sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Enchentes, falências e batucadas

Enchentes, falências e batucadas

 

Dário Borim Jr. 

dborim@umassd.edu

Em um de seus mais engraçados e legendários sambas, “E o mundo não se acabou”, o irreverente Assis Valente (1911-1958) ironiza o medo do povo diante da suposta destruição do mundo. Carmen Miranda foi quem primeiro gravou essa canção em 1938, portanto há pouco mais de setenta anos. Nas mentes de milhões de pessoas, a aflição tinha surgido por conta da aproximação e possível colisão do cometa Halley com o planeta Terra. Assim escreve o cantor-compositor nascido sobre as areias quentes de uma praia baiana: “Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar / Por causa disto a minha gente lá em casa começou a rezar / Até disseram que o sol ia nascer antes da madrugada / Por causa disto nesta noite lá no morro não se fez batucada”.

Nesse quase incrível fim de ano, não tem havido muita batucada na Terra do Tio Sam. Uma nova desgraça em pleno mês de setembro começou a furar e queimar os tesouros dos cofres eletrônicos de Wall Street – exatamente sete anos depois dos covardes ataques terroristas matarem milhares de inocentes de muitas nacionalidades e etnias. Desta vez houve uma implosão de bombas globalizadas e pós-modernas que vêm atingindo as bolsas de valores do mundo inteiro. Dão término a empregos e à paz de trabalhadores que nada têm com o que está acontecendo, a não ser as funções de “operários alienados” e consumidores de bens manufaturados.

Na verdade, a melhor metáfora para uma das causas primordiais desse pandemônio transnacional talvez seja a da bolha. Antes de arrebentar a bolha do mercado imobiliário foi crescendo e fazendo crescer a especulação financeira em plena era do dinheiro virtual, dinheiro que não existe enquanto cédula e que não corresponde às antigas barras de ouro. É dinheiro que percorre milhões de quilômetros em forma de bits informáticos por meio de cabos, internet sem fio e telas de computador antes de fabricar poucos bilionários e muitos subempregados ou desempregados. É dinheiro embalado em forma de títulos financeiros de investimento em ações virtuais de compra e venda daquilo que não existe fora dos circuitos eletrônicos de comércio.

Sem ligação com os homens ricos e poderosos, a voz (talvez de mulher) inventada por Assis Valente narra sua própria história fictícia, dramatizando suas reações nem um pouco desatinadas àquele anúncio apocalíptico: ela quer se divertir como nunca antes. Ela, na verdade, não quer perder uma oportunidade sequer nesse planeta antes que ele se torne um gigante cemitério: “Acreditei nessa conversa mole / Pensei que o mundo ia se acabar / E fui tratando de me despedir / E sem demora fui tratando de aproveitar / Beijei a boca de quem não devia / Peguei na mão de quem não conhecia / Dancei um samba em traje de maiô / E o tal do mundo não se acabou”.

Quem bom seria que se por somente uns dias as pessoas pudessem pôr de lado seu medo e insatisfação diante desse mundo explosivo no Iraque; sangrento na Índia; nuclear no Paquistão; retirante, doente e esfomeado na África; alagado em Santa Catarina, e falido nos Estados Unidos! Por outro lado, vale também refletir sobre plausíveis reações diante de novos rumores apocalípticos. Seriam tantos os focos de apreensão no mundo atual que, de tão preponderantes, já não há nem mais espaço nas mentes para se temer o fim do mundo?

A personagem de Assis Valente não se abateu. Muito pelo contrário: “Peguei um gajo com quem não me dava / E perdoei a sua ingratidão / E festejando o acontecimento / Gastei com ele mais de quinhentão.” Isso foi antes da persona saber do engano geral do povo, do falso final da vida na Terra. Era tarde. Já tinha jogado fora muito dinheiro e posto de lado qualquer inibição: “Agora soube que o gajo anda / Dizendo coisa que não se passou / Ih, vai ter barulho e vai ter confusão / Porque o mundo não se acabou”.

A questão é que mesmo diante dos barrancos caindo no ul do Brasil e do número de bancarrotas subindo a cada momento nos Estados Unidos, não se teme o fim do mundo. Há, porém, grande receio de não podermos nem honrar nossas contas nem oferecer a nossos queridos o conforto que merecem. Apesar disso, sou contra o que se tem feito neste país, os Estados Unidos: o cancelamento de milhares de festas e recepções de fim de ano. O mundo não vai se acabar (e ninguém fala disso por enquanto), mas, quem sabe, uma boa batucada (ou sessão jazzística, como queiram) não seja a saída para essa dor geral diante dos barrancos deslizantes e das bancarrotas avassaladoras? A vida tem que continuar, e deixem o povo falar o que quiser. O que importa é valorizar o que temos – fé na vida e potencial para nos adaptarmos a novas vidas, se possível, ao som de uma cuíca de chorar intenso ou de um saxofone cantador de galo. Como diz Manoel Bandeira, “A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.”


terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Esquiar ou nao esquiar?




Dário Borim Jr.


dborim@umassd.edu



A pergunta inscrita no título desta crônica é superficialmente filosófica, no que se parece vagamente com a dúvida cruel do personagem shakespeariano Hamlet: “Ser ou não ser, eis a questão”. Minha resposta hoje à noite, num quarto de hotel com decoração bem britânica, na cidadezinha de Woodstock, estado de New Hampshire, é: “Não esquiar”. Minha posição é menos filosófica do que pragmática. Poderia ser diferente, pois me encontro aqui junto à bela estação de esqui chamada Loon Mountain para acompanhar meu filho Zach, de 13 anos. Enquanto que ele é um esquiador nato (pois nasceu na gelada Minnesota), eu não me iludo: com quase 50 anos de idade e quase cem quilos de peso, para mim não é hora de brincar com fogo—ou com neve e gelo, pra ser mais preciso.

Minha necessidade de perder peso é evidente. Além disso, a chance de praticar um esporte tão gostoso em lugar tão esplendoroso nas Montanhas Brancas da Nova Inglaterra é tentadora. Entretanto, tenho medo de me machucar por estar distante dos esquis há muitos anos, por já não ser mais jovem e, principalmente, por estar tão acentuadamente fora de forma. Advertências em tom crítico por parte do meu médico agora me ecoam na mente: “Sr. Dário Borim, o senhor é um bem sucedido professor universitário que precisa ter disciplina em outras áreas além da literatura e da música: comer menos e exercitar mais.” Caramba, tem razão o Dr. Altschuller, um cardiologista russo formado em Harvard. Só que não vai ser hoje que vou me empenhar, o que poderia me ajudar perder uns quilinhos e, quem sabe, aumentar minhas chances de viver uma vida mais longa e mais saudável.

Quando morei no oeste montanhoso do país, no Wyoming, as estações de esqui de lá e do estado vizinho, o Colorado, me encantavam. Eu admirava o alto astral das pessoas—sempre a sorrir e sempre a mostrar sua satisfação em percorrer trilhas íngremes apesar do vento frio. Pra ser honesto, devo dizer que este esquiador tropical naquela época de vez em quando caía dos esquis e até daquelas cadeirinhas dos teleféricos que nos levavam aos picos dos morros. Entretanto, com entusiasmo e determinação cheguei de fato a atingir o nível intermediário de habilidade, o que me proporcionava oportunidades inesquecíveis de subir até pontos bastante altos das Montanhas Rochosas.

A vista do cume da montanha era memorável: incluía lagos azul-turquesa, pinheiros de um verde forte e coeso, rochas e chapadões em variados tons acinzentados, e o distinto contraste entre o branco da neve e o azul do céu. Contribuindo para esse festival de cores naturais ainda havia o efeito espetacular das roupas e gorros coloridos dos esquiadores, além do recorrente reflexo de luz solar que advinha dos próprios esquis e hastes de aço. Tudo valia a pena ver lá de cima, desde os momentos que antecediam à descida paulatina e cuidadosa, em curva e em ziguezague, até o fim da trilhas sobre a encosta do morro acobertado de neve fofa e reluzente.

Pois é, os esportes são importantíssimos em todas as fases da vida. Depois de certa idade, acredito eu, eles continuam importantes, mas têm que ser dosados e, acima de tudo, levados a sério como fatores de risco. Nossos corpos já não são mais os mesmos, e seria um erro sobre-estimar nossas capacidades físicas somente para que pudéssemos manter o orgulho intacto. Já perdi dois amigos brasileiros, na faixa dos quarenta e poucos anos de idade, que me fizeram pensar nessa questão. Ambos faleceram em função de certo abuso nos esportes: um deles teve um acidente fatal durante uma partida de futebol de salão, em Minneapolis; o outro partiu desse mundo após uma parada cardíaca causada por um extenuante passeio ciclístico em Belo Horizonte.

Amanhã, ao pé da serra, estarei dentro de uma sala aquecida e fechada, mas mesmo assim exposta, por meio de paredes de vidro, às cores estáticas e em movimento da concorrida estação de esqui Loon Mountain. Vai me acompanhar este computador portátil, e nele poderei trabalhar ou me comunicar com amigos via internet. Terei saudade dos velhos tempos e um pouco de vergonha por não poder encarar as corridas morro abaixo com meu filho. Por outro lado, vou desfrutar da paz de pensar que não correrei qualquer risco de quebrar uma perna ou sofrer um ataque cardíaco. Que esse gesto de precaução seja seguido de mais disciplina, como quer o meu médico, e assim, quem sabe, poderei encarar as trilhas de neve na próxima estação.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Perigosas passagens




Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu


Vem chegando mais um fim-de-ano: festas, mesmo em tempos de arrocho em Wall Street, e também viagens, apesar do desemprego rolando solto. São muitas as ofertas de passagens com descontos, principalmente online. Aos futuros passageiros que se destinam ao Brasil, aconselho dois portais: http://www.farechase.com/ e http://www.clickandfly.com/. O primeiro tem a vantagem de pesquisar e expor as ofertas de vários sites ao mesmo tempo. O segundo pertence a uma loja de passagens de muita experiência (a BACC, de Nova Iorque) e tem ofertas que parecem ser quase exclusivas, de tão boas. Mas cuidado com a compra de passagens nesses portais ou em quaisquer outros, exceto aqueles das próprias companhias aéreas.

