quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Gestos de amor


Era 18 de dezembro, 2004mais uma noite fria de quase inverno, como se as datas no calendário valessem a autoridade que assumem ao determinar o começo e o fim das estações.  Sete anos depois (hoje é dia 20 de dezembro), aqui mesmo em Dartmouth, na costa sul de Massachusetts, relembro a história por detrás de um livro que acaba de sair nos Estados Unidos. É a tradução que fiz para o idioma inglês da biografia escrita por Helena Jobim: Antonio Carlos Jobim: An Illuminated Man.
Para muita gente, essa época do ano é basicamente de alegria por conta da antecipação mental que se faz dos dias em que a família estará reunida, em clima de harmonia e descontração. Para outras pessoas, na melhor das hipóteses esse é um tempo de desassossego. Teme-se o que há de vir: ou a solidão, ou o desentendimento entre familiares, ou mesmo a saudade de quem está ausente ou já partiu desse mundo. Para quem mora longe e não pode estar com seus queridos, por exemplo, o desconforto desta estação de festas pode ser pungente. Fatores climáticos exacerbam a dor ainda mais. Pode ser a chuva incessante que anda caindo no sul e sudeste do Brasil, o tom cinza predominante na paisagem ou o frio rigoroso que, por aqui, com neve ou sem neve, é acompanhado de uma escuridão deprimente a encobrir as ruas e os campos até mesmo antes das quatro horas da tarde.
Naquele dia 18 eu pensava em meu saudoso amigo Roberto Reis, professor e orientador no doutorado que eu fazia na Universidade de Minnesota. Ele morrera também 10 anos antes, em 1994, apenas duas semanas após o falecimento de Tom Jobim. Foi, então, que escrevi uma resenha, em inglês, do livro de Helena Jobim, que até a data só tinha edições em português e japonês. A vida e a morte de Jobim narradas em linguagem poética e dramática pediam-me uma reação, a expressão da minha própria dor que crescia a cada minuto porque se unia àquela de uma irmã desolada pela morte do adorado irmão, cuja música era venerada nos quatro cantos do mundo, mas, principalmente, cuja ausência lhe resfriava a alma de tal maneira que a empurrava à beira do paroxismo, um abismo emocional.
Três anos e meio mais tarde, eu passava férias em Paraguaçu. Certo dia, precisamente a 16 de junho de 2008, eu lia meus emails numa lan-house perto da Praça Oswaldo Costa, quando me deparei com uma mensagem enviada por alguém que não pertencia ao meu círculo de amigos. Eu estava pronto para enviá-la ao lixo cibernético quando decidi verificar do que se tratava: "Dear Sir, I read your 2005 review of Helena Jobim's memoir, and found it fascinating. My research finds no English-translated edition. If you know of one, would you be so kind as to direct me to that source? Sincerely, Robert Lamm." Era um email que, ao mesmo tempo, elogiava minha resenha da edição brasileira do livro de Helena Jobim e me perguntava se eu sabia da existência de uma tradução inglesa daquela obra.
Bastante lisonjeado, respondi imediatamente.  Também estava levemente frustrado por não poder ajudar com a indicação de uma versão do texto para o idioma em que o meu leitor também pudesse ler a biografia poética e apaixonada de Tom Jobim. Logo após mandar o meu email, resolvi fazer uma pesquisa na internet a respeito do meu leitor. Que surpresa me esperava! Logo descobri que Robert Lamm era o pianista, vocalista e fundador do Chicago, banda que nós (bem comportados) ouvíamos em nossas festas dançantes em Paraguaçu, e (bem menos comportados) curtíamos nas nossas repúblicas em Belo Horizonte.
Aquela surpresa seria apenas o início de uma série de desencadeamentos. Através da mesma mágica pós-moderna da internet eu sei que, no horário de Brasília, Robert me escreveu de Cincinnatti, Ohio, às 16h28. Li seu email e, sem muita demora, o respondi às 18h50 (ainda sem saber ao certo quem era Robert Lamm). Sugeri a leitura de uma crônica sobre Tom Jobim que eu havia publicado na revista Brazzil, de Los Angeles, em inglês. Também já revelava naquele email o meu interesse em traduzir o livro de Helena. 
Às 20h26 eu escreveria um segundo email a Robert Lamm, antes mesmo de receber sua resposta ao meu primeiro, dizendo-lhe que Chicago tinha sido uma das nossas bandas favoritas nos anos 70. Ainda naquele dia 16 Robert me responderia às 23h51, com múltiplas informações sobre suas ligações com a bossa nova, sua amizade e parcerias com Marcos Valle, e sua disposição para me ajudar a fazer e publicar a desejada tradução, que se transformou em belo e elegante livro de 300 páginas, 80 fotografias, lançado pela maior editora de partituras do mundo, a Hal Leonard. Está agora à venda em todo o mundo por meio de dezenas de livrarias virtuais, inclusive esta, sediada em Londres, que oferece o livro por apenas 22 dólares, sem cobrar frete nacional ou internacional: www.bookdepository.com.
Robert Lamm e eu mantivemos assíduo contato nas próximas semanas. Ele e seu grupo Chicago faziam uma tourné mundial. Por isso hoje eu recebia um email dele, vindo Tóquio, amanhã, de Copenhague, dois dias depois, de Londres, e assim por diante. Robert obteve o número de telefone de Helena e sugeriu-me editoras. Até mesmo doou dinheiro à Universidade de Massachusetts Dartmouth para que eu oferecesse um curso a menos no outono de 2008 e, portanto, me ocupasse com a tradução da obra a partir de setembro. Nesse mesmo mês tive a felicidade de conhecer e jantar, na casa de minha irmã Silvinha e cunhado José Codo, com Helena Jobim e seu marido, Manoel Malaguti, homem muito simpático e entusiasmado com o projeto de tradução. Infelizmente ele viria a falecer pouco mais de um ano depois daquela memorável noite em Belo Horizonte.
Devo concluir que pude realizar um sonho a partir da generosidade de um grande músico e de uma simples resenha em forma de tributo a um gênio da música universal. Era também a catarse de uma tristeza multifacetada: os falecimentos de Roberto Reis e Tom Jobim, além da melancolia de inverno e fim de ano. Entre outras lições, aprendi que quando se diz ou se realiza algo por afeição e em busca de paz de espírito, cria-se um efeito cascata. As águas poderão rolar ad infinitum, e nunca se saberá até onde poderão chegar as consequências de um gesto de bem, de ternura, e de amor.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Antonio Carlos Jobim: An Illuminated Man







Antonio Carlos Jobim: An Illuminated Man

(by Helena Jobim, published by Hal Leonard, 2011)

Translator's Note

Dário Borim Jr.
University of Massachusetts Dartmouth and WUMD

WHILE LISTENING TO ANTHOLOGICAL RENDITIONS of bossa nova classics by Ella Fitzgerald, Stan Getz, João Gilberto, Dizzy Gillespie, Oscar Peterson, and Sarah Vaughan, among others, I read Helena Jobim’s elegant
Portuguese prose about the genesis of true gems of twentieth-century music. After every other minute, I was further enthused to re-create, in English, such fascinating story lines that explained the writing of “Dindi,” “Desafinado,” or “The Girl from Ipanema.” Moments of such sensorial and intellectual bliss had been extremely rare in my life as writer, literary critic, translator, and radio producer.

It was not always an easy spell, though. Antonio Carlos Jobim was someone else who knew all too well the perils and powers of translation. He always sought the most competent professionals in the business, such as lyricists Ray Gilbert, Norman Gimbel, and Gene Lees, to make his songs shine in meaning and elegance in the English language. He, himself, worked diligently on several of the new versions proposed for his lyrics.He understood the lights and shadows, especially the cultural and linguistic aspects, of literary translation, which demands cuts and additions, welcomes similarities and differences, but cannot refrain from gains and losses. As a result, many stanzas of “Águas de março” and “Waters of March,” for example, are not the same. Although they differ considerably even in length, the two poems display much more in common than the literal images they convey. Most significantly,
neither is superior to the other.

Translating this book has been as daunting as any other translation task, except for the fact that Helena Jobim is an award-winning writer and her brother is regarded by many critics as one of the greatest composers of the twentieth century. So, I definitely gave my heart and soul to this mission, but not without the support from the University of Massachusetts Dartmouth and several individuals. My thanks go to John Cerullo, for trusting this project, plus Iris Bass, Jessica Burr, Mike Edison, and all other Hal Leonard staff who have helped make this volume what it is visually and otherwise. For various acts of kindness and expertise I am indebted to Helena Jobim herself, her husband, Manoel Malaguti (in memoriam), Marco Feitosa, Thereza Otero Hermanny, Ana Lontra Jobim, and Cristina Rocha, in Brazil; and Ann Fifield, Kassandra Hartford, Maureen Hall, Rick Hogan, Janet Homer, Christopher Larkosh, and Charles Perrone, here in the United States.  Most of all, I am grateful for the generosity and inspiration from pianist and singersongwriter Robert Lamm, one of the founding members of the legendary  group Chicago.

domingo, 20 de novembro de 2011

De que ano mesmo?




Dário Borim Jr.

O quê? Já se fala em festas de fim de ano? Que ano? Outro dia me perguntei: em que ano estamos? Vocês até podem pensar que este cronista perdeu a cabeça, ou que ele está parodiando a mente de um típico professor universitário, compenetrado nos seus estudos mas avoado para o resto do mundo ao seu redor. Mas é verdade, esqueci mesmo, ou, para ser mais exato, fiquei numa dúvida cruel: agora é 2011 ou 2012? Cuidado, não deixem que isso lhes aconteça. Lembrem-se de Vinicius de Moraes. Ele dizia "que a coisa mais divina que há no mundo / é viver cada segundo como nunca mais". Tudo bem, Poetinha, estou com você, mas o que fazer se cada segundo que passa corre tão depressa que o próprio tempo parece escorrer por entre os dedos sem que tenhamos o prazer segurá-lo por um segundo sequer?
Enquanto Caetano Veloso diz que o tempo é "compositor de destinos / tambor de todos os ritmos", fico a meditar na natureza tão escorregadia desse elemento "tão inventivo" que se mostra "contínuo" sem o ser. Aliás, para mim o tempo não existe senão como forma de referência ao percebermos tudo o que se move, nasce ou se transforma (ou deixa de fazê-lo). Então, quando pouco ou nada disso ocorre (quando nada parece acontecer ao nosso redor), o tempo gruda, feito trepadeira em tronco de laranjeira, ou caminha manso, feito tartaruga sob sol quente. Para muita gente, tempo assim é bem-vindo, é tempo de paz, é tempo de desapego.
Não nasci para aquilo não. Lembro de um livro que li aos 20 e poucos anos, O Castelo de Axel, presente que recebi de um professor de literatura americana da UFMG, Thomas Burns -- obra publicada em 1931 pelo famoso crítico norte-americano Edmund Wilson (1895-1972). Wilson falava que para os escritores da década de 1920, a chamada Geração Perdida, como Ernest Hemingway, William Faulkner, e Scott Fitzgerald, o maior medo não era nem o da dor nem o do sofrimento, mas sim o da mesmice e do tédio. Aventura, risco, luta, e descobrimento, era isso que lhes dava sabor à vida e os impulsionava a escrever.
Lá pelos anos 80 eu já me identificava com aqueles expoentes das letras estadunidenses. O que eu não sabia era que minha vida pessoal e profissional (enquanto professor de literatura e cultura brasileiras no país de todos eles) se tornaria tão agitada e rica de desafios que me faria esquecer em que ano estamos. Decidi hoje à noite que, antes que 2011 acabe, é preciso voltar no tempo e reconhecer o que se moveu, nasceu ou se transformou ao meu redor neste segundo semestre.
Mal tinha regressado de minhas férias no Brasil, e eu já recebia e era responsável pela visita cultural de sete membros da Casa Grande, uma bela fundação sócio-educacional criada no sertão do Ceará. Aqui estiveram por uma semana inteira. Poucas semanas depois, eu faria um especial de rádio de três horas com música de Ivan Lins. A seguir, veio-me uma viagem a Nova Iorque, para o casamento de um cunhado em memorável cerimônia realizada em um barco que rodeava a ilha de Manhattan sob intensa neve. No fim de semana seguinte, desloquei-me para uma conferência em um congresso trans-disciplinar no estado de New Hampshire. Três dias depois de voltar de lá, sairia para outro congresso, esse na Universidade de Londres.
Ao longo desses meses, escrevi umas crônicas, dei minhas aulas, atuei como chefe de departamento, mas, principalmente, também conclui os trabalhos para edição de meu primeiro livro em inglês, a tradução da biografia Antonio Carlos Jobim: Um Homem Iluminado, escrito pela sua irmã, Helena Jobim. A vida não pára, e no momento cuido dos detalhes de duas conferências que estou organizando para a primeira metade do mês de dezembro, uma delas, com o distinto pesquisador Charles A. Perrone, lançando o livro que para sempre une dois famosos membros da família Jobim a um irrequieto filho da família Borim (a rima é perfeita). E tem mais. Uma editora paulista anda me cobrando um livro crítico sobre crônicas, pelo qual já temos contrato assinado. Queriam o manuscrito para meados de dezembro. Socorro, eu vou lhes dizer em um e-mail amanhã. Só dá para sair em fins de janeiro, na melhor das hipóteses. De que ano mesmo?

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Woodstock de Paraguaçu

Fotos de Alexandre Borim Codo Dias


Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu 


As analogias não são meras tentativas de dizer algo por comparação, apesar de que, por natureza, sejam incompletas: exageram um pouquinho aqui ou se esquecem daquilo ali. Mesmo assim não as abandonamos porque podem explicar algo em poucas palavras ou tornar a comunicação mais picante, mais audaciosa. Por isso digo que o espetáculo organizado por minha prima (e primeira professora) Selma Sólia Násser em homenagem aos cem anos da música e dos músicos da nossa cidade foi, como bem o disse meu cunhado José Codo, o Woodstock de Paraguaçu.
Não havia roqueiro drogado, não se endeusaram mágicos malucos, não fizeram o show ao ar livre, não rolou sexo livre, e a cantoria não durou três dias. Porém, foram três horas de deleite inebriante, de prazer sensorial superior a muito amor carnal que "fica" por aí. O "Cem Anos de Música" realizou-se num teatro muito charmoso, e fez tributo a muita gente talentosa (como José Purífico e Célia Prado) que já faleceu há décadas. Como em Woodstock, entretanto, ouviu-se muita música boa, reuniram-se, ao vivo ou através do telão, um grande número de artistas, e ficaram para sempre gravadas na memória do público a melodia e a poesia de um povo tão extraordinariamente ligado a música.
Foi o nosso Woodstock, sim, principalmente, porque, infelizmente, podemos crer que jamais haverá outro, já que Paraguaçu não fará 100 anos outra vez e, quando outro número redondo assim surgir na nossa história, digamos, quando a cidade comemorar seus 150 ou 200 anos, estaremos todos ou quase todos nós mortos, bem mortinhos. Mais grave ainda: certamente não haverá outra Selma Sólia Násser para organizar tão bem um evento de tanta importância e tanta complexidade artística como foi o nosso Woodstock, realizado a 24 de setembro de 2011, no Teatro Donato Andrade.
Aceita aquela ideia geral de analogia, quem sabe encontremos outros pontos de contraste e semelhança. Ao invés de Jimmy Hendrix tocando a guitarra com os dentes, ou sapecando o hino nacional dos Estados Unidos em acordes dissonantes (visto a sua indignação com o papel do seu país na Guerra do Vitenã), tivemos um Rogerinho Salles cantando "Emoções" de Roberto Carlos e levando a platéia ao delírio (como diria Galvão Bueno) ao espalhar pétalas de rosas por onde passava. Se o festival de música numa zona rural do estado de Nova Iorque teve umas Mamas em Papas cantando "California Dreaming" ou qualquer outro de seus grandes sucessos, o Woodstock de Paraguaçu teve as gloriosas GANDS, banda lendária dos anos 60 que jamais deveria ter interrompido sua carreira musical. 
Entre os que estavam vivos àquela época e presentes aos sensacionais programas de domingo na Liga Operaria (a série Donato de Andrade Show), e que permaneceram vivos e espertos o suficiente para não perderem o grande evento na Praça Osvaldo Costa, inclusive meus pais, Dário e Lucci, não havia dúvida: Glória Sólia, Ângela Morais, Níobe Cardoso, Daciene Mendes e Sílvia Borim (mantendo-se os nomes daquela época) continuam súper-talentosas e ultra-charmosas. As GANDS arrasaram, como disseram muitos espectadores depois que voltaram para suas casas e se deram conta de que tinham presenciado um evento histórico da melhor qualidade e da maior importância para nossa cidade.
Por um momento, tantos de nós Paraguaçuenses ausentes, como Cristina Schmidt, em Goiânia, Lília Borim, em São Paulo, Rosa Mignacca, ou este saudoso cronista-professor-DJ, em Dartmouth, Massachusetts, desejamos que, diferente de Woodstock, o festival de música de Paraguaçu se repetisse, sim, e logo! À distância nós ficamos muito felizes com o videoclipe "Cem Anos de Música," realizado por Selma Sólia Násser e narrado por Gresse Leite Prado, mais um belo registro histórico que nosso querido e sábio Guilherme Prado editou e postou no FaceBook exatamente no mesmo dia em que o grande musical encantou a centenas de pessoas, em pé ou assentados, ao Teatro Donato Andrade. Ficamos muitíssimo gratos por essa canja audiovisual, maravilhosamente acessível pela mágica da internet aos quatro cantos do mundo, mas, sinceramente, queremos mais, queremos um segundo Woodstock de Paraguaçu, já -- uma segunda edição dos Cem Anos de Música para quem perdeu a primeira e para quem dela saiu com uma convicção e um desejo: "bom também, e queremos mais!"

quarta-feira, 27 de julho de 2011

O espírito americano


O espírito americano

Dário Borim Jr.

dborim@umassd.edu

Países extensos como os nossos, Brasil e Estados Unidos, oferecem-nos o mito dos campos abertos, das matas sem fim, e das estradas que não acabam mais. Parece que fica mais fácil sonhar com longas viagens em que veremos o desconhecido por infindáveis dias, semanas, ou até meses. Sonhar é uma coisa. Pegar no volante ou colar o traseiro num banco de passageiro por muitas horas, dia após dia, é outra. Chamo isto de espírito americano porque vejo mais desse fenômeno por aqui, ao norte do equador, do que aí, do Oiapoque ao Arroio Chuí.
Engraçado: será que o fenômeno é genético ou cultural? É que mês e meio atrás meu filho mais velho pôs em prática aquele espírito americano. Sei que Ian é filho de gente que gosta de estrada, gente que já mudou de casa, cidade, estado e país muitas vezes (sete vezes entre 1995 e 2001, por exemplo). Mas sendo ele filho de homem brasileiro e mulher americana, e tendo ele vivido tanto na América do Sul quanto na América do Norte, torna-se difícil atribuir a origem de tal espírito exclusivamente aos seus genes ou aos seus diferentes ambientes de criação.
O fato é que o rapaz convidou-me para acompanhá-lo numa longa viagem de carro até Manchester, uma cidade no estado do Tennessee, situada a 1.700 quilômetros de onde moramos, Dartmouth, Massachusetts. Haveria o famoso Bonnaroo Festival. Eu estava bem disposto a fazer-lhe companhia e desfrutar de um belo festival de música pop de quatro dias e quatro noites. Muita gente boa subiria ao palco, inclusive o canadense Neil Young. Por conta de um inevitável compromisso junto à universidade naqueles dias, não pude aceitar o convite. Ele não se intimidou,
“Problema não, pai. Vou sozinho.”
Com certeza não havia nem como tentar despersuadi-lo. Ele mesmo já tinha comprado ingressos que não eram nada baratos. Sobretudo, sabíamos muito bem como sua personalidade é muito forte e sua determinação (pra não dizer teimosia) era conhecida desde os tempos em que ele nem sabia falar direito o inglês ou o português. Naquela época em que ele e eu passeávamos de mãos dadas pelas ruas de Minneapolis, o danadinho já queria me mostrar em que ruas e em que direção nós deveríamos seguir. Sem exagero, aos dois anos e meio de idade o rapazinho já queria decidir o que seus pais deveriam comer quando íamos os três a um McDonald’s.
Então o que podíamos fazer, fizemos. Dono de um belo, mas velho carro, um Volvo verde 1999, Ian estaria mais seguro se viajasse na nossa van, a Entourage, da Hyundai, feita para sete passageiros. Com os bancos de trás embutidos, ele poderia dormir cinco noites muito bem utilizando um sleeping bag. O jovem prometeu que nos mandaria pelo menos dois torpedos diários. Assim o fez, e deu tudo certo. Seis dias depois de partir, cá estava de volta à casa. Aliviados e orgulhosos de sua bravura e sucesso, nós o recebemos repleto de sorrisos e de histórias.
Pais de filho-peixe, peixes também os são, não é? Chegou a nossa hora: Ann e eu, mais o nosso cão gigante, Sam, faríamos uma viagem de carro até Duluth, no estado de Minnesota, que fica a pouco mais de 2.200 quilômetros daqui de Dartmouth. Lá veio de novo o espírito americano. Ann decidiu que dava para fazer direto, dirigir sem parar a não ser para comer e usar o toalete. Sendo eu apenas um ex-rapaz de Paraguaçu, achei aquilo muito estranho, mas topei, porque afinal de contas também adoro estrada, e parece que nasci com sede de aventura. E não é que foi uma ótima opção? Quando um conduzia, o outro dormia. Sam, o constante vigilante rodoviário, de vez em quando roçava o focinho frio nos braços do motorista de plantão e assim prevenia o sono fatal. Ele mesmo não comeu nem dormiu um minuto sequer durante todo o trajeto.
Tínhamos saído sexta-feira, dia 15 de julho, pelas seis horas da tarde na direção noroeste, rumo ao Canadá. Atravessamos a fronteira logo após a cidade de Búfalo, no estado de Nova Iorque, pelas duas da madrugada, depois de um desnecessário misto de susto, desconforto e perplexidade. O oficial de fronteira canadense nos recebeu como se fôssemos dois possíveis criminosos. Sisudo, rude e desconfiado desde o primeiro instante, o baixinho de farda e colete à prova de balas deu vazão a sua estupidez com essa pergunta:
“Vocês estão carregando um daqueles sprays de pimenta?”
Quando, espantados, dissemos que não, ele não se contentou, e soltou mais essa pergunta estapafúrdia:
“Vocês têm alguma coisa contra sprays de pimenta?”
Caramba, de onde é que lhe veio essa idéia de que poderíamos estar carregando esse tipo de pistola para auto-segurança? O homem era muito estranho. Parecia cuspir ódio pelos olhos. Deixou-nos entrar no seu belo país, mas antes nos atirou mais essas duas perguntas:
“Vocês estão carregando armas? Vocês têm armas em casa?”
Na noite de sábado, vinte e seis horas depois da partida, nós chegávamos à aconchegante Duluth, cidade que, entre todas, mundo afora, possui o cais comercial mais distante da costa. A cerca de 2.000 quilômetros, seu cais recebe navios transatlânticos. No Canadá eles descem o Canal do Rio São Lourenço, atravessam os cinco Grandes Lagos, e assim transportam minério de ferro e grãos para o resto do planeta. Com certeza Duluth também recebe outros viajantes que vêm de muito longe, como nós, que vimos nove veados mortos à beira do asfalto. Por ali também encontramos dois lindos ursos negros— livres, alegres e aventureiros filhotes a salpicar sob um escaldante sol de verão pelas estradas da vida.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Hospedar também é viajar





Dário Borim Jr
dborim@umassd.edu

Depois de 20 anos, uma nova “comitiva” brasileira estava para visitar o Darinho e sua família nos Estados Unidos. Em julho de 1991, dois de meus primos já falecidos, Zozó e Rejane, se encontravam nos EUA e também puderam ir a Minnesota, no Meio-Oeste, onde eu morava há três anos. Foram quatro os membros da família Mendes-Borim, entretanto, que sairiam diretamente do Brasil para o meu casamento em Duluth: pai, mãe, e minhas irmãs mais velhas, Silvana e Silvinha. Naquela ocasião a graça da chegada foi ver meu pai desembarcar em Minneapolis mascando chicletes, ele que sempre achou esse hábito um tanto, vamos dizer, “indecoroso”. Ele seguira à risca as recomendações: o movimento dos maxilares era ótimo para evitar as dores de ouvido na hora da decolagem e pouso do avião.



Desta feita, já em pleno século XXI, a primeira graça foi a que se passou em Miami. Aquela era uma gang de seis turistas. Para ser sincero, não tinham pinta de sacoleiros do Paraguai, mas, com certeza, revelariam simpáticos perfis de ávidos consumistas de roupas e eletrônicos do tal primeiro mundo. A gang se dividira em grupos de três diante dos agentes da imigração. Um dos agentes perguntou a um dos trios quanto tempo eles pretendiam permanecer. O dr. Francis Gonçalves, marido de minha sobrinha Cristina, quis praticar o inglês. Cansado ou distraído, em vez de dizer “treze dias”, respondeu: “treze anos”. É claro que se o agente de imigração o levasse a sério certamente pediria ao jovem médico para voltar para o Brasil, já que os Estados Unidos já estavam cheios de imigrantes ilegais. Tudo se resolveu logo, e o disparate do doutor só deu mesmo em risadas de lado a lado.

Já em Boston eu os apanhei todos de uma vez. Ainda bem que americano tem mania de grandeza, pois os seis viajantes brasileiros, suas bagagens e eu coubemos muito bem na nossa Entourage, uma confortável van de marca Hyundai. Foi o início dos vários dias e noites em que os visitados tinham tanto ou mais prazer ainda do que os visitantes. Quem viaja passa por uma descoberta de lugares, comidas, bebidas, pessoas, estilos de vida, mas, principalmente, de si mesmo, já que muitas coisas desafiam o sistema de referências que o indivíduo traz de casa. Há, também, muita atividade na cabeça e no coração de quem hospeda os viajantes, principalmente aqueles a quem conhecemos bem e de quem muito gostamos. O ser visitado passa a ver o mundo ao seu redor através dos olhos dos visitantes, e vice-versa, dialeticamente.
Hospedar também é viajar. Minha felicidade era enorme, pois aqui estavam pessoas com quem convivo intensamente quando visito o Brasil, e as quero todas muito bem. Através delas pude ver minha própria vida e meu cantinho por outros olhos, novas perspectivas que trazem rejuvenescimento e reavaliação de premissas desbotadas pela ação do cotidiano. Tendemos a desprezar a beleza e o valor das coisas porque as tomamos como corriqueiras e inerentes à vida que se leva. Exemplo: a própria van. Seu tamanho, motor silencioso e conforto não significavam mais nada, até que alguns dos seis brasileiros dissessem que aquele carro era mesmo “maravilhoso”. Talvez tenha sido por isso mesmo que poucos dias após a partida dos visitantes senti a necessidade de dar uma volta pela cidade onde moro e registrar em fotografias as cores e as formas de uma primavera exuberante, que dura poucas semanas. Eu a via agora ainda mais entusiasmado, já que ela não existe como tal em meu país de origem e a vida é curta demais para fecharmos os olhos ao belo e ao singelo que nos rodeiam.
A satisfação de aqui nos Estados Unidos poder apresentar aos meus melhores amigos, de uma vez só, a minha irmã Silvinha, o cunhado José, o sobrinho Alexandre, a sobrinha Cristina, seu marido, e seu tio João (que conheço há quase 40 anos), foi absolutamente inesquecível. Mostrar-lhes onde vivemos há quase 11 anos, inclusive os bares e restaurantes, as praias e as escolas, os rios e as matas – tudo isso teve um sabor de êxtase, de alegria sem medida. 



Talvez na melhor dessas cenas, o “filhote” Ian (de dezoito anos e quase de 1.90m de altura) jogava uma partida de um campeonato estadual de futebol na pitoresca região do Cabo Bacalhau (Cape Cod). Quase fim de jogo, sua equipe tem uma falta a cobrar bem distante do gol adversário. A torcida de nove brasileiros ou semi-brasileiros (os seis do Brasil e os três daqui, Ann, Zach e eu) pede em coro que Ian cobre a falta. Ele pede ao técnico. Positivo. A torcida, então, exige que ele chute direto ao gol. Ele gesticula ao técnico, que lhe dá permissão. Ian corre e bate de trivela (com os três dedões do pé direito). A bola sobe e vai descendo em curva vertical e horizontal. Sem chance, o goleiro cai abatido, e a bola entra no fundo da rede, depois de passar pelo ângulo superior do segundo poste. Uau! A galera, auxiliada por duas apaixonadas avós portuguesas, vai à loucura!

terça-feira, 10 de maio de 2011

Londres não é só para inglês ver



Dário Borim Jr.





Estes são os meus últimos 30 minutos em Londres – até a próxima visita, é claro. Vida de professor universitário foi o que eu escolhi depois de bater a cabeça noutras portas. Em momentos como este, no aeroporto de Heathrow, enquanto espero meu vôo para Boston, tenho plena consciência de que acertei na pinta. Esse negócio é bom demais. Gente como eu nunca vai acumular riqueza. A gente sofre uns bons bocados, pois passa por umas chateações políticas e burocráticas, e tem que sobreviver publicando, senão é esmagado pelo sistema. Mas, na hora de poder escolher onde apresentar nossas pesquisas e teorias, muitos de nós pensamos, naturalmente, em viajar, com quase todas as despesas pagas pela Universidade, a países que nos parecem atraentes. E assim nossas vidas adquirem outro sabor.

Mais um congresso me trouxe, na terça-feira passada, a Grã-Bretanha. Bem, sejamos mais precisos: mais uma vez eu escolhi vir apresentar um trabalho nessa parte do planeta. Eu poderia ter escolhido ir a Viena em julho, ou a China em setembro. Quem sabe um dia por lá estarei. Por ora me contentei em desfrutar do que nos pode oferecer o mundo anglófono. Às vezes me pergunto se numa das minhas últimas encarnações não fui celta, bretão, ou mesmo americano.

O fato é que minha terceira passagem pela Grã-Bretanha me dá mais motivos para refletir sobre a minha “budista” origem inglesa – tudo isso, claro, com uma devida dose de imaginação e humor. Confesso que estou numa danada “ressaca emocional,” daquelas que me chegam depois de uma noitada ou mesmo de vários dias de muita alegria e aventura. Meus dias aqui foram realmente intensos, e para compor uma narrativa de todas ou mesmo da maioria das minhas experiências e reflexões nem teria espaço para essa crônica de jornal.

É verdade que em Massachusetts eu andava tão apertado de trabalho na Universidade, nas duas ou três semanas anteriores ao embarque, que mal pude antecipar mentalmente as delícias da viagem. Isso é mal, porque boa parte das coisas prazerosas da vida vem antes delas, vem da alegria que temos ao pensar nelas, ao vivê-las na mente e no coração, espaços onde não há limites ou fronteiras. Mas não posso reclamar. As emoções que tive em cinco dias inteiros em Londres me compensaram por qualquer “atraso” desse tipo.

Já no primeiro dia pude aproveitar o tempo bom, fresco, sem mais que uns rápidos e tímidos chuviscos, e pude fazer o que mais me atrai ao ar livre: andar, andar, e andar. Num país estrangeiro – aliás, como vivo no estrangeiro, devo dizer, em um país ainda mais estrangeiro que meu país estrangeiro – nem foi preciso ouvir meu I-Pod para me embalar pelas ruas. De fato, música saindo de um headphone seria um terrível filtro, um cabresto auditivo, porque há tantos sons a se perceber numa rua estrangeira quanto há cores, formas, aromas e movimentos, de coisas e de pessoas, que nos fazem descobrir o novo a cada segundo e a cada passo.

O tempo seco tem sido um fenômeno agradabilíssimo, mas meio raro, na cidade de Londres, dizem os jornais. Aqui chove muito e, principalmente, na primavera. Andar e andar na chuva são duas coisas muito diferentes. Lembro bem que foi com a mesma sorte que também me aproveitei do mundo seco, florido e ensolarado das avenidas de Dublim, dois anos atrás. Tivemos lá seis dias de sol em seguida, que fizeram muitos dublinenses pensar que Deus era irlandês. Desta vez, já deve ter londrino imaginando que Deus está sendo muito generoso com os fãs da família real e proporcionando a eles uma lua de mel, uma “lua de sol” para comemorar direito o casamento dos pombinhos Kate e Williams, aqueles belos seres sustentados pelo dinheiro do povo.

Então foi ao passear na minha primeira tarde londrina desde 2007 – sempre de antenas ligadas – ao longo de uma simpática avenida do centro histórico, a Shaftesbury, que notei que uma peça de teatro estava para se iniciar em 20 minutos no belo e tradicional Teatro Palace. A propaganda sobre a platibanda do prédio era muito chamativa: um enorme e brilhante sapato de salto alto azul piscina. Anunciava o musical Priscilla, a Rainha do Deserto. Não vacilei: um espetáculo vencedor de vários e importantes prêmios, com 25 drag queens, não era para deixar passar. 

Já que meu principal motivo para estar na Inglaterra era a palestra que daria num congresso de estudos feministas na Universidade Londres, a chance era excelente de eu logo fazer uma imersão de duas horas e meia no humor, música e dança do espalhafatoso e maravilhoso mundo gay, ali, a meu dispor, por 20 libras. Paguei pra ver e não deu outra: adorei. A produção era excelente. O repertório musical, da melhor discoteca dos anos 70. O cenário, altamente criativo, mutante, mirabolante, tinha tudo de barango-chique e fantástico high-tech, com gente voando ou descendo dos céus, ônibus multicolorido em pleno palco, etc. O elenco e o corpo de dançarinos eram, obviamente, de primeira linha. Mais uma vez valeu a pena ter caminhado com os olhos bem abertos e os ouvidos desobstruídos para descobrir e curtir o mundo da rua, ainda mais em Londres, que, realmente, não é só para inglês ver.

sábado, 26 de março de 2011

Eu te amo



Já ouviu essas palavras dirigidas a você, olhos nos olhos? Acreditou nelas? Tem coisa melhor? Você já disse aquelas três palavrinhas sem desviar o olhar para o canto da sala? Foram levadas a sério? O que você está esperando? Por que temos medo de expressar o amor abertamente? Deixo as respostas claras e objetivas para as psicólogas da família, Carla e Silvana. 
   Meu negócio é contar histórias, mesmo que para sobreviver eu tenha escolhido a profissão de professor e mesmo que, por graças divinas, eu tenha tido a chance de ministrar e desfrutar de um curso de pós-graduação sobre a paixão. Temos lido muitas teorias e poemas sobre aquele tema apaixonante, mas, melhor ainda tem sido aqui e ali – no corredor ou no meu escritório, por exemplo – ouvir alguns casos de amor “de arrepiar”. O assunto mexe com quase todas as pessoas.  Ao final da nossa aula inaugural, portanto, quando mal tínhamos iniciado o curso, a aluna Nélia Alves passou por mim e me disse,
“Professor, não sei quantos relacionamentos vão sobreviver a esse curso!”
Eu não sabia o que