG, por D. Borim


Os carnavais de Minas, como os de outras regiões, têm os seus disparates. Lá homem adora se vestir de mulher, pobre se fantasia de rico, e pecado é santificado pelos jovens em praça pública. Será que todo ano Deus faz algum pacto com o diabo para valer somente quatro dias? Não creio, mas parece, porque é muito milagre para um santo só. Por conta de umas afinadas batidas de surdo (e de limão, claro), mais vale é habitar ou sonhar com um mundo onde a alegria e as alegorias de paz e cidadania são produzidas ou patrocinadas por incomparáveis artistas, incorrigíveis malandros e incrivelmente bem-intencionadas — e bem-humoradas! — autoridades.

Nos carnavais da década de 1970, a Prefeitura da minha pacata cidade natal, Paraguaçu, contava com uma legião de voluntários que organizavam dois desfiles de rua: um no domingo, e outro na terça-feira. Claro que tinha mais. Cada um dos três clubes da chamada Princesinha do Sul de Minas oferecia duas matinês para as crianças e quatro noitadas para os maiores de 14 anos. Conjuntos e orquestras tocavam ao vivo, das onze horas da noite às cinco da manhã. A estratificação da sociedade revelava-se, em parte, através dos próprios nomes das associações. Uma facção da classe trabalhadora ia para a Liga Operária; outra, de indivíduos menos sacrificados economicamente, freqüentava o Democrata; enquanto que a classe média mais abastada e a elite dançavam no Ideal Clube. Nas ruas, a espontaneidade era sempre uma das melhores características da Festa de Momo. Entre oito e meia-noite, os tímidos e os extrovertidos, bem como os cultos e os iletrados, saíam todos para a colorida Praça Oswaldo Costa, onde dançavam, bebiam e apreciavam a maluquice geral.
Outro aspecto divertido daquelas festas era que certas pessoas, normalmente sérias e reservadas, soltavam as rédeas. No espaço doméstico do Carnaval se permitia desfrutar as histórias que filhos, parentes e amigos contavam sob a inspiração maior do elemento alcoólico. Entre tira-gostos e goladas refrescantes, todos eram afetados de um modo ou de outro pelo bom-humor suspenso no ar.

É claro que nenhum show da Terra, bom ou ruim, deixa de ver o seu próprio fim, um dia. Então a Quarta-Feira de Cinzas nunca falhava, trazendo sempre fadiga e ressaca. Entre outras mudanças, era hora de voltar para o trabalho e para os estudos. Parentes, amigos e amantes se despediam sem muita alegria, vigor ou poesia. O silêncio profundo desde as sete da manhã era costumeiro, enquanto o sol naquele dia nacional da dor de cabeça seguia seu curso normal. Poucos seres adormecidos sequer ouviam os imensos sinos da Igreja Matriz anunciando dez horas, quando, de repente, ecoava, por toda a cidade, uma canção falando de anjos e pastores. Logo em seguida vinha um vozeirão:
“Anúncio: O Dr. Félix, oftalmologista de Varginha, estará atendendo a população de nossa cidade nesta quinta-feira...”

Viriam outros três ou quatro anúncios de propaganda e de serviços da Igreja, até que uma pausa se instaurasse. Mas durava pouco, pois outra melodia logo alcançava os cantos mais remotos da cidade. Desta feita o tom era bem mais lúgubre:

“Ave Maria, bla, bla, bla...”

Teria Franz Schubert terminado sua famosa peça sacra se soubesse que ela seria recebida nos Trópicos com tantos palavrões? Quando alguns foliões já tinham conseguido retornar ao sono, apesar do encanto melódico daquela obra clássica, voltava o vozeirão no alto-falante da Igreja Matriz:
“É com grande pesar que anunciamos o falecimento do sr. João de Deus, cujo corpo está sendo velado à rua...”
Para alguns revoltados, aquilo soava como um caso de injustiça divina. Paraguaçu não tinha uma estação de rádio, e a culpa recaía sobre os ombros — digo, os ouvidos — de infelizes bebuns e mocinhas namoradeiras. Mas, talvez fosse apenas a voz de Deus abrindo alas, ao som de um ária triste. Sua mensagem era, afinal, deveras realista:
“Cuidado, pessoal! O diabo do samba, do cigarro e da cachaça também mata. E nem tudo é Carnaval”.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

As grandes cidades

[Foto tirada por
D. Borim em 9/jan/08]

Londres não se esquece facilmente. Aliás, existem essas grandes e famosas cidades, mundo afora, que são mesmo muito grandes no nosso imaginário e nas nossas lembranças mais variadas. Um dia, muitos de nós temos a oportunidade conhecê-las pelos cheiros em geral, restaurantes, e pelos sons de automóveis, transeuntes e músicos de rua. Por exemplo, jamais hei de esquecer quando, em 1981, vi Nova Iorque pela primeira vez, em todo o seu esplendor urbano agressivo e mítico, com edifícios de uma altura a perder de vista, com suas luzes em neon restituindo-nos os sonhos dos filmes hollywoodianos e da modernidade.


