quinta-feira, 10 de abril de 2008

Em Nova Orleãs, É uma BRASA, Mora?


Em Nova Orleãs, É uma BRASA, Mora?

Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu

Há grandes vantagens na carreira de professor universitário. Uma delas é participar de congressos em diversas partes do país e do estrangeiro. Boa parte de nossas despesas (senão quase todas elas) é paga pela instituição em que trabalhamos. Isto quer dizer que temos direito a certo tipo de “turismo intelectual” quase gratuito.

Os leitores desta crônica que viajam a negócios poderão dizer, “nós também”. Eu diria, pelo que sei, “não é bem assim”. Enquanto outros profissionais viajam sob pressão para “produzir resultados” e seguem uma agenda apertadíssima de cursos e negociações, nós, acadêmicos, vamos de encontro a ambientes descontraídos, habitados por pessoas contentes por estarem distantes das suas rotinas. Desta forma reveem velhos colegas de profissão e fazem novas amizades. E sempre há um tempinho para socialização (sessões de vinho e queijo, por exemplo, ou algo muito melhor).

Infelizmente nem todos os professores universitários, mesmo que tenham obtido seus PhDs da vida, têm esse tipo de privilégio. Milhares deles lutam para sobreviver lecionando em três ou quatro escolas que não lhes pagam o suficiente e nem lhes dão apoio para desenvolvimento profissional. Depois de tantos anos de estudo e tanto dinheiro gasto na educação, é lamentável submeter-se a tal penúria.

Bem, aonde quero chegar não é nenhum mar de lamúrias. Muito pelo contrário: quero compartilhar o deleite que foi minha recente viagem ao nono congresso internacional da BRASA (Associação de Estudos Brasileiros), entidade que agrega centenas de estudiosos de diversas disciplinas (da arquitetura ao cinema, da literatura à ciência política), todos voltados para o Brasil. Desta vez o encontro bi-anual se realizou em Nova Orleãs, cidade que ressuscitou das águas e dos escombros causados pelo furacão Katrina em mais um nefasto mês de agosto, o de 2005.

Devo dizer que o congresso foi mesmo uma verdadeira extravagância cultural. Em certos momentos 27 sessões com quatro ou cinco apresentadores aconteciam ao mesmo tempo. No total, eram centenas de pesquisadores reunidos. E como se debates acadêmicos não fossem o suficiente, ainda transcorriam sessões simultâneas com alguns dos melhores e mais recentes lançamentos do cinema brasileiro. E mais: no espaço de dois dias e três noites teríamos concertos de chorinho e jazz, além de rodas de samba e de capoeira.

Enquanto todas essas atividades acadêmico-culturais transcorriam nas salas e salões do belo campus da Universidade de Tulane, havia toda uma maravilhosa cidade a ser explorada.
Portanto, com maior ou menor disposição, quase todos (senão todos) os participantes do congresso escapariam pelo menos uma vez dos ares fechados da universidade. Era para dar uma olhada no French Quartier, o bairro francês tão apreciado pela música, principalmente jazz, blues, rock e cajun, e pela distinta arquitetura, com maravilhosos sobrados de estruturas metálicas entalhadas e varandas que nos convidam à paz e à descontração. Isso, é claro, sem falar no que denominei de “folclore da sacanagem”, a atitude carnavalesca de liberação sexual radical que dura o ano inteiro, sob o qual co-existem coloridos e alegres semi-prostíbulos e bares gays por todos os cantos.