Dois meses atrás comprei uma passagem da companhia TAM para viajar de Nova Iorque a Belo Horizonte. No Click and Fly Online achei uma oferta bem razoável: 696 dólares. Uau! Porém, meus problemas começaram cedo, quando fui obrigado a trocar a data da volta por motivos profissionais: multa de 250 dólares. Não tinha como evitar: paguei. Duas semanas depois, tentei mudar o itinerário da volta, que era BH-SP-NI. Era para facilitar minha volta, agora que tinha que fazer uma palestra em Niterói, RJ. A multa dessa alteração seria 500 dólares. Aí já não dava mais para o meu bolso. Deixei como estava, contando com a possibilidade de voltar de ônibus de Niterói para Belo Horizonte, em tempo de embarcar de BH para São Paulo. Grande erro: quando estava no Rio, quase saindo para Niterói (onde logo faria a palestra), o grande dilema começou, pois não havia nenhum ônibus para Belo Horizonte que saísse do Rio ou de Niterói entre as 17:30 e 22:30 horas!

Como é, então, que eu poderia embarcar em BH se não podia voltar pra lá? Uma passagem de avião de última hora eu nem procurei. Custaria uma fortuna. Bem, resolvi correr outro risco e me deslocar de Niterói para São Paulo e lá embarcar para Nova Iorque. Sabia que haveria problema, por isso telefonei para várias lojas da TAM no Rio e São Paulo. As respostas que obtive foram as mesmas: “Meu senhor, a sua passagem é de um tipo que nós, da TAM, não podemos fazer nada para alterar, nada. Talvez o senhor consiga fazer alguma modificação no guichê da TAM no aeroporto de Belo Horizonte ou de São Paulo.” Com a pulga atrás da orelha apanhei um ônibus noturno no Rio e, depois, um táxi da rodoviária de São Paulo, para chegar ao aeroporto de Guarulhos em plena madrugada.

Lá pelas 5 da manhã começou o novo capítulo do meu drama: a loja da TAM se abriu. A atendente pôs os meus dados no seu computador e logo me deu a má notícia: eu tinha que embarcar em Belo Horizonte no vôo que me traria a São Paulo. Pior ainda: “no sistema eletrônico vê-se que a companhia que lhe vendeu o bilhete não permite a emissão de uma passagem em papel. Essa passagem poderia substituir o seu e-ticket e o senhor poderia então embarcar em São Paulo para Nova Iorque.” Mantive a calma e o respeito nas conversas que tive com a funcionária da loja da TAM. Horas antes, ainda no Rio, eu falara com meu pai e lhe dizia que caso houvesse problema em São Paulo eu precisaria me controlar emocionalmente e procurar uma solução ou, pelo menos, não piorar a situação. Foi preciso fazer como havia dito, mas a situação era gravíssima. Meu filho de 15 anos, com vários compromissos esportivos e escolares, estaria sozinho até que eu chegasse de viagem, e eu mesmo precisava lecionar no dia seguinte, em Dartmouth.

A funcionária dizia que só a agência de viagem de Nova Iorque detinha o acesso online e o poder de alterar os dados da minha viagem no computador, e que sem essas mudanças eu não podia embarcar em São Paulo, a menos que comprasse outro bilhete, por uma bagatela de 2.200 dólares! Saí da loja com o coração na mão e me dirigi ao serviço de telefonia e internet do aeroporto. Mandei emails para a Click and Fly como se fosse mesmo possível achar algum vendedor acordado as 4 horas e pouco da manhã, horário do Leste. Depois tentei comprar uma nova passagem barata online, já que talvez fosse esse o pior dos males. Encontrei tickets SP-NI por 700 dólares, mas somente com saídas para dois dias depois!

Retornei a loja da TAM já bastante desiludido e deprimido. A funcionária continuava sendo muito prestativa, e chegou a telefonar para sua supervisora às 5 e meia da manhã querendo saber se ela lhe autorizava usar sua senha de chefe na tentativa de resolver o meu problema. A supervisora concordou com a “exceção,” mas o computador, não—não permitiu nenhuma operação de troca. Quando já eram mais que seis da manhã, horário do vôo entre BH e SP, e tudo parecia perdido, tive um idéia. Que tal alguém da TAM no aeroporto de BH fizesse o meu check-in, usando os dados que eu já tinha repassado à funcionária? Posteriormente, em São Paulo, faríamos um pedido de segunda-via do segundo cartão de embarque (aquele referente ao trecho SP-NI). Eu pagaria a multa que existisse para a emissão da tal segunda via. A funcionária concordou em falar com o chefe da seção de guichês, e esse indivíduo concordou em testar minha proposta. E não é que deu certo? Eu fiquei tão emocionado e tão agradecido que nem consegui falar mais do que um “obrigado” àquela funcionária, mas foi com um olhar carregado de brilho e lento de tanta gratidão. A lição fora penosa, mas aprendi que com essas baratas (e perigosas) passagens, não se brinca.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Histórias de viagem

Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu
[Foto de Silvia Borim Codo Dias]

Na última sexta-feira à uma da madrugada eu chegava à casa de minha irmã Silvinha depois de passar as 25 horas anteriores nas estradas, nos ares e nos aeroportos de Nova Iorque, São Paulo e Belo Horizonte. Por estranha coincidência, passara todo o meu aniversário em trânsito. Para comemorar a data, mesmo àquela esdrúxula hora, fui agraciado com um belo prato fundo de canjiquinha, daquelas ornamentadas com ultra-macias costelas de porco. Ah, não faltou um bom copo de vinho chileno no calar e no frescor da madrugada.

De imediato foram muitas as histórias que troquei com Silvinha e meu cunhado José Codo, amante inveterado da música brasileira, como eu. Também discutimos alguns detalhes do jantar que três dias mais tarde nós três ofereceríamos a uma distinta poeta, Helena Jobim, irmã do ícone-maior da bossa nova, Tom Jobim.

Na noite que se sucedeu, encontramo-nos os três num casarão do século 19, na cidade de Antônio Carlos, a poucos quilômetros de Barbacena. Sou fã de clima de montanha, mas muito melhores que o ar rarefeito de lá foram a hospitalidade e os “causos” das anfitriãs, d. Cleusa e d. Lígia. Da última, por exemplo, ouvi detalhes do grande feito de um de seus ancestrais, um padre inconfidente que fora preso e enviado a Portugal no século XVIII.

Naquele tempo de exílio o padre politizado recebeu um pedido de outro sacerdote: que escrevesse um texto sobre a rainha d. Maria para ser lido em missa oficial. Depois de ouvir a leitura do texto encomendado, a rainha se dirigiu a quem ela pensava que fosse o seu autor. O reverendo português, então, lhe informou que o autor daquele texto era um sacerdote brasileiro. A rainha foi visitá-lo, teve compaixão e mandou soltá-lo imediatamente.

O padre brasileiro pôde contar com mais que a própria liberdade sob os céus de Lisboa: ele havia guardado todo o dinheiro que seus irmãos tinham-lhe enviado, pouco a pouco, ao longo dos muitos meses de encarceramento. Decidiu partir em peregrinação pela Europa afora comprando centenas de mudas de flores e árvores frutíferas, as quais levou para a região de Barbacena. Nos anos seguintes o resultado foi uma bonança de produção agrícola, que tornou muito famosa aquela zona montanhosa de Minas Gerais. No casarão eu mesmo observei vários diplomas de honra ao mérito oferecidos às indústrias de doces e estabelecimentos comerciais da região. Vinham de agências oficiais de Londres e Filadélfia, entre outras cidades.

Bom seria se hoje eu tivesse tempo e espaço nesta coluna para recordar tantos “causos” que ouvi de d. Cleusa e d. Lígia. Prefiro terminar com a devida referência a um dos mais interessantes encontros que já tive nos últimos anos. Sem querer ser muito chato, vale-me dizer que já jantei ao lado de gente famosa, do naipe de um educador conhecido e respeitado em todo o mundo, o Paulo Freire, e de um escritor laureado com o Prêmio Nobel, José Saramago. Mas isso fora há treze e seis anos, respectivamente.

Desta vez duas pessoas simpaticíssimas tinham muitas histórias para contar sobre o irmão e cunhado Tom Jobim—as dos seus encontros com Vinicius de Moraes e Chico Buarque de Holanda, por exemplo. Se não fosse indelicado, é claro, queria ter gravado aquela conversa. Aí, sim, eu poderia agora reproduzir e fazer justiça à simpatia de Helena Jobim e seu marido, Manoel Malaguti.

Termino, então, evocando uma paráfrase de Manoel a cerca da frustração de Tom Jobim após suas viagens à Europa. Tom dizia que amigos o assediavam com perguntas, querendo saber tudo sobre todo o divertimento que tivera no Velho Continente. O maestro de Ipanema mal podia convencê-los que suas viagens eram extremamente cansativas, com muitos ensaios e espetáculos lhe exigindo concentração e coragem. No mais, sobrava algum (indesejado) tempo para discutir contratos e assinar documentos.

sábado, 13 de setembro de 2008

Milton & Muito Mais


Dário Borim Jr.
De repente o sul da Nova Inglaterra foi invadido por músicos e escritores luso-afro-brasileiros. Até parece conspiração das artes lusófonas na Terra do Tio Sam. Nem sei por onde começar. Talvez deva respeitar a ordem dos termos do título desta crônica, que, aliás, nasceu antes dela—coisa rara para mim, que gosto de explorar as possibilidades de um título até o último minuto antes da publicação.