No outro lado do Atlântico, e dez anos mais velho, encarei Paris. Seus maravilhosos museus, parques e cafés me faziam reviver clássicos da literatura, ou até mesmo anedotas de seus autores mais abusados, como a do inócuo e prosaico encontro entre James Joyce e Ernest Hemingway, do qual se esperavam conversas intelectuais de alto nível, mas o que veio foram conversas sobre pássaros, plantas domésticas, e coisas assim.
Era também a cidade onde moraram diversas celebridades de outras artes, tais como Heitor Villa-Lobos, que certa vez pintou todo o seu apartamento de vermelho (portas, paredes e tetos), apenas por ocasião de uma festa. Na Cidade das Luzes, lá estaria ele, também todo em vermelho, para que sua cabeça de gênio pudesse se destacar num ambiente seleto e requintado de compositores e pintores.


Nunca mais voltei àquela cidade, exceto por duas horas de ansiedade e sono que passei no aeroporto Charles de Gaulle, numa viagem rumo a Madri, ano e meio atrás. As perguntas e as declarações dos inspetores da imigração que ouvi ou pensei ouvir ora em francês apressado, ora em inglês rebocado de sotaque, não faziam referência alguma a um estranho e escandaloso cachorro que me perseguira pelas ruas daquela cidade, mais exatamente em torno do museu do Louvre, vinte e cinco anos atrás. O bicho queria fazer bobagem em cima das minhas coxas. Elas são (mentira, eram) bem constituídas, é verdade, mas naquele dia, principalmente, cheiravam aos perfumes de uma cadelinha no cio. Ela, coitadinha, sem culpa nenhuma, tinha se chocado contra minhas calças jeans dentro de um café, por ali mesmo, perto do famoso museu. Bom, passados tantos anos, ainda bem que o indelicado assunto de um cachorro parisiense em busca de umas coxas tropicais não veio à tona na minha entrevista com as autoridades locais. Não sei como teria reagido ao meu próprio embaraço.


Aquela visita a Madri e a outra visita que fiz à cidade de Lisboa dois anos antes sem dúvida mexeram comigo. Na capital castelhana, o deleite foi assistir a um jogo da Copa do Mundo de 2006 com 16 mil espanhóis, na Praça Zero Km. Em Portugal, acima de tudo, me vi inspirado e emocionado quando naveguei pelo rio Tejo, imaginando a chegada de tantos escritores luso-brasileiros por aquele porto ao longo séculos e séculos, amém. Também me comovi ao canto de uns belos fadistas em Alfama e ao presenciar um pouco do cotidiano no bairro da Mouraria, que nesse momento já vira crescer o gigante da música portuguesa contemporânea, Mariza. Entretanto, o encanto que senti na cidade de Londres na semana passada me surpreendeu ainda mais. É simplesmente apaixonante a agregação cultural no centro daquela capital anglo-saxônica. Dentro da área circunscrita por um quadrilátero de aproximadamente quatro quilômetros quadrados, meus olhos vislumbravam tantos teatros, parques e cafés, que estes me faziam caminhar, sem parar, para que nada me escapasse naquela visita de apenas dois dias e meio.


Apesar do vento, do frio, e da chuva recrudescente, a exuberância e magnitude das obras arquitetônicas em si mesmas—fossem elas góticas, georgianas, ou neoclássicas—já valiam o passeio. Para aumentar o prazer desse sul-americano extasiado pela arte e pela história de Londres, ainda sobrou tempo para ver uma peça no Teatro Novello, baseada na vida do grande escritor C. S. Lewis, e, imaginem, para prestigiar uma roda de samba profissional, bem chique, no Restaurante Guanabara—com direito ao som de cuíca a ao sabor de moqueca baiana. Nessas horas, viva a história antiga e viva a globalização!

sábado, 5 de janeiro de 2008

Brilho maior do Brasil

Há de se convir: sonhos não se tornam realidade a toda hora, em toda esquina. Pouco mais de seis anos atrás vi mais um de meus maiores anseios se realizar. Em 4 de dezembro, de 2001, dava início a meu primeiro programa de rádio e, confesso, não pude evitar certo soluço e uma pequena lágrima. Quase todos nós brasileiros sentimos uma dose de ansiedade por descobrir e valorizar nossa cultura. Essa busca pode se tornar ainda mais intensa ao morarmos no exterior.

[Foto: Rosa Passos na famosa Berklee School
of Music, em Boston, em 8/nov/07]

Para mim poucos elementos da cultura brasileira são tão maravilhosos e enobrecedores como a música. Portanto, ao me tornar um tipo de embaixador do nosso cancioneiro, não me contive e chorei como um Assis Valente talvez o fizesse se soubesse que sua música continua viva e valorizada em várias partes do mundo, em pleno século XXI. O meu programa Brazilliance era satisfação demais para um mineiro da pequena cidade de Paraguaçu, um saudoso das serestas, chorinhos e forrós, além dos inesquecíveis sambas e marchinhas de Carnaval, é claro.

Depois de dois meses de treinamento para poder operar o equipamento de rádio sozinho (como locutor e engenheiro de som), criei e lancei o Brazilliance, um programa semanal de três horas na antiga WSMU (hoje WUMD), uma rádio educativa da Universidade de Massachusetts Dartmouth. Enquanto estação de FM não-comercial, a missão da WUMD é informar, entreter, e oferecer música normalmente ignorada ou pouco apresentada pelas rádios comerciais. O nome do show vem do título de um álbum gravado em 1954 por Laurindo Almeida, um excepcional violonista paulista, e distintos nomes do jazz: o saxofonista Bud Shank, o baixista Harry Babasin e o baterista Roy Harte.

Laurindo de fato conhecia, tocava e mesclava magistralmente música clássica, jazz e música popular brasileira. Na década de 50, nos bares e auditórios do sul da Califórnia, Laurindo deixaria seus fãs atônitos ao tocar Chopin, Debussy e Ravel, por exemplo, em forma de jazz ou ao ritmo sincopado do samba. O astro do violão escreveu mais de mil composições originais, gravou mais de cem discos, e a maioria das suas partituras e discos está guardada na Biblioteca do Congresso em Washington, junto aos trabalhos de Bach, Brahms e Beethoven.

Brazilliance vem fazendo a sua história na Nova Inglaterra e no resto do planeta. Já que pode ser apreciado tanto aqui, pelas ondas de FM (89.3), como em todo o mundo, pela Internet (http://www.893wmud.org/), o programa tem fãs, por exemplo, em Rhode Island, Minnesota, Ceará, Rio de Janeiro, e Valência, na Espanha. Tenho regularmente recebido elogiosos e-mails (dborim@umassd.edu) e me sinto realizado na missão de levar aos quatro cantos do globo a sofisticada musicalidade tupiniquim. Brazilliance tem-se rodeado de alguns fatos curiosos. Membros de um grupo de músicos do Ceará, Os Argonautas, ouviam o programa, em Fortaleza, quando toquei algumas de suas canções. Imediatamente telefonaram e passaram a comemorar, aos pulos, a honra de serem tocados no exterior e para todo o mundo.

Outro caso paralelo à história do programa é que dois amigos meus, namorados há muitos anos, têm ligado ao mesmo tempo o rádio (ele, aqui em Massachusetts) e o computador (ela, na Espanha) para ouvir e curtir saudades mútuas ao som das mesmas canções que escolho a cada semana. Ouvintes assíduos, Rick Hogan e Blanca Rodriguez muitas vezes me mandam e-mails ou telefonam durante o show (508-999-8150), que é sempre transmitido às quintas-feiras, das 3 às 6 da tarde, horário do Leste dos Estado Unidos. Assim recebo, sem demoras, o apoio e o carinho de muitos ouvintes-amigos— lá mesmo na estação de rádio, onde, ao vivo, reúno e reflito um pouco do brilho maior desse Brasil que quando canta, nos encanta, um Brasil que ao mesmo tempo merece e nos embevece de tanto dom e amor pela música.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007



A brasileirinha
[Foto de Ian Borim]

Faz pouco mais de uma hora que uma sopa borbulha. Ingredientes, já os levou dos mais diversos. Assim espera pelo momento de lhe ser dito:

"Chegou sua hora, brasileirinha".
E olha que é mesmo canarinha. Como há tanta certeza assim? Tudo em volta a influencia. Pelo toca-fitas sobre a mesa não me vem o som de guitarra do Neil Young, nem a voz melodiosa do John Denver.
"Boemia, aqui me tens de regresso, e suplicando te peço, a minha nova inscrição. Voltei para rever os amigos..."

Esta é a canção de uma fita cassete que viera de Paraguaçu e que agora faz ecoar a voz grave de Nelson Gonçalves pelas paredes de meu apartamento. No subsolo de um prédio isolado e um tanto afastado do centro da cidade de Torrington, Wyoming, estes versos invadem o coração do cozinheiro solitário, provocando-lhe arrepios. Como um bom conterrâneo do ex-Carmo dos Tocos, ele sente, nesta noite, o que lhe pesa de saudade da família e dos amigos do peito após passar seus primeiros dez meses fora do país.

Aqui, ao extremo sudeste do estado, aos pés das Montanhas Rochosas, nem a neve que cobre ruas e telhados ou o frio de dezoito negativos me impedem de me sentir de volta. Este apartamento-república onde moro, é americano-brasileiro em uma razão de quatro pra um ao longo do ano letivo. Mas hoje, ele é só Brasil. Não há sequer uma voz em inglês por aqui, pois estou só desde o Natal. A calefação elétrica cuida do ambiente físico, simulando o calor do dezembro tropical. A minha mente, então, voa livre e sobre suas asas chego a Paraguaçu, Minas Gerais.

Recordo-me ainda que na manhã de hoje a saudade já parecia ensaiar um golpe sobre os meus sentimentos, o meu frágil equilíbrio. Voltando a pé para casa após a missa das 10 h., o frio de oito graus negativos fazia meus lábios arderem. Em meu caminho sobre passeios cobertos pela intensa neve que caíra nos últimos dias, passei a imaginar como poderia ser Paraguaçu, se situada no Hemisfério Norte, sujeita àquele vento e àquela nevasca de dezembro. De fato, a pequena comunidade de Torrington, com pouco mais de 5.000 habitantes, é formada por um povo gentil, mas lhe faltam muitas das características de leveza e descontração típicas do meu Sul de Minas.

Horas passadas desde o entardecer, ultimamente ocorrendo pelas quatro e quinze, é que cheguei à cozinha para preparar o jantar. Surgiu-me, então, uma idéia: vou buscar meu toca-fitas e colocar música brasileira no ar — assim cozinho alguma coisa e tento viver um sonho, uma noite de fim de ano no Brasil.
Desse modo venho ouvindo a seleção de canções que recebi de meus pais recentemente. Ao som de modinhas, boleros, e dos melhores sambas que conheço, alguns golos da última garrafinha de Lowenbrau me fazem engasgar. Já sei que o problema vem da mente absorta a viajar no tempo e no espaço, a me mandar de volta para o sabor das Brahmas geladas no Bar do Vatinho e nas antológicas festas realizadas num certo apartamento à Rua Ceará, em Belo Horizonte. Não havia nada a fazer, uma vez que já permitira que esses filmes da memória me deixassem ainda mais vulnerável à solidão e à saudade.
De repente alguém canta:

"Bate outra vez, com esperanças o meu coração, pois já vai terminando o verão, enfim".
Ah, meu querido Cartola, aí de cima no céu só você sabe o quanto as suas "rosas" sempre me inspiram e, agora, me emocionam e me levam para bem longe daqui.

A noite brasileira chega ao seu momento de máxima sublimação, para em seguida me oferecer o sabor do que, de fato, tenho ali, bem pertinho de mim, já à minha espera há um bom tempo. Feijão, cenouras, salsinhas, cebolas, pimentões, tomates, carne cozida e salsichas estão cansados do fogo brando. O apetite que me toma conta também vem dos trópicos; é quase igual àqueles antes das tradicionais e celebradas feijoadas de d. Lucci. Mas chega de saudade! Finalmente é chegada a hora da bóia:

"Vem cá, brasileirinha".
[Originalmente publicada n’A Voz da Cidade, de Paraguacu, em Fevereiro de 1982]

Mirem-se nas cenas de Atenas

                                                       A colina da Acrópole desde o Hostel Safestay (2025) Ei, senhor Chico Buarque de Holan...