Bom, e se isso tudo não fosse o bastante, há ainda centenas de outras opções em diferentes bairros ao redor do French Quartier. Em muitos destes, dizem, oferecem-se as verdadeiras jóias da cozinha e dos ritmos locais. Para um desses recantos me dirigi com três colegas da BRASA (Richard Gordon, Robert Moser, e Cristiano da Silva), na noite de sexta-feira, dia 28 de março, depois de muito bla-bla-blá intelectual. Apresentavam-se gigantes do jazz em uma casa bastante humilde e discreta, mas muito tradicional, o Donna’s. O clarinetista Evan Christopher e o pianista Tom McDermott já nos haviam dado arrepios de prazer estético quando, de repente, para um coração brasileiro, eles arrebentaram a boca do balão: tocaram delícias de um Pixinguinha, de um Abel Ferreira, e de um Ernesto Nazareth.

Era uma BRASA, mora, testemunhar o fantástico encontro do jazz e do blues de Nova Orleãs com o chorinho e o maxixe do Rio de Janeiro. Tudo se mesclava ali mesmo, onde as águas assassinas já tinham rolado como se fossem prenúncio do fim do mundo. Elas nem por isso teriam afogado o espírito harmonioso e viajante da arte, que não perdeu o barco de ida e de vinda, por mares distantes e rumo a tradições musicais nem tão dessemelhantes.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Terras estrangeiras




Terras
estrangeiras

Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu

Segundo o crítico Fernão Pessoa Ramos, há uma forte tendência no cinema brasileiro dos últimos treze anos: um tipo de acusação direcionada à nação como um todo, o grande vilão. Essa seria uma nação que se afoga num imundo mar de incompetência. Nossos cineastas contemporâneos, por seu turno, seriam navegadores cujo grande deleite é lavar nossa roupa suja diante de viajantes estrangeiros, principalmente aqueles trans-vestidos, na própria tela de cinema, com alguma indumentária e sobriedade a lhes outorgar autoridade moral (ou outro senso de superioridade) diante de sórdidos e ignóbeis terceiro-mundistas.

Ramos chama de “narcisismo às avessas” o conceito que toma emprestado do grande dramaturgo e cronista Nelson Rodrigues. Nos dias em que a seleção nacional de futebol não jogava bem, Rodrigues podia perceber que as vaias no Maracanã revelavam nossas “humilhações hereditárias”. Depois de muitas gerações sofrendo das mesmas frustrações e ansiedades, o ser brasileiro, escreve Rodrigues, “virou o seu narcisismo pelo avesso”, passando a cuspir “na sua própria imagem”.

O efeito daquele tipo de cinema a expor tão exaustiva e implacavelmente os podres poderes e fatais inaptidões de uma nação seria uma espécie de catarse, como os gritos no estádio de futebol. Através dessa catarse, no escurinho do cinema, o espectador podia se sentir melhor: ficava com pena, mas se afastava daquela repugnante realidade retratada pelo cineasta.

Com o filme Terra estrangeira, de 1995, os diretores Walter Salles e Daniela Thomas dão tremendo fôlego à recuperação do cinema nacional depois de cinco anos de um marasmo quase completo, herança nefasta do governo Fernando Colllor. Entretanto, além da crise política e econômica brasileira dos anos 80 e início dos 90, inevitáveis descaminhos no mundo do crime em Portugal compelem a protagonista de 28 anos, Alex, a refletir sobre a sua profunda decepção com a vida no “eterno país do futuro”. Tal sentimento, discute o crítico José Carlos Avellar, era compartilhado por milhares de jovens da classe média brasileira no início dos anos 90: “a sensação de se fazer parte de um país que não presta, de não se ter raiz nem identidade, de se viver em sua própria terra como se essa fosse uma terra estrangeira”.

Terra estrangeira, porém, deve permanecer excluído à síntese que Ramos aplica à produção cinematográfica do período de “retomada” do cinema nacional. Primeiro, vemos que a crítica social ao Brasil não é extensiva, impiedosa ou recalcitrante. Em seguida, constata-se que a imagem de Brasil terra-mãe-não-gentil é ali diluída pelas imagens muito mais problemáticas de outro país: um Portugal velho e inóspito, incapaz e indisposto a absorver os imigrantes vindos de países dos quais Lisboa tanto sugou recursos naturais e divisas comerciais enquanto metrópole imperial, e para os quais mandou, até 50 anos atrás, milhões de emigrantes. Numa terceira reflexão, aponta-se a ausência daquela típica personagem que representasse a autoridade estrangeira, emoldurando e ratificando a incompetência brasileira. Finalmente, a sensação que se tem ao assistir Terra estrangeira é a de que os realizadores da obra (nesse sentido, produtores, diretores e artistas) não objetivam o distanciamento entre a platéia e o universo dramatizado na tela.

Portanto, Salles e Thomas não configuram o tal narcisismo às avessas, cujo objetivo seria fazer com que o povo brasileiro despedaçasse sua auto-imagem para então se sentir mais distante do seu país de origem, ainda que lá mesmo continuasse residindo. O que temos neste belo filme, tão rico em simbolismos imagéticos quanto poético e pungente nos seus diálogos é, em particular, um drama sobre a imigração e a emigração entre o Brasil, Portugal, e Espanha (para onde fogem os protagonistas). Em um sentido mais amplo, vislumbra-se um estudo das inusitadas contingências e das típicas maledicências da vida no exterior. Discutem-se, pois, com o devido respeito, a imigração penosa e a complexidade quase sem fim da vida em terras estrangeiras, essas terras-mães nem sempre gentis para com seus filhos legítimos e ilegítimos que, por ora ou por gerações, se encontram destituídos de emprego, esperança e auto-estima.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Blogs

Quem tem medo dos blogs?

Dário Borim Jr. (dborim@umassd.edu
)

[Foto de Rick e Blanca, dois amantes dos blogs]

O título desta crônica tem um “que” de brincadeira, é claro. Afinal de contas, os blogs que habitam a grande rede de comunicação virtual não ameaçam nem escondem quaisquer armadilhas para nós, que até ontem éramos mortais. (Agora, com os blogs gratuitos, todos nós podemos virar imortais!)

Mas para que servem os blogs? Melhor seria perguntar: para que não servem os blogs? O indivíduo hoje pode ler uma notícia de jornal online e imediatamente mandar um comentário sobre ela, comentário que é publicado em segundos no próprio jornal. Mas os blogs servem a muitos propósitos. Professores, por exemplo, criam blogs para seus cursos com documentos que os alunos poderão acessar a qualquer momento.

Não faz muito tempo que eu mesmo passei a me interessar pelos blogs. Depois criei coragem para tentar estabelecer o meu próprio, através do portal totalmente gratuito, o Blogger:
http://www.blogspot.com/. Descobri que não era preciso obter um diploma do MIT para se ter uma página interativa na internet. Achei o processo bastante simples. Daí nasceu o Ponteio Cultural das minhas crônicas online: http://www.drborim.blogspot.com/.

Bom, um dos mais gratificantes aspectos da amizade é querer e poder compartilhar com amigos as nossas conquistas. Então, quando pude, convidei alguns deles a ver o quanto era fácil criar um blog e quanta satisfação era possível dele extrair. Primeiro me seguiu o conselho uma grandíssima amiga paulista, Wania Ribeiro*, que hoje publica seus belos poemas – como e quando bem entende, mas sempre para o grande deleite de seus alunos e amigos. Outro companheiro escolhido foi Rick Hogan, professor de filosofia que se aposentou da UMass Dartmouth alguns anos atrás. E não é que o Riquinho se tornou um grande fanático pelas liberdades e aventuras de se ter um blog?

Hoje, menos de cinco semanas depois de iniciar o seu blog, meu amigo Rick* já é capaz de fazer ali mil maravilhas. São centenas de páginas narrando viagens acumuladas ao longo de mais de quatro décadas pelos quatro cantos do globo, da África do Sul ao Tibete, ou do Egito à Patagônia. Ademais, nos deliciamos com centenas de fotografias – e até mesmo alguns de seus estudos filosóficos sobre Nietzsche (e outros mestres do pensamento) – também publicados ali. Sua paixão pelos blogs logo se estendeu a sua esposa, Blanca Rodriguez*, que se encontrava escrevendo um livro de receitas espanholas. Ela então passou a compor o seu próprio blog com todas aquelas apetitosas opções culinárias para milhares de mestres-cucas um dia experimentar.

É bom lembrar que quando lidamos com a internet e computadores em geral, nós, pessoas com mais de 40 anos de idade, não somos tão espertos quanto nossos filhos, cuja maioria nunca viu uma máquina de datilografia. Então é preciso ter paciência, porque inevitavelmente serão cometidos alguns erros no aprendizado. O importante é não perder a paciência e manter a perseverança. Quando eu mesmo ajudava Rick a criar o seu blog, de algum modo misturamos os códigos de identificação e personalização. Por quase uma hora nossas identidades estiveram cruzadas na grande rede. Quando Rick tentava abrir o seu blog (para desenvolvê-lo), caía logo no meu. E eu, quando tentava alterar algo no meu próprio blog, de repente me via diante da página ainda deserta do blog do meu amigo.

Não sei se os desvios foram efeitos de uns copos de vinho tinto. Mas o fato é que se devem controlar os nervos nessas horas, porque quase tudo se resolve na grande rede quando é mantida a calma e a graça. Sem desespero, somente um pouco de medo, Rick e eu logramos separar nossas identidades. A partir daí seus olhos adquiriram novo brilho e não houve mais limite para o seu prazer de publicar e imortalizar histórias e imagens de sua incrível jornada por esse largo e lascado planeta Terra.

*Wania Ribeiro’s Blog, Frutos do Coração: http://www.wboscariol.blogspot.com/
Rick’s Blog:
http://www.rhogan-ricksblog.blogspot.com/
Blog de Blanca:
http://blanca-blancarodriguezm.blogspot.com/




quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008




Sanduíches de letras

Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu

O que é que dá prazer à vida? Para alguns de nós, a lista é enorme. Para outros, nem tanto. Para terceiros, como alguns de meus conterrâneos, a resposta é muito simples: viver, sem querer viajar ou o que buscar fora do ninho. E não há nada de errado nisso, é claro, porque... bem, porque o que lhes dá prazer está ali mesmo, na cidade, bairro ou vilarejo onde moram: é a candura do convívio com parentes e amigos, em que não faltam boas anedotas, saborosas comidinhas, cerveja bem gelada, telenovela, ou futebol, e assim se vai levando a vida. Mas Paraguaçu, provavelmente como quase todas as cidades pequenas do mundo, também tem filhos radicados bem longe dali. Muitos de nós saímos por necessidades várias, mas principalmente por querermos melhores escolas ou melhores empregos. Alguns também se deixam levar por aventuras, como eu mesmo e meu colega de profissão e lazer, o professor Onésimo Teotónio Almeida, natural da ilha de São Miguel, dos Açores, que lançou recentemente mais um livro: Aventuras de um nabogador & outras estórias-em-sanduíches (Bertrand 2007).

Nossa profissão nos conduz a estudos muito sérios, acadêmicos que somos, com o objetivo de questionar e explicar livros e outros escritos. Acredito, entretanto, que, como eu, Onésimo também se veja longe de uma dedicação exclusiva a essa ocupação. No meu caso, em particular, fiz questão de colocar meu gosto pela escrita criativa no cerne de minha formação acadêmica. Graças ao reconhecimento dado ao creative writing no sistema universitário norte-americano, foi-me possível obter um de meus dois títulos de mestre nessa área. E por quê? Porque escrever histórias (sejam elas “reais” ou “inventadas”) me traz um enorme prazer. Onésimo, por seu turno, deixa claro em seu novo livro que escrever histórias (mesmo que as chame de estórias) só não é melhor que contá-las, ao vivo, cara a cara com os seus ouvintes. De fato, num congresso acadêmico aqui e ali, já presenciei e admirei os extraordinários talentos do colega na hora de narrar uma boa anedota. Porém, as suas Aventuras de um nabogador não deixam pra menos. As crônicas ali reunidas registram, com rara destreza e para a posteridade, a idéia e o testemunho de que é possível ser professor universitário e viver uma vida repleta de... aventuras.

Mas que tipo de aventuras? São assédios de uma aluna ninfomaníaca, sabotagens a um programa de rádio salazarista, pane de um avião em vôo transatlântico, exploração às cegas de uma selva sul-americana, etc., etc. Depois de ler suas dozes crônicas e os comentários que as antecedem ou as sucedem (formando as partes de um sanduíche de letras), melhor seria perguntar: que aventura não nos conta esse senhor parcialmente embrenhado no mundo dos livros, palestras, e múltiplas formalidades universitárias?

Em resumo, o cronista nos faz rir das enroscadas mirabolantes de quem trabalha com muita gente e viaja extensivamente, do Maine à Tailândia, da República Dominicana aos Açores, da Califórnia à Colômbia, e de Porto Rico a Rhode Island. E se considerarmos os inúmeros livros que o narrador lê e discute com peculiar humor e perspicácia, como bom e apaixonado professor de literatura que deve ser o Onésimo-de-carne-e-osso, então os quatro cantos do mundo se tornam seu fundo de quintal. Nós, leitores, que nos tornamos acompanhantes em suas travessias e seus refúgios, não queremos parar de ler. Queremos mais, até mesmo do próprio “pão” de cada crônica, porque o texto que apresenta cada um dos textos principais pode ser a melhor parte desse sanduíche de letras. Diante de tais plausíveis afeições, o que posso recomendar é o seguinte: uma segunda leitura de toda a obra, pois assim o sabor do recheio só poderá nos aumentar o paladar do pão, e vice-versa. Posted by Picasa

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008


Livros-filhos e amigos
Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu

Um dia, finalmente, o filho nasce. É aquele nosso primeiro livro sonhado e suado ao longo de muitos anos. Não é uma emoção tão intensa e maravilhosa quanto a do nascimento de um ser humano, cuja cor da pele, dos cabelos ou dos olhos possa dizer ao resto do mundo, “sim, ele vem de você; ele tem você nas entranhas”. O primeiro livro que publicamos, porém, nos expõe, e muito, principalmente a nós mesmos. Os holofotes caem sobre nós e temos que lidar com nossas inseguranças em momentos de glória. Recebemos carinho de futuros leitores e de amigos. Melhor, ainda, é a atenção que vem de leitores que já se tornaram amigos através de nossos escritos anteriormente publicados, em jornais e revistas, por exemplo. São amigos que surgiram sem a proximidade física, mas, sim, através das idéias compartilhadas, da empatia simpática e fortificante que nos inspira a escrever mais e a querer dialogar mais, apesar da correria ou do cinismo do mundo atual.

Meu primeiro rebento em forma de livro nasceu em dezembro de 2002, quase dez anos depois de me tornar pai, de verdade. Chama-se Paisagens humanas: crônicas de Paraguaçu e desse mundo afora (Ed. Papiro). Crônicas redigidas num período de vinte um anos se uniram em meio a um misto de emoções e pressões profissionais. Por um lado, nossa família ainda vivia as dores da perda precoce de minha irmã Ana Beatriz. Nosso pai completaria 80 anos naquele fim de 2002 e talvez o lançamento de um livro de um filho seu lhe trouxesse alguma alegria, o que de fato lhe aconteceu.

Por outro lado, eu atravessava talvez o momento mais delicado e imponderável na carreira de um professor universitário: a hora de solicitar tenure (estabilidade empregatícia, como se diz no Brasil). A turbulência daqueles dias passou e restou uma assertiva sensação de que a edição da obra tinha valido a pena, pois meus pais se libertaram do seu pesar momentaneamente e aproveitaram com grande entusiasmo o nascimento do “livro-neto”. Foi uma senhora festa aquela no Vale das Pedras, belo restaurante às margens do rio Sapucaí, no Sul de Minas. Ademais, também fui bem sucedido no pedido de promoção acadêmica junto à administração da UMass Dartmouth.

Agora, recentemente, pude apreciar a experiência de outra pessoa se tornando “pai” literário. Era a vez de um conterrâneo, muito amigo e querido, Delson Ribeiro de Andrade. Ele acabava de lançar Mochilas: o relato de uma aventura hippie nos anos setenta (Ed. Página Aberta, 2007). O livro narra eventos da sua própria vida transcorridos na velha Europa. Comumente chamado de “Brother”, ele é irmão do importante escritor mineiro Jeferson de Andrade. É dessas pessoas alegres e carismáticas, com enorme talento para contar histórias, tal qual seu pai, o teatrólogo Donato de Andrade.

Despretensioso, mas cativante, o Mochilas parece que nos convida a uma mesa de bar, onde vamos ouvir de um amigo as inúmeras peripécias de dois jovens companheiros que, aos vinte e poucos anos, partem do Rio de Janeiro rumo a Lisboa, com passagem marítima só de ida e 120 dólares no bolso. Em muitos países daquele continente e também no exótico Marrocos, eles sobreviveriam por mais de ano às duras custas, colhendo frutas ou vendendo brincos nas ruas, por exemplo. Ao mesmo tempo, se divertiriam nas incessantes descobertas de novas culturas e línguas de um mundo proibitivo (de tão caro e distante) aos pobres e à classe média brasileira durante os anos de ditadura militar.

Eu que vivi boa parte da adolescência escutando os relatos do Brother em primeira mão, redescobri no prazer de ler seu livro algumas das razões pelas quais eu próprio saíra do meu país em 1981, também com pouco mais de vinte e um anos de idade, em viagem arrojada e libertária pelas Américas do Sul e do Norte. Desta feita eu passaria sete domingos consecutivos em sete países diferentes, do Brasil ao Canadá. Pois, assim é a vida de muitos livros: nascem de deslocamentos do nosso “eu” e da interrupção da nossa rotina. Inspiram sonhos de viajantes e de progenitores das letras, como um rebento que vira trigo e vira pão, para depois alimentar os sonhos de novos inquietos e novos aventureiros.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008



Velhos carnavais de Minas

Praça Oswaldo Costa,
Paraguaçu, MG, por D. Borim


Os carnavais de Minas, como os de outras regiões, têm os seus disparates. Lá homem adora se vestir de mulher, pobre se fantasia de rico, e pecado é santificado pelos jovens em praça pública. Será que todo ano Deus faz algum pacto com o diabo para valer somente quatro dias? Não creio, mas parece, porque é muito milagre para um santo só. Por conta de umas afinadas batidas de surdo (e de limão, claro), mais vale é habitar ou sonhar com um mundo onde a alegria e as alegorias de paz e cidadania são produzidas ou patrocinadas por incomparáveis artistas, incorrigíveis malandros e incrivelmente bem-intencionadas — e bem-humoradas! — autoridades.

Nos carnavais da década de 1970, a Prefeitura da minha pacata cidade natal, Paraguaçu, contava com uma legião de voluntários que organizavam dois desfiles de rua: um no domingo, e outro na terça-feira. Claro que tinha mais. Cada um dos três clubes da chamada Princesinha do Sul de Minas oferecia duas matinês para as crianças e quatro noitadas para os maiores de 14 anos. Conjuntos e orquestras tocavam ao vivo, das onze horas da noite às cinco da manhã. A estratificação da sociedade revelava-se, em parte, através dos próprios nomes das associações. Uma facção da classe trabalhadora ia para a Liga Operária; outra, de indivíduos menos sacrificados economicamente, freqüentava o Democrata; enquanto que a classe média mais abastada e a elite dançavam no Ideal Clube. Nas ruas, a espontaneidade era sempre uma das melhores características da Festa de Momo. Entre oito e meia-noite, os tímidos e os extrovertidos, bem como os cultos e os iletrados, saíam todos para a colorida Praça Oswaldo Costa, onde dançavam, bebiam e apreciavam a maluquice geral.
Outro aspecto divertido daquelas festas era que certas pessoas, normalmente sérias e reservadas, soltavam as rédeas. No espaço doméstico do Carnaval se permitia desfrutar as histórias que filhos, parentes e amigos contavam sob a inspiração maior do elemento alcoólico. Entre tira-gostos e goladas refrescantes, todos eram afetados de um modo ou de outro pelo bom-humor suspenso no ar.

É claro que nenhum show da Terra, bom ou ruim, deixa de ver o seu próprio fim, um dia. Então a Quarta-Feira de Cinzas nunca falhava, trazendo sempre fadiga e ressaca. Entre outras mudanças, era hora de voltar para o trabalho e para os estudos. Parentes, amigos e amantes se despediam sem muita alegria, vigor ou poesia. O silêncio profundo desde as sete da manhã era costumeiro, enquanto o sol naquele dia nacional da dor de cabeça seguia seu curso normal. Poucos seres adormecidos sequer ouviam os imensos sinos da Igreja Matriz anunciando dez horas, quando, de repente, ecoava, por toda a cidade, uma canção falando de anjos e pastores. Logo em seguida vinha um vozeirão:
“Anúncio: O Dr. Félix, oftalmologista de Varginha, estará atendendo a população de nossa cidade nesta quinta-feira...”

Viriam outros três ou quatro anúncios de propaganda e de serviços da Igreja, até que uma pausa se instaurasse. Mas durava pouco, pois outra melodia logo alcançava os cantos mais remotos da cidade. Desta feita o tom era bem mais lúgubre:

“Ave Maria, bla, bla, bla...”

Teria Franz Schubert terminado sua famosa peça sacra se soubesse que ela seria recebida nos Trópicos com tantos palavrões? Quando alguns foliões já tinham conseguido retornar ao sono, apesar do encanto melódico daquela obra clássica, voltava o vozeirão no alto-falante da Igreja Matriz:
“É com grande pesar que anunciamos o falecimento do sr. João de Deus, cujo corpo está sendo velado à rua...”
Para alguns revoltados, aquilo soava como um caso de injustiça divina. Paraguaçu não tinha uma estação de rádio, e a culpa recaía sobre os ombros — digo, os ouvidos — de infelizes bebuns e mocinhas namoradeiras. Mas, talvez fosse apenas a voz de Deus abrindo alas, ao som de um ária triste. Sua mensagem era, afinal, deveras realista:
“Cuidado, pessoal! O diabo do samba, do cigarro e da cachaça também mata. E nem tudo é Carnaval”.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

As grandes cidades

[Foto tirada por
D. Borim em 9/jan/08]

Londres não se esquece facilmente. Aliás, existem essas grandes e famosas cidades, mundo afora, que são mesmo muito grandes no nosso imaginário e nas nossas lembranças mais variadas. Um dia, muitos de nós temos a oportunidade conhecê-las pelos cheiros em geral, restaurantes, e pelos sons de automóveis, transeuntes e músicos de rua. Por exemplo, jamais hei de esquecer quando, em 1981, vi Nova Iorque pela primeira vez, em todo o seu esplendor urbano agressivo e mítico, com edifícios de uma altura a perder de vista, com suas luzes em neon restituindo-nos os sonhos dos filmes hollywoodianos e da modernidade.


No outro lado do Atlântico, e dez anos mais velho, encarei Paris. Seus maravilhosos museus, parques e cafés me faziam reviver clássicos da literatura, ou até mesmo anedotas de seus autores mais abusados, como a do inócuo e prosaico encontro entre James Joyce e Ernest Hemingway, do qual se esperavam conversas intelectuais de alto nível, mas o que veio foram conversas sobre pássaros, plantas domésticas, e coisas assim.
Era também a cidade onde moraram diversas celebridades de outras artes, tais como Heitor Villa-Lobos, que certa vez pintou todo o seu apartamento de vermelho (portas, paredes e tetos), apenas por ocasião de uma festa. Na Cidade das Luzes, lá estaria ele, também todo em vermelho, para que sua cabeça de gênio pudesse se destacar num ambiente seleto e requintado de compositores e pintores.


Nunca mais voltei àquela cidade, exceto por duas horas de ansiedade e sono que passei no aeroporto Charles de Gaulle, numa viagem rumo a Madri, ano e meio atrás. As perguntas e as declarações dos inspetores da imigração que ouvi ou pensei ouvir ora em francês apressado, ora em inglês rebocado de sotaque, não faziam referência alguma a um estranho e escandaloso cachorro que me perseguira pelas ruas daquela cidade, mais exatamente em torno do museu do Louvre, vinte e cinco anos atrás. O bicho queria fazer bobagem em cima das minhas coxas. Elas são (mentira, eram) bem constituídas, é verdade, mas naquele dia, principalmente, cheiravam aos perfumes de uma cadelinha no cio. Ela, coitadinha, sem culpa nenhuma, tinha se chocado contra minhas calças jeans dentro de um café, por ali mesmo, perto do famoso museu. Bom, passados tantos anos, ainda bem que o indelicado assunto de um cachorro parisiense em busca de umas coxas tropicais não veio à tona na minha entrevista com as autoridades locais. Não sei como teria reagido ao meu próprio embaraço.


Aquela visita a Madri e a outra visita que fiz à cidade de Lisboa dois anos antes sem dúvida mexeram comigo. Na capital castelhana, o deleite foi assistir a um jogo da Copa do Mundo de 2006 com 16 mil espanhóis, na Praça Zero Km. Em Portugal, acima de tudo, me vi inspirado e emocionado quando naveguei pelo rio Tejo, imaginando a chegada de tantos escritores luso-brasileiros por aquele porto ao longo séculos e séculos, amém. Também me comovi ao canto de uns belos fadistas em Alfama e ao presenciar um pouco do cotidiano no bairro da Mouraria, que nesse momento já vira crescer o gigante da música portuguesa contemporânea, Mariza. Entretanto, o encanto que senti na cidade de Londres na semana passada me surpreendeu ainda mais. É simplesmente apaixonante a agregação cultural no centro daquela capital anglo-saxônica. Dentro da área circunscrita por um quadrilátero de aproximadamente quatro quilômetros quadrados, meus olhos vislumbravam tantos teatros, parques e cafés, que estes me faziam caminhar, sem parar, para que nada me escapasse naquela visita de apenas dois dias e meio.


Apesar do vento, do frio, e da chuva recrudescente, a exuberância e magnitude das obras arquitetônicas em si mesmas—fossem elas góticas, georgianas, ou neoclássicas—já valiam o passeio. Para aumentar o prazer desse sul-americano extasiado pela arte e pela história de Londres, ainda sobrou tempo para ver uma peça no Teatro Novello, baseada na vida do grande escritor C. S. Lewis, e, imaginem, para prestigiar uma roda de samba profissional, bem chique, no Restaurante Guanabara—com direito ao som de cuíca a ao sabor de moqueca baiana. Nessas horas, viva a história antiga e viva a globalização!

Mirem-se nas cenas de Atenas

                                                       A colina da Acrópole desde o Hostel Safestay (2025) Ei, senhor Chico Buarque de Holan...