Então, não é boato não: no dia 11 de outubro vai se apresentar no Zeiterion, o lindo teatro no centro de New Bedford, a 15 minutos de carro da minha casa, o grande Milton Nascimento, o Milton do Clube da Esquina, de Belo Horizonte, aquele lá da simpática cidade de Três Pontas, a 25 km em linha reta do hospital de Paraguaçu, onde nasci. E não vem sozinho. Estará com ele o Trio Jobim: Paulo, filho mais velho de Tom Jobim, no violão; Daniel, neto do maestro, no piano; e o grande Paulo Braga na batera. A rua em frente ao teatro vai ser fechada para trânsito de carros e, imaginem, a partir das 6 da tarde vai-se vender feijoada, salgadinho, e caipirinha ali, em pleno asfalto! Aí vem concerto do Milton & Trio Jobim, certamente trazendo lágrimas aos rostos dos mais sensíveis.

A noite, porém, não vai terminar com as cortinas do teatro dizendo adeus. Lá fora a festa vai continuar com mais música ao vivo e dançarinas contratadas para animar os mais tímidos. Este será apenas o começo de um ano cultural recheado de atrações, ano que o Zeiterion dedica ao Brasil a partir de outubro. Em 15 de novembro, por exemplo, apresenta-se uma companhia de dança chamada Nascimento & Nascimento Novo. Em 20 de fevereiro, o famoso grupo DanceBrazil, de Salvador, Bahia, faz um espetáculo de capoeira, no dia seguinte ao de um workshop dessa arte afro-brasileira, também oferecido pelo Zeiterion. A oficina será dada pelo mestre Vieira, a quem o Centro Cultural Brasileiro de Boston reconhece como pioneiro da capoeira neste país. A noite de 19 de fevereiro será longa, com um verdadeiro Carmaval no Café Funchal, em New Bedford.
Nos dias 13 e 14 de março será a vez da grande diva do fado, Mariza, se apresentar no Zeiterion. Ela também vai cantar no Centro de Artes Jorgensen, da Universidade de Connecticut, em Storrs, na noite de 21 de fevereiro.
Lá mesmo em Storrs, em 28 de outubro, haverá um espetáculo da Orquestra Filarmônica Brasileira, sob a batuta de Gil Jardim, interpretando peças de Heitor Villa-Lobos. Um terceiro grande evento no mesmo teatro Jorgensen será o dos irmãos brasileiros Sérgio e Odair Assad, exímios violonistas, em 16 de outubro.
Providence e Boston não poderiam ficar de fora dessa longa série de eventos. No dia 17 de setembro, na Universidade Brown, dois entre os mais renomados escritores lusófonos da atualidade, o português José Luís Peixoto e o angolano José Eduardo Agualusa, farão leituras de suas obras. Já na capital de Massachusetts, no dia 25 de setembro, António Lobo Antunes, excepcional romancista luso-africano, é o tema de um colóquio co-patrocinado pelo Centro de Estudos Portugueses da UMass Dartmouth.

Por falta de espaço, e por ser hora de concluir esta crônica, ficam aqui apenas mais dois convites. Em Boston, no auditório da Berklee, escola de jazz mais famosa do mundo, a afinadíssima cabo-verdiana Lura faz show em 12 de outubro. Antes dela, porém, se comemoram 50 anos de bossa nova no Berklee Café com o espetáculo do pianista César Camargo Mariano, acompanhado do violonista e arranjador Oscar Castro Neves. Na verdade já estou até tonto de tanta tentação. Aliás, gostei desta aliteração tripla de três Ts e quase quis (outra aliteração) trocar de título para esta crônica. Os TTT ficam, então, como um subtítulo quae sera tamen: Tonto de Tanta Tentação!

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Futebol em Pequim


Dário Borimm Jr
dborim@umassd.edu

Fiquei muito triste e pensativo depois de duas partidas nessas Olimpíadas de Pequim: a do Brasil que perdeu feio para a Argentina, no masculino, e a do Brasil que perdeu triste para os Estados Unidos, no feminino.
Sim, temos estrelas individuais: uma Marta e um Ronaldinho Gaúcho, um Diego e uma Cristiane. Observei como que até as brasileiras menos famosas da defesa e do meio-campo são boas de bola: controlam, driblam—fazem o que querem com muita intimidade e criatividade. Mas não sabem o que é melhor para o grupo e acabam se esforçando muito, individualmente e, por isso, de modo vulnerável à equipe.
Então o que nos falta? É estratégia tática (na defesa, meio-campo e ataque) e rigor na disciplina, seja ela individual ou coletiva. Aqui não há espaço para discutir cada uma dessas falhas, mas vale a pena coletar alguns exemplos e argumentos.

Na terça-feira o Brasil claramente entrou em campo despreocupado e destituído de qualquer tática ou plano para anular o grande jogador argentino, Messi. O rapaz tinha espaço e liberdade para jogar. Isso me faz pensar: Seria arrogância ou displicência? Ou ambas? Será que um Dunga da vida pensa em como se preparar taticamente, de modo especifico, para um determinado jogo? Acho que não. Entra o time em campo num oba-oba, num otimismo irresponsável ou numa má-fé de quem pensa que ganha a equipe que tem o maior número de estrelas ou a mais alta média de talentos individuais. Isso é muita ingenuidade num esporte coletivo tão equilibrado, dentro do Brasil (como se vê no Campeonato Brasileiro, onde apenas três pontos fazem um time subir ou descer várias posições na tabela), e no resto do planeta (como se constatou nas últimas copas do mundo, em que nenhum time se mostrou extremamente superior aos demais).

O Brasil nunca vai jogar futebol como se fosse um time de robôs, é claro, mas um milhão de vezes já se provou que só entusiasmo e brilho individual não ganham nem copa nem medalha de ouro. Não tenho dúvida de que Dunga seja um homem inteligente, senão não teria chegado aonde chegou, mas ele não é estrategista e não tem experiência nessa área. Por exemplo, será que Dunga treinou a equipe para enfrentar retrancas fechadas, como foi a de Camarões? Será que treinou a seleção para enfrentar equipes que faziam pressão sobre o Brasil desde a saída de bola, no campo do Brasil, como fez a Argentina? Acho que não.

Acho que o Brasil só joga bem quando os adversários nos permitem espaço e liberdade para criar, e hoje isso ocorre com muita raridade—pois o tempo da inocência já acabou. Os demais times estudam e encaram o Brasil com estratégia e seriedade. Pior ainda, muitos dos nossos técnicos não apenas deixam de se preocupar com o estilo das outras equipes antes dos jogos: eles não estão acostumados a descobrir e adotar novas táticas em pleno jogo, em função de como os adversários estão jogando.

De novo vem a história do oba-oba dos alegres e bacanas, que vira corre-corre dos aflitos e despeitados (frente aos rivais platinos), ou das aflitas e chorosas (como as nossas jogadoras após o jogo com os Estados Unidos). A equipe norte-americana não tinha uma Marta, e era uma equipe obviamente inferior à nossa em termos de habilidades individuais, mas era uma equipe que jogava de modo coeso, eficiente e objetivo. Fortes psicologicamente, elas estavam conscientes de que só unidas poderiam vencer. Objetivos, seus técnicos treinaram-nas para sustentar posturas sólidas de defesa e de ataque—uma estrutura planejada e ensaiada e, como tal, com maior chance de ser sucedida.
Improvisação, minha gente, tem seus limites. Vamos primeiro unir habilidade, estratégia e consciência coletiva—aí, sim, poderemos pensar, quem sabe, que nada nos vai separar do próximo ouro e da próxima copa do mundo.

História Sexual da MPB


Dário Borimm Jr
dborim@umassd.edu


Monumental, hilária, e reveladora ­­– assim podemos definir o livro de Rodrigo Faour, História sexual da MPB: A evolução do amor e do sexo na canção brasileira (Rio de Janeiro: Record, 2006). Não há como se pensar de outro modo diante das suas dimensões físicas, tom e valor simbólico enquanto referência. São 586 fascinantes páginas em papel off-set acrescidas de 32 páginas coloridas com as sugestivas capas de inúmeros LPs e CDs. Para o bem geral da nação e seus estudiosos e simpatizantes, o jovem jornalista e pesquisador Rodrigo Faour vai muito além do que se poderia esperar de um bom livro inteiramente dedicado às questões amorosas e sexuais na música popular brasileira.

Conforme nos adianta o astuto especialista Jairo Severiano, ao recomendar entusiasticamente a obra à primeira aba da segunda edição,“Faour obrigou-se a realizar a exaustiva tarefa de levantar mais de quinze mil composições representativas de toda a existência de nossa música.” Dessas, Faour analisou 1.300 títulos para desenvolver e sustentar suas teorias. Nessa empreitada, são citados os versos mais pungentes de todas ou quase todas essas 1.300 canções, às quais o autor teve acesso nos acervos das principais gravadoras brasileiras.

Além de discernir e comentar incontáveis canções que confirmam os paradigmas principais da história da música popular, o autor não deixa de incluir as exceções às regras, passagens estas que muitas vezes enriquecem seu ensaio com humor inusitado. Ao discutir algumas belas mas soturnas e deprimentes modinhas, Faour cita uma parte da entrevista com José Ramos Tinhorão em que o renomado e polêmico historiador analisa “Perdão, Emília,” de autor desconhecido. Gravada em 1902 por Bahiano e Mário Pinheiro, seus versos contam, segundo Tinhorão, “a história de um cara que vai ao cemitério pedir perdão à mulher porque lhe tirou a virgindade e não se casou com ela. No meio da música vem a grande surpresa: a morta ganha fala e esculhamba o cara” (28-29).

Na versão original, a musa-morta desabafa: “Monstro tirano, pra que vens agora? / Lembrar-me as mágoas que por ti passei? / Lá nesse mundo em que vivi chorando, / Desde o instante em que te vi e amei” (29). Faour arremata, com ironia, que foi por “acaso que deram voz à mulher nesta música–mesmo que depois de morta. Em geral não era assim” (29). Em plena informalidade, o autor observa que canções desse tempo “causavam um amargor no estômago que nem uma tonelada de Sonrisal daria jeito” (29). Explica ele que aquelas imagens dramáticas se tornariam “um indicativo de bom gosto. A música tida como bonita em geral continha alguma tragédia ou um quê de melancolia embutido” (29).

Com uma linguagem despojada (ao mesmo tempo informal e jocosa, e muitas vezes, irônica), Faour discorre sobre uma das principais vocações da música popular brasileira: elaborar uma múltipla crônica de costumes. Entre tais costumes, destaca-se a acentuada tendência do compositor, músico e consumidor-cidadão ao culto e estetização da fossa, do amor frustrado, da tristeza e da solidão. Segundo as contas de Faour, até a década de 60 do século passado, 90% de todas as canções amorosas brasileiras abordavam o desencanto amoroso.

O pesquisador também apresenta, com inúmeros argumentos e detalhes, uma aparente forma de esquizofrenia brasileira. Por um lado, setores da sociedade reprimem a tematização da sexualidade na música, impondo-lhe censura e punindo severamente os transgressores. Por outro lado, escancaram-se, desde os primeiros sambas até as banais formas de “bunda music,” os princípios da castidade e do decoro. Popularizam-se assim as “safadanças”, termo do próprio autor, isto é, o maxixe, o forró, a lambada, e o funk, enquanto se celebra e se abusa do duplo sentido da linguagem, da dita sacanagem, e da escatologia.
Em conclusão, a obra de Rodrigo Faour é ambiciosa e atinge seus objetivos, constituindo um adicional de peso (literal e metaforicamente) a uma distinta lista de obras que retratam com rigor, minúcia e zelo a história tão picante quanto mirabolante da canção brasileira.

sábado, 26 de julho de 2008

Bossa & Samba Thrill


Dário Borim Jr.


dborim@umassd.edu

Since June, 2008 there has been a new compact disc out there, The Bossa Project, featuring enchanting ways by which music travels deeply into and across cultures. It is truly inspiring when an artist who has proven to be extremely successful with the public and the critics alike takes a chance by landing in considerably new territory. In truth, though, the group Chicago's career and Robert Lamm's particular history of daunting crossovers and fusions of various pop genres and jazz (within and without the band) have subtly prepared us for the unpredictable, for the novelty that is fresh and authentic in its bold flight beyond previously established musical boundaries. Lamm, for those who may not know, has had much to do with the unprecedented trajectory which marks Chicago’s 40 plus years of unrelenting music writing and performance. Among so many other achievements, including the sale of more than 120 million copies of their recordings, the band has been the only U.S. group to visit Billboard ranks for four decades in a row.

Lamm's new release inspires us into that artistic courage while confirming our trust in his ability to breakthrough, to visit, to take risks, to mingle, and to come out anew, more creative and more convincing in his honest approach to making art music. Opening with a fabulous bossa nova rendition of “A Man and a Woman,” the main theme of a French romantic feature movie (directed by Claude Lelouch, 1966) that helped launch the music of Antonio Carlos Jobim, Luís Bonfá and Vinicius de Moraes, The Bossa Project is not just bossa nova, even though bossa is huge anyway, whether one likes it or not. By the way, celebrating 50 years of existence now, this Brazilian style is no passing fad in the sublime hands and horns of a Stan Getz, or the like. It remains an emotionally vibrant and yet gracefully seducing type of musicality with an open door to multiple explorations, including unheard-of mixing with contemporary trends in electronica and so-called world music.

Lamm goes beyond bossa nova by including three remixed tunes or by mixing it with jazz in multiple cuts, especially in “Haute Girl,” co-written with band partner (and arranger) John Van Epps. The Chicago founder artist (actually born in New York City) also encounters and excels in nothing but samba, which is no easy terrain for any musician not born, raised or intensively trained in Brazil. He does it marvelously in Van Epps' tune "Samba in Your Life” or in his own delightful composition, "Send Rain." Since bossa is undeniably rooted in samba, a musical dialog between the two music styles (or two points in the musical development lane that keeps stretching forward in time) can be enchanting in João Gilberto or Rosa Passos, but so is it in "Speak Low," by Kurt Weill and Odgen Nash.

For Brazilian music fans, here is a tip: Lamm's rendition of "Águas de Março" ("Waters of March"), the only original tune from Brazil in the disc, would make Jobim rejoice with us. It is, of course, not your average song. Several years ago Los Angeles Times music critic Leonard Feather argued that Jobim’s stylized samba had the most complex harmonic structure among all popular tunes he knew. He then placed “Waters of March” among the top ten compositions of all times. First released in 1972 and superbly recorded in 1974, by Elis Regina and Tom Jobim, “Águas de Março” was also chosen by influential newspaper Folha de São Paulo’s readers as the most beautiful Brazilian song ever written. Flutist Zé Luis helps, but it is mostly due to Lamm's credit (with his soothing voice naturally resembling that of our beloved Ipanema genius) that an unforgettable, world-class masterpiece continues to entrance us, as it wears new hats and new clothes on international shores from time to time.

sábado, 19 de julho de 2008

Encantado





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dborim@umassd.edu
[Cassamento de Carla e Leandro, 21/junho/08]

O título desta crônica resume meu estado de espírito diante do desenrolar das férias que me chegaram ao fim no segundo fim-de-semana de julho. Com Ian, filhote de 15 anos e 1,82 m. de altura, cheguei a Belo Horizonte sem muita impaciência (só um pouquinho) quatro horas antes que Brasil e Argentina jogassem no Mineirão pelas Eliminatórias da Copa do Mundo de Futebol.

É verdade que nossa seleção poderia ter jogado bem melhor e vencido los hermanos del sur. Mas, passada a frustração momentânea, concordo com meu filho: a equipe do Dunga não jogou tão mal, o que fica comprovado pelos clipes dos melhores momentos da partida, já postados para o mundo ver numa popular página da internet, o http://www.youtube.com/. O que importava para nós dois era estarmos lá no estádio, carne e osso, diante da seleção brasileira em jogo tão importante. Foi mesmo uma noite inesquecível para pai e filho que moram no exterior, dois fanáticos por futebol, esporte este que nos aproxima e nos faz cúmplices das mesmas emoções.

A alegria de rever parentes e amigos também veio de imediato e, em poucos dias, muitos de nós presenciaríamos o belo e chiquérrimo casamento de uma sobrinha/prima. A cerimônia religiosa, na Basílica de Lourdes, incluiu um vasto e bem escolhido repertório musical, com direito a um show à parte de um renomado barítono, um afiado trompete de fazer vibrar a alma, e um comovente coral de música sacra que escapuliu do tradicional numa breve visita à sensibilidade popular de Erasmo e Roberto Carlos. A festa no Buffet Catharina embalou centenas de convidados em gastronomia de fino trato, ao som de uma banda a tocar valsas, boleros, sambas, e vários ritmos pop dos anos 60-90 por seis horas consecutivas. Esta mesma banda acompanhou o noivo (habilidoso ao piano e na guitarra), sua noiva híper-entusiasmada, e outros membros do clã. Ao delírio de novos fãs, a família unida subiu ao palco para protagonizar uma longa cantoria de velhos clássicos dos Beatles.

Nos dias seguintes minha festa particular continuou. Foram inúmeras as garrafas de vinho e cerveja com parentes e outros seres queridos cujas amizades já duram mais de 30 anos. Foram múltiplos os eventos especiais que, pela ocasião da minha presença, reuniriam dezenas de pessoas a quem estimo e admiro até o ponto de viver sonhando com nosso próximo encontro, amigos esses que tornaram a viagem ao Brasil um encanto geral. Para ser sincero, devo dizer que a realização de um desses eventos não teve a nada a ver com minha presença. A sorte simplesmente esteve ao meu lado. Por isso pude participar de uma divertidíssima reunião de amigos, turma que festejou muito enquanto freqüentava o segundo grau na primeira quinzena da década de 1970.

Mas para não dizer que só falei de gente chegada, resta-me compartilhar a alegria que tive ao vencer o preconceito e ir viver uma experiência inusitada: dançar samba no Parque Municipal de Belo Horizonte. Como é que é?, vocês que conhecem o local estarão se perguntando. É isso mesmo: deixei o descabido medo de roubos e assaltos de lado e, imaginem, para lá me dirigi, sozinho, em plena noite de domingo. E não me arrependi. Muito pelo contrário. Senti orgulho de não ter sucumbido aos meus próprios temores, agradecendo aos céus pela extraordinária oportunidade que tinha esse expatriado dançando ao som de quatro bandas de samba, ali rodeado de jovens e não-tão jovens que curtiam o ritmo maior do Brasil e o glorioso grand-finale de mais um Festival Internacional de Teatro de Belo Horizonte.

Nessa vida, mais encantados nos sentimos quando uma luz, aparentemente insossa, nos acorda do sono da complacência. É quando uma graça cai dos céus e não nos escondemos dela como se essa fosse relâmpago sob chuva de verão.

Carta de Clarice


Dário Borim Jr.



Em 1995 o jornal O Estado de São Paulo publicava a seguinte carta escrita em Berna, Suíça, a 2 de janeiro de 1947. Suspeita-se que tenha sido redigida pela grande romancista Clarice Lispector.

Querida,
Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Nem sei como lhe explicar minha alma. Mas o que eu queria dizer é que a gente é muito preciosa, e que é somente até um certo ponto que a gente pode desistir de si própria e se dar aos outros e às circunstâncias. Depois que uma pessoa perde o respeito a si mesma e o respeito às suas próprias necessidades - depois disso fica-se um pouco um trapo.

Eu queria tanto, tanto estar junto de você e conversar e contar experiências minhas e dos outros. Você veria que há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo. Eu mesma não queria contar a você como estou agora, porque achei inútil. Pretendia apenas lhe contar o meu novo caráter, um mês antes de irmos para o Brasil, para você estar prevenida. Mas espero de tal forma que no navio ou avião que nos leva de volta eu me transforme instantaneamente na antiga que eu era, que talvez nem fosse necessário contar. Querida, quase quatro anos me transformaram muito. Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma num boi? Assim fiquei eu... em que pese a dura comparação... Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões - cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também minha força. Espero que você nunca me veja assim resignada, porque é quase repugnante. Espero que no navio que me leve de volta, só a idéia de ver você e de retomar um pouco minha vida - que não era maravilhosa mas era uma vida - eu me transforme inteiramente.

Uma amiga, um dia, encheu-se de coragem, como ela disse e me perguntou: "Você era muito diferente, não era?". Ela disse que me achava ardente e vibrante, e que quando me encontrou agora se disse: ou esta calma excessiva é uma atitude ou então ela mudou tanto que parece quase irreconhecível. Uma outra pessoa disse que eu me movo com lassidão de mulher de cinqüenta anos. Tudo isso você não vai ver nem sentir, queira Deus. Não haveria necessidade de lhe dizer, então. Mas não pude deixar de querer lhe mostrar o que pode acontecer com uma pessoa que fez pacto com todos, e que se esqueceu de que o nó vital de uma pessoa deve ser respeitado. Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que você imagina que é ruim em você - pelo amor de Deus, não queira fazer de você mesma uma pessoa perfeita - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse o único meio de viver.

Juro por Deus que se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia - será punida e irá para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não será punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo aquilo que sua vida exige. Parece uma vida amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma. Espero em Deus que você acredite em mim. Gostaria mesmo que você me visse e assistisse minha vida sem eu saber. Isso seria uma lição para mim. Ver o que pode suceder quando se pactua com a comodidade de alma.

On Tom Jobim


By Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu

This year we celebrate 50 years of bossa nova, and there is, indeed, much to rejoice, because whether one likes or dislikes this type of music, no one can deny its historically decisive role in the development of Brazilian music (especially the genre known as MPB) and its major influence upon jazz and world music at large. When we think of bossa nova, we must necessarily remember Antonio Carlos (Tom) Jobim, who died almost 14 years ago in a New York City hospital. It is high time we learned more about a priceless poetic legacy to the music and music-lovers of the world. Poet and novelist Helena Jobim's book entitled Antônio Carlos Jobim: um homem iluminado makes his personal, intellectual, and professional history come alive in a compelling story for all readers. It is, likewise, an illuminating document for researchers in the fields of music, literature, art, philosophy, and popular culture.

As if it were not for the vast, intimate, and revealing set of photographs, the engaging elegance and unique structure of the prose, the resourceful catalog of recording data, or even the enlightening description of creative processes and partnerships of a true twentieth-century's genius, one single piece of writing added to Helena Jobim's endearing biography of her brother makes it all worth it. In 1970 Tom is interviewed by one of Brazil's perhaps most intelligent and controversial journalists of all times, Carlos Lacerda (151-163).

Some of Tom's greatest anguish (but not resentment) resulted from his own image in the Brazilian press: too often distorted and misunderstood. The harshest attacks on him arguably came from prejudiced critics who, rather unfairly and unwisely, regarded his music as imitation of foreign sounds. He once declared to his family: "Lacerda's article is the only serious piece that describes who I am" (151). Of course Helena Jobim's moving and enchanting book serves to fill in some of that void. Quoting Pablo Picasso (and Tom Jobim loved quoting artists and poets, such as Carlos Drummond, Fernando Pessoa and Guimarães Rosa), the carioca maestro once explained that out of that anguish, his own "cube of darkness," he was "born again" on a daily basis (163).

Jobim's exceptional talent as a songwriter follows a tradition in Brazilian music since Chiquinha Gonzaga 150 years ago: sometimes to bridge over and sometimes to do away with the illusive divide between erudite and popular culture, including music and poetry. Toward that goal (just naturally and smoothly being driven to it, rather than pursuing it) he was certainly lucky and clever enough to chose and to be chosen to work with giants of either end, such as Radamés Gnatalli and Dolores Duran, or other outstanding bards, like Chico Buarque de Hollanda and Vinicius de Moraes, whose art has also spanned all over that open field of borderless creation.

The author of "Waters of March" actually read, questioned, and recreated the world he lived in not only through mesmerizing melody, but also through down-to-earth poetry. Helena Jobim does justice to her brother's poetic voice in many dazzling instances. It all starts on a high note of low spirits by a singular composer whose ecological concerns made him a bit gloomier every day. It is indeed too sad that he had to leave us prematurely, at the peak of his career but before writing another 500 tunes of inexplicable grace. Tom could have added one more stanza to his own verses, the one that stands as an epigraph in Um homem iluminado: "Every time a tree is cut down here on Earth, I believe it will grow again somewhere else, in another world. So, when I die, it is to this place that I want to go, where forests live in peace."

sábado, 7 de junho de 2008

Sambas dos animais


Sambas dos Animais

Dário Borim Jr.
[Sampson, um golden retriever nascido em Minnesota em setembro, 2003]

“O homem antigamente falava / Com a cobra, o jabuti e o leão”. Assim tem início umas das canções mais interessantes de um compositor-filósofo: o inigualável ícone da contracultura brasileira, Jorge Mautner (um carioca filho de judeu austríaco). O assunto é sério em “O mundo dos animais”, faixa interpretada pela jovem cantora brasiliense Adriana Maciel e incluído numa bela coletânea de música infantil brasileira (que agrada a adultos também). O disco foi lançado pelo selo norte-americano Putumayo em setembro de 2007 com o título Brazilian Playground.

O tratamento do tema é leve, em ritmo de samba mais lento que o tradicional, quase o de um samba-canção, apesar de revelar um inequívoco desencanto com os rumos tomados pelos seres humanos. Por um lado vem a brincadeira que nos alerta: “Olha o macaco na selva / Não á macaco, baby / É o meu irmão”. As transformações por nós realizadas deram fim àquele tempo de paz em que a gente “falava com os animais”. Infelizmente, a era de comunicação e integração entre as pessoas e os bichos não volta mais: “Pois o homem rei do planeta / Logo fez uma careta / E começou a sua civilização”.

Não consigo pensar no assunto dessa canção sem relacioná-lo a um conto da grande escritora brasileira Clarice Lispector (também de origem judaica). Em “O búfalo”, que integra o volume Laços de família, publicado em 1960 (e reeditado pela Rocco em 1998), a narrativa nos leva a um zoológico. Seguimos os passos, os olhares e as emoções de uma mulher que de tão frustrada no amor quer exprimir (e talvez expelir) todo o seu ódio num encontro com qualquer animal selvagem que se apresente diante dela com os mesmos sentimentos hostis. Incapaz de conversar com eles, condição esta imposta por nós mesmos, segundo Jorge Mautner, a mulher na verdade se surpreende com a paz, dignidade, harmonia, e até carinho, entre os bichos.

Naquela ocasião, por exemplo, um leão lambia a testa da leoa. Depois ele passeou “enjubado e tranqüilo, e a leoa lentamente reconstituiu sobre as patas estendidas a cabeça de uma esfinge” (126). A mulher vestindo um casaco marrom (sem nome, no conto) revoltou-se diante do amor entre os dois animais, do seu romance em plena primavera. Mais tarde ela vai adquirir uma imensa vontade de matar “aqueles macacos em levitação pela jaula, macacos felizes como ervas, macacos se entrepulando suaves, a macaca com o olhar resignado de amor, e a outra macaca dando de mamar” (127).

Um charmoso, inocente e brincalhão quati (animal que eu vim a conhecer solto e contente diante das Cataratas do Iguaçu) também desconserta aquele ser humano solitário e sem paz interior. “De dentro da jaula o quati olhou-a. Ela o olhou. Nenhuma palavra trocada” (130). O animal, porém, parecia fazer-lhe uma pergunta, o que a perturbava. “A testa estava tão encostada às grades que por um instante lhe pareceu que ela estava enjaulada e que um quati livre a examinava” (130). De tanto provocá-lo, a mulher finalmente consegue vislumbrar ódio em um animal do zoológico, um búfalo, mas prefiro deixar aqui, em suspense, o desfecho da trama.

Por ter sido extremamente influenciada pelos filósofos existencialistas, Lispector se ocupou de analisar, na sua obra, as fascinantes diferenças e semelhanças entre os humanos e os animais, preocupação esta que aparece em outros contos de Laços de família. Naturalmente o tema é complexo e não há espaço nesta crônica para maiores digressões. Vale dizer que para Lispector muitos humanos agem como se os animais não tivessem, também, muitos de nossos sentimentos, como a tristeza, o medo, a saudade, o ódio, a alegria, a ternura e o amor. Algumas das cruciais diferenças, entretanto, são que, por um lado, eles não sofrem com o conflito de emoções em torno de uma mesma situação de vida; por outro lado, não sonham com auto-superação e acumulação de posses através das guerras ou das glórias da ciência com que se transforma o ambiente onde somos criados.

Já que os tempos de conversa aberta entre humanos e animais já se exauriu, como sugere Jorge Mautner, ou que nunca existiu, com a necessária transparência, até mesmo entre os humanos, como implica Lispector, é hora de amarmos mais uns aos outros, humanos, e também os animais. Sem mesmo contarmos com as benesses de uma linguagem humana precisa, sem erros e rodeios, talvez seja hora de tentar aprender algo: como deixar de lado a soberba e a auto-promoção em detrimento do bem alheio, e abraçar os sambas dos animais, brincando e harmonizando-nos como muitas crianças da nossa espécie ainda conseguem.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Solidão em suburbano


Dário Borim Jr.

dborim@umassd.edu

O expresso das 4:45 partiu da estação cinco minutos atrasado naquela tarde — um tropeço na vida agitada de qualquer nova-iorquino. Uma vez dentro de um vagão para não-fumantes, lotado como de costume na hora do pico, encontrei por sorte uma vaga num daqueles desconfortáveis bancos plásticos de trens suburbanos.

Após mais um árduo dia de trabalho, eu sentia todo o meu corpo doer. Pior que braços e pernas, entretanto, algo me afligia por dentro. Meses de solidão e anonimato numa megalópole haviam assegurado à tristeza o direito de me dominar e me pôr em desordem as emoções.

Disfarcei o olhar por todas as direções em busca de fisionomias, senão amigas, pelo menos cordiais. Para o meu desalento, os semblantes dos passageiros espelhavam o mesmo vazio que sentia eu em mim mesmo. Eles também pareciam precisar de contato humano, mas não se dispunham a dar um passo sequer para consegui-lo. Longe disso, os passageiros achavam sempre um refúgio para os seus sentimentos: ler, ler e ler, até que chegassem finalmente a suas estações de destino.

Ávido por iniciar uma conversa, eu percebi no banco de trás uma senhora de meia idade. Tive esperança. Imaginei que fosse simpática e que até gostasse de uma prosa leve, jovial. Para minha decepção, a madame permaneceu estática: nem por uma vez a vi desencalhar os olhos de seu The Wall-Street Journal durante os seus sólidos trinta minutos de viagem.

Acredito que muitos visitantes à área metropolitana de Nova Iorque concordariam comigo: está para nascer na terra gente mais ocupada, individualista e insensibilizada que os habitantes da maior cidade do Ocidente. De Greenwich, Connecticut, trago na memória um dos meus argumentos. Ali na mesma estação de trem, no mesmo horário, todo santo dia, as pessoas estão "se encontrando". O curioso é que elas nem se olham. Ocorre uma pitoresca cena diária: enquanto esperam a condução para o trabalho ou a escola, dezenas de pessoas suspendem os jornais e revistas até bem perto dos olhos. Seriam míopes? Aposto que não. Apesar de se verem todos os dias, os passageiros da estação de Greenwich não se conhecem, ou, quem sabe, orgulhosamente disfarçam que não.

A viagem rumo à bela estação central em Manhattan continua, mas chega o momento em que decido vaguear por outros carros do comboio. Acabo encontrando o carro-bar, onde seis homens bebem algo naquela tarde de verão. Alguns deles olham para o chão e, outros, para a paisagem monótona e inútil de prédios sujos, uma das vistas que admiravam pelas janelas do carro que deveria ser o mais descontraído e interessante de todos. Fui, urgentemente, comprar uma cerveja. De fato, ainda tinha fé que alguma conversa saísse por ali. Mais uma garrafinha de Miller, uma terceira, e nem mesmo uma palavra disseram. Nem eu. Um pouco mais deprimido, deixei o vagão.

Era com o objetivo de dar alívio à minha alma ferida que eu me dirigia à ilha de Manhattan, o coração do lazer daquela fascinante cidade norte-americana, para turistas. Em certos bares do Greenwich Village, eu encontraria a paz de espírito com que sonhava sufocar minha nostalgia e autocomiseração. Mas até que chegasse à estação central, sofri os dissabores da mais plena solidão e impotência diante da frieza humana. Um convívio passageiro e fortuito era só o que eu queria; porém, era muito a pedir dos outros viajantes e de mim mesmo. Só me restava uma alternativa. Como qualquer outro indivíduo a bordo, também me tornei um leitor sem mais me importar com o ambiente. Carregava eu também uma alma ausente e seca, fingindo ter a única alma viva naquele trem.
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sexta-feira, 9 de maio de 2008

Rumo ao Caribe

Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu

Dizem que tudo o que se torna rotina um dia acaba perdendo o fascínio. Deve ser por isso que enquanto eu sonho acordado, os passageiros ao meu lado dormem profundamente neste vôo Rio-Miami. A viagem é longa, e há muito tempo para pensar. Como o meu destino final é o Caribe (San Juan del Puerto Rico, mais precisamente), paisagens de praias e ilhas, com seus sons de salsa, calipso, reggae e merengue logo me convidam a refletir sobre o que possivelmente me espera nos próximos trinta dias que passarei de férias por ali.

Misturando-se a formas e sensações que observo à janela ou que construo eu mesmo na base da imaginação, vêm-me à mente algumas reminiscências de quando eu estava prestes a sobrevoar as águas do Caribe pela primeira vez. Deixava o centro de Bogotá, de táxi, rumo ao aeroporto internacional sem conseguir esconder muito bem o medo que tinha daquela cidade tão violenta. Logo pude ver estampada em vários postes de luz a figura de um brasileiro que também me inspirava medo, com a sua mania de cavalos e chicotes: o presidente e ditador João Baptista Figueiredo. Ele estaria visitando o país em breve. Eu tinha mais um pequeno motivo para apressar minha saída.

A certo momento o motorista me perguntou qual era o meu destino. Numa língua mista, o tal de "portunhol" que eu vinha aprimorando ao passar anteriormente pela Bolívia, Peru e Equador, eu lhe disse: "Me voy al Panamá, talvez a Costa Rica, o mismo Guatemala. Pero mi destino final son los Estados Unidos". O homem achou estranho eu me dirigir ao aeroporto sem saber para qual país estaria viajando. Expliquei-lhe que por causa das leis do Panamá e de outros países da América Central não se vendia passagem só de ida ao passageiro que partisse da Colômbia. Eu ingenuamente tinha muita esperança de encontrar alguma solução para aquele impasse burocrático no aeroporto, pois queria conhecer um pouco daquela região estreita e rodeada de mares. Mas se a dificuldade fosse muito grande, pegaria o próximo vôo para os Estados Unidos. Infelizmente, assim o fiz.

Hora e meia após chegar ao aeroporto de Bogotá já estava abordo de um velho DC-8 da extinta companhia norte-americana Branniff. Apesar de frustrado por não poder ver a América Central com os pés no chão, agora me entusiasmava com as informações transmitidas aos passageiros. O comandante anunciou "Jamaica à vista", e logo se pôs a relatar dados sobre a bela ex-colônia inglesa. Qual foi a minha surpresa quando passamos a sobrevoar uma massa de terra muito maior e nenhuma voz a mencionou pelos alto-falantes.

"Aquilo é Cuba, meu caro", disse um passageiro à minha esquerda. "Não sabe que aviões americanos não devem nem mencionar a ilha de Fidel em seus serviços de bordo?" Mas o céu estava limpo e quem quis pôde ver as belas ilhas de Cuba, sem problema. E não há Guerra-Fria que lhes negue o charme e as cores.

Sete anos depois daquelas primeiras impressões dos arquipélagos caribenhos lá estava eu de novo sobrevoando os mesmos mares. E antes que houvesse muito tempo para me aprofundar nos mistérios e imbecilidades da política internacional, pousávamos em Miami. Menos de quatro horas mais tarde, já em outra aeronave, me aproximava das ilhas de Porto Rico, terra de saboroso rum e de um sapinho do tamanho de uma unha, que canta a noite inteira como se fosse gente grande em serenatas sem fim.

O sabor da piña-colada e a força do balanço caribenho se tornavam mais vivos em mim, diante da iminência do pouso em San Juan. Acima de tudo, o prazer advinha da enorme expectativa de re-encontrar alguém muito especial que ali morava. Agora ainda posso ver aqui de cima, um pouco antes de encarar a pista que nos levará ao terminal de passageiros, um restinho desse maravilhoso mar azul-esverdeado, tão cristalino como os seus olhos, Ann. Então Tom Jobim e Vinícius de Moraes me dão uma colher. Nesses divinos instantes posso apostar que “há menos peixinhos a nadar no mar, do que os beijinhos que eu darei na sua boca”.
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quinta-feira, 10 de abril de 2008

BRASA and Choro in New Orleans


É uma BRASA, mora?

Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu

Há grandes vantagens na carreira de professor universitário. Uma delas é participar de congressos em diversas partes do país e do estrangeiro. Boa parte de nossas despesas (senão quase todas elas) é paga pela instituição em que trabalhamos. Isto quer dizer que temos direito a certo tipo de “turismo intelectual” quase gratuito.

Os leitores desta crônica que viajam a negócios poderão dizer, “nós também”. Eu diria, pelo que sei, “não é bem assim”. Enquanto outros profissionais viajam sob pressão para “produzir resultados” e seguem uma agenda apertadíssima de cursos e negociações, nós, acadêmicos, vamos de encontro a ambientes descontraídos, habitados por pessoas contentes por estarem distantes das suas rotinas. Desta forma revêem velhos colegas de profissão e fazem novas amizades. E sempre há um tempinho para socialização (sessões de vinho e queijo, por exemplo, ou algo muito melhor).

Infelizmente nem todos os professores universitários, mesmo que tenham obtido seus Ph.D.s da vida, têm esse tipo de privilégio. Milhares deles lutam para sobreviver lecionando em três ou quatro escolas que não lhes pagam o suficiente e nem lhes dão apoio para desenvolvimento profissional. Depois de tantos anos de estudo e tanto dinheiro gasto na educação, é lamentável submeter-se a tal penúria.

Bem, aonde quero chegar não é nenhum mar de lamúrias. Muito pelo contrário: quero compartilhar o deleite que foi minha recente viagem ao nono congresso internacional da BRASA (Associação de Estudos Brasileiros), entidade que agrega centenas de estudiosos de diversas disciplinas (da arquitetura ao cinema, da literatura à ciência política), todos voltados para o Brasil. Desta vez o encontro bi-anual se realizou em Nova Orleãs, cidade que ressuscitou das águas e dos escombros causados pelo furacão Katrina em mais um nefasto mês de agosto, o de 2005.

Devo dizer que o congresso foi mesmo uma verdadeira extravagância cultural. Em certos momentos 27 sessões com quatro ou cinco apresentadores aconteciam ao mesmo tempo. No total, eram centenas de pesquisadores reunidos. E como se debates acadêmicos não fossem o suficiente, ainda transcorriam sessões simultâneas com alguns dos melhores e mais recentes lançamentos do cinema brasileiro. E mais: no espaço de dois dias e três noites teríamos concertos de chorinho e jazz, além de rodas de samba e de capoeira.
Enquanto todas essas atividades acadêmico-culturais transcorriam nas salas e salões do belo campus da Universidade de Tulane, havia toda uma maravilhosa cidade a ser explorada.
Portanto, com maior ou menor disposição, quase todos (senão todos) os participantes do congresso escapariam pelo menos uma vez dos ares fechados da universidade. Era para dar uma olhada no French Quartier, o bairro francês tão apreciado pela música, principalmente jazz, blues, rock e cajun, e pela distinta arquitetura, com maravilhosos sobrados de estruturas metálicas entalhadas e varandas que nos convidam à paz e à descontração. Isso, é claro, sem falar no que denominei de “folclore da sacanagem”, a atitude carnavalesca de liberação sexual radical que dura o ano inteiro, sob o qual co-existem coloridos e alegres semi-prostíbulos e bares gays por todos os cantos.

Bom, e se isso tudo não fosse o bastante, há ainda centenas de outras opções em diferentes bairros ao redor do French Quartier. Em muitos destes, dizem, oferecem-se as verdadeiras jóias da cozinha e dos ritmos locais. Para um desses recantos me dirigi com três colegas da BRASA (Richard Gordon, Robert Moser, e Cristiano da Silva), na noite de sexta-feira, dia 28 de março, depois de muito bla-bla-blá intelectual. Apresentavam-se gigantes do jazz em uma casa bastante humilde e discreta, mas muito tradicional, o Donna’s. O clarinetista Evan Christopher e o pianista Tom McDermott já nos haviam dado arrepios de prazer estético quando, de repente, para um coração brasileiro, eles arrebentaram a boca do balão: tocaram delícias de um Pixinguinha, de um Abel Ferreira, e de um Ernesto Nazareth.

Era uma BRASA, mora, testemunhar o fantástico encontro do jazz e do blues de Nova Orleãs com o chorinho e o maxixe do Rio de Janeiro. Tudo se mesclava ali mesmo, onde as águas assassinas já tinham rolado como se fossem prenúncio do fim do mundo. Elas nem por isso teriam afogado o espírito harmonioso e viajante da arte, que não perdeu o barco de ida e de vinda, por mares distantes e rumo a tradições musicais nem tão dessemelhantes.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Terras estrangeiras


Terras
estrangeiras

Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu

Segundo o crítico Fernão Pessoa Ramos, há uma forte tendência no cinema brasileiro dos últimos treze anos: um tipo de acusação direcionada à nação como um todo, o grande vilão. Essa seria uma nação que se afoga num imundo mar de incompetência. Nossos cineastas contemporâneos, por seu turno, seriam navegadores cujo grande deleite é lavar nossa roupa suja diante de viajantes estrangeiros, principalmente aqueles trans-vestidos, na própria tela de cinema, com alguma indumentária e sobriedade a lhes outorgar autoridade moral (ou outro senso de superioridade) diante de sórdidos e ignóbeis terceiro-mundistas.

Ramos chama de “narcisismo às avessas” o conceito que toma emprestado do grande dramaturgo e cronista Nelson Rodrigues. Nos dias em que a seleção nacional de futebol não jogava bem, Rodrigues podia perceber que as vaias no Maracanã revelavam nossas “humilhações hereditárias”. Depois de muitas gerações sofrendo das mesmas frustrações e ansiedades, o ser brasileiro, escreve Rodrigues, “virou o seu narcisismo pelo avesso”, passando a cuspir “na sua própria imagem”.

O efeito daquele tipo de cinema a expor tão exaustiva e implacavelmente os podres poderes e fatais inaptidões de uma nação seria uma espécie de catarse, como os gritos no estádio de futebol. Através dessa catarse, no escurinho do cinema, o espectador podia se sentir melhor: ficava com pena, mas se afastava daquela repugnante realidade retratada pelo cineasta.

Com o filme Terra estrangeira, de 1995, os diretores Walter Salles e Daniela Thomas dão tremendo fôlego à recuperação do cinema nacional depois de cinco anos de um marasmo quase completo, herança nefasta do governo Fernando Colllor. Entretanto, além da crise política e econômica brasileira dos anos 80 e início dos 90, inevitáveis descaminhos no mundo do crime em Portugal compelem a protagonista de 28 anos, Alex, a refletir sobre a sua profunda decepção com a vida no “eterno país do futuro”. Tal sentimento, discute o crítico José Carlos Avellar, era compartilhado por milhares de jovens da classe média brasileira no início dos anos 90: “a sensação de se fazer parte de um país que não presta, de não se ter raiz nem identidade, de se viver em sua própria terra como se essa fosse uma terra estrangeira”.

Terra estrangeira, porém, deve permanecer excluído à síntese que Ramos aplica à produção cinematográfica do período de “retomada” do cinema nacional. Primeiro, vemos que a crítica social ao Brasil não é extensiva, impiedosa ou recalcitrante. Em seguida, constata-se que a imagem de Brasil terra-mãe-não-gentil é ali diluída pelas imagens muito mais problemáticas de outro país: um Portugal velho e inóspito, incapaz e indisposto a absorver os imigrantes vindos de países dos quais Lisboa tanto sugou recursos naturais e divisas comerciais enquanto metrópole imperial, e para os quais mandou, até 50 anos atrás, milhões de emigrantes. Numa terceira reflexão, aponta-se a ausência daquela típica personagem que representasse a autoridade estrangeira, emoldurando e ratificando a incompetência brasileira. Finalmente, a sensação que se tem ao assistir Terra estrangeira é a de que os realizadores da obra (nesse sentido, produtores, diretores e artistas) não objetivam o distanciamento entre a platéia e o universo dramatizado na tela.

Portanto, Salles e Thomas não configuram o tal narcisismo às avessas, cujo objetivo seria fazer com que o povo brasileiro despedaçasse sua auto-imagem para então se sentir mais distante do seu país de origem, ainda que lá mesmo continuasse residindo. O que temos neste belo filme, tão rico em simbolismos imagéticos quanto poético e pungente nos seus diálogos é, em particular, um drama sobre a imigração e a emigração entre o Brasil, Portugal, e Espanha (para onde fogem os protagonistas). Em um sentido mais amplo, vislumbra-se um estudo das inusitadas contingências e das típicas maledicências da vida no exterior. Discutem-se, pois, com o devido respeito, a imigração penosa e a complexidade quase sem fim da vida em terras estrangeiras, essas terras-mães nem sempre gentis para com seus filhos legítimos e ilegítimos que, por ora ou por gerações, se encontram destituídos de emprego, esperança e auto-estima.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Blogs

Quem tem medo dos blogs?

Dário Borim Jr. (dborim@umassd.edu
)

[Foto de Rick e Blanca, dois amantes dos blogs]

O título desta crônica tem um “que” de brincadeira, é claro. Afinal de contas, os blogs que habitam a grande rede de comunicação virtual não ameaçam nem escondem quaisquer armadilhas para nós, que até ontem éramos mortais. (Agora, com os blogs gratuitos, todos nós podemos virar imortais!)

Mas para que servem os blogs? Melhor seria perguntar: para que não servem os blogs? O indivíduo hoje pode ler uma notícia de jornal online e imediatamente mandar um comentário sobre ela, comentário que é publicado em segundos no próprio jornal. Mas os blogs servem a muitos propósitos. Professores, por exemplo, criam blogs para seus cursos com documentos que os alunos poderão acessar a qualquer momento.

Não faz muito tempo que eu mesmo passei a me interessar pelos blogs. Depois criei coragem para tentar estabelecer o meu próprio, através do portal totalmente gratuito, o Blogger:
http://www.blogspot.com/. Descobri que não era preciso obter um diploma do MIT para se ter uma página interativa na internet. Achei o processo bastante simples. Daí nasceu o Ponteio Cultural das minhas crônicas online: http://www.drborim.blogspot.com/.

Bom, um dos mais gratificantes aspectos da amizade é querer e poder compartilhar com amigos as nossas conquistas. Então, quando pude, convidei alguns deles a ver o quanto era fácil criar um blog e quanta satisfação era possível dele extrair. Primeiro me seguiu o conselho uma grandíssima amiga paulista, Wania Ribeiro*, que hoje publica seus belos poemas – como e quando bem entende, mas sempre para o grande deleite de seus alunos e amigos. Outro companheiro escolhido foi Rick Hogan, professor de filosofia que se aposentou da UMass Dartmouth alguns anos atrás. E não é que o Riquinho se tornou um grande fanático pelas liberdades e aventuras de se ter um blog?

Hoje, menos de cinco semanas depois de iniciar o seu blog, meu amigo Rick* já é capaz de fazer ali mil maravilhas. São centenas de páginas narrando viagens acumuladas ao longo de mais de quatro décadas pelos quatro cantos do globo, da África do Sul ao Tibete, ou do Egito à Patagônia. Ademais, nos deliciamos com centenas de fotografias – e até mesmo alguns de seus estudos filosóficos sobre Nietzsche (e outros mestres do pensamento) – também publicados ali. Sua paixão pelos blogs logo se estendeu a sua esposa, Blanca Rodriguez*, que se encontrava escrevendo um livro de receitas espanholas. Ela então passou a compor o seu próprio blog com todas aquelas apetitosas opções culinárias para milhares de mestres-cucas um dia experimentar.

É bom lembrar que quando lidamos com a internet e computadores em geral, nós, pessoas com mais de 40 anos de idade, não somos tão espertos quanto nossos filhos, cuja maioria nunca viu uma máquina de datilografia. Então é preciso ter paciência, porque inevitavelmente serão cometidos alguns erros no aprendizado. O importante é não perder a paciência e manter a perseverança. Quando eu mesmo ajudava Rick a criar o seu blog, de algum modo misturamos os códigos de identificação e personalização. Por quase uma hora nossas identidades estiveram cruzadas na grande rede. Quando Rick tentava abrir o seu blog (para desenvolvê-lo), caía logo no meu. E eu, quando tentava alterar algo no meu próprio blog, de repente me via diante da página ainda deserta do blog do meu amigo.

Não sei se os desvios foram efeitos de uns copos de vinho tinto. Mas o fato é que se devem controlar os nervos nessas horas, porque quase tudo se resolve na grande rede quando é mantida a calma e a graça. Sem desespero, somente um pouco de medo, Rick e eu logramos separar nossas identidades. A partir daí seus olhos adquiriram novo brilho e não houve mais limite para o seu prazer de publicar e imortalizar histórias e imagens de sua incrível jornada por esse largo e lascado planeta Terra.

*Wania Ribeiro’s Blog, Frutos do Coração: http://www.wboscariol.blogspot.com/
Rick’s Blog:
http://www.rhogan-ricksblog.blogspot.com/
Blog de Blanca:
http://blanca-blancarodriguezm.blogspot.com/




quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008




Sanduíches de letras

Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu

O que é que dá prazer à vida? Para alguns de nós, a lista é enorme. Para outros, nem tanto. Para terceiros, como alguns de meus conterrâneos, a resposta é muito simples: viver, sem querer viajar ou o que buscar fora do ninho. E não há nada de errado nisso, é claro, porque... bem, porque o que lhes dá prazer está ali mesmo, na cidade, bairro ou vilarejo onde moram: é a candura do convívio com parentes e amigos, em que não faltam boas anedotas, saborosas comidinhas, cerveja bem gelada, telenovela, ou futebol, e assim se vai levando a vida. Mas Paraguaçu, provavelmente como quase todas as cidades pequenas do mundo, também tem filhos radicados bem longe dali. Muitos de nós saímos por necessidades várias, mas principalmente por querermos melhores escolas ou melhores empregos. Alguns também se deixam levar por aventuras, como eu mesmo e meu colega de profissão e lazer, o professor Onésimo Teotónio Almeida, natural da ilha de São Miguel, dos Açores, que lançou recentemente mais um livro: Aventuras de um nabogador & outras estórias-em-sanduíches (Bertrand 2007).

Nossa profissão nos conduz a estudos muito sérios, acadêmicos que somos, com o objetivo de questionar e explicar livros e outros escritos. Acredito, entretanto, que, como eu, Onésimo também se veja longe de uma dedicação exclusiva a essa ocupação. No meu caso, em particular, fiz questão de colocar meu gosto pela escrita criativa no cerne de minha formação acadêmica. Graças ao reconhecimento dado ao creative writing no sistema universitário norte-americano, foi-me possível obter um de meus dois títulos de mestre nessa área. E por quê? Porque escrever histórias (sejam elas “reais” ou “inventadas”) me traz um enorme prazer. Onésimo, por seu turno, deixa claro em seu novo livro que escrever histórias (mesmo que as chame de estórias) só não é melhor que contá-las, ao vivo, cara a cara com os seus ouvintes. De fato, num congresso acadêmico aqui e ali, já presenciei e admirei os extraordinários talentos do colega na hora de narrar uma boa anedota. Porém, as suas Aventuras de um nabogador não deixam pra menos. As crônicas ali reunidas registram, com rara destreza e para a posteridade, a idéia e o testemunho de que é possível ser professor universitário e viver uma vida repleta de... aventuras.

Mas que tipo de aventuras? São assédios de uma aluna ninfomaníaca, sabotagens a um programa de rádio salazarista, pane de um avião em vôo transatlântico, exploração às cegas de uma selva sul-americana, etc., etc. Depois de ler suas dozes crônicas e os comentários que as antecedem ou as sucedem (formando as partes de um sanduíche de letras), melhor seria perguntar: que aventura não nos conta esse senhor parcialmente embrenhado no mundo dos livros, palestras, e múltiplas formalidades universitárias?

Em resumo, o cronista nos faz rir das enroscadas mirabolantes de quem trabalha com muita gente e viaja extensivamente, do Maine à Tailândia, da República Dominicana aos Açores, da Califórnia à Colômbia, e de Porto Rico a Rhode Island. E se considerarmos os inúmeros livros que o narrador lê e discute com peculiar humor e perspicácia, como bom e apaixonado professor de literatura que deve ser o Onésimo-de-carne-e-osso, então os quatro cantos do mundo se tornam seu fundo de quintal. Nós, leitores, que nos tornamos acompanhantes em suas travessias e seus refúgios, não queremos parar de ler. Queremos mais, até mesmo do próprio “pão” de cada crônica, porque o texto que apresenta cada um dos textos principais pode ser a melhor parte desse sanduíche de letras. Diante de tais plausíveis afeições, o que posso recomendar é o seguinte: uma segunda leitura de toda a obra, pois assim o sabor do recheio só poderá nos aumentar o paladar do pão, e vice-versa. Posted by Picasa

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008


Livros-filhos e amigos
Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu

Um dia, finalmente, o filho nasce. É aquele nosso primeiro livro sonhado e suado ao longo de muitos anos. Não é uma emoção tão intensa e maravilhosa quanto a do nascimento de um ser humano, cuja cor da pele, dos cabelos ou dos olhos possa dizer ao resto do mundo, “sim, ele vem de você; ele tem você nas entranhas”. O primeiro livro que publicamos, porém, nos expõe, e muito, principalmente a nós mesmos. Os holofotes caem sobre nós e temos que lidar com nossas inseguranças em momentos de glória. Recebemos carinho de futuros leitores e de amigos. Melhor, ainda, é a atenção que vem de leitores que já se tornaram amigos através de nossos escritos anteriormente publicados, em jornais e revistas, por exemplo. São amigos que surgiram sem a proximidade física, mas, sim, através das idéias compartilhadas, da empatia simpática e fortificante que nos inspira a escrever mais e a querer dialogar mais, apesar da correria ou do cinismo do mundo atual.

Meu primeiro rebento em forma de livro nasceu em dezembro de 2002, quase dez anos depois de me tornar pai, de verdade. Chama-se Paisagens humanas: crônicas de Paraguaçu e desse mundo afora (Ed. Papiro). Crônicas redigidas num período de vinte um anos se uniram em meio a um misto de emoções e pressões profissionais. Por um lado, nossa família ainda vivia as dores da perda precoce de minha irmã Ana Beatriz. Nosso pai completaria 80 anos naquele fim de 2002 e talvez o lançamento de um livro de um filho seu lhe trouxesse alguma alegria, o que de fato lhe aconteceu.

Por outro lado, eu atravessava talvez o momento mais delicado e imponderável na carreira de um professor universitário: a hora de solicitar tenure (estabilidade empregatícia, como se diz no Brasil). A turbulência daqueles dias passou e restou uma assertiva sensação de que a edição da obra tinha valido a pena, pois meus pais se libertaram do seu pesar momentaneamente e aproveitaram com grande entusiasmo o nascimento do “livro-neto”. Foi uma senhora festa aquela no Vale das Pedras, belo restaurante às margens do rio Sapucaí, no Sul de Minas. Ademais, também fui bem sucedido no pedido de promoção acadêmica junto à administração da UMass Dartmouth.

Agora, recentemente, pude apreciar a experiência de outra pessoa se tornando “pai” literário. Era a vez de um conterrâneo, muito amigo e querido, Delson Ribeiro de Andrade. Ele acabava de lançar Mochilas: o relato de uma aventura hippie nos anos setenta (Ed. Página Aberta, 2007). O livro narra eventos da sua própria vida transcorridos na velha Europa. Comumente chamado de “Brother”, ele é irmão do importante escritor mineiro Jeferson de Andrade. É dessas pessoas alegres e carismáticas, com enorme talento para contar histórias, tal qual seu pai, o teatrólogo Donato de Andrade.

Despretensioso, mas cativante, o Mochilas parece que nos convida a uma mesa de bar, onde vamos ouvir de um amigo as inúmeras peripécias de dois jovens companheiros que, aos vinte e poucos anos, partem do Rio de Janeiro rumo a Lisboa, com passagem marítima só de ida e 120 dólares no bolso. Em muitos países daquele continente e também no exótico Marrocos, eles sobreviveriam por mais de ano às duras custas, colhendo frutas ou vendendo brincos nas ruas, por exemplo. Ao mesmo tempo, se divertiriam nas incessantes descobertas de novas culturas e línguas de um mundo proibitivo (de tão caro e distante) aos pobres e à classe média brasileira durante os anos de ditadura militar.

Eu que vivi boa parte da adolescência escutando os relatos do Brother em primeira mão, redescobri no prazer de ler seu livro algumas das razões pelas quais eu próprio saíra do meu país em 1981, também com pouco mais de vinte e um anos de idade, em viagem arrojada e libertária pelas Américas do Sul e do Norte. Desta feita eu passaria sete domingos consecutivos em sete países diferentes, do Brasil ao Canadá. Pois, assim é a vida de muitos livros: nascem de deslocamentos do nosso “eu” e da interrupção da nossa rotina. Inspiram sonhos de viajantes e de progenitores das letras, como um rebento que vira trigo e vira pão, para depois alimentar os sonhos de novos inquietos e novos aventureiros.

Prazeres, Riscos e Danos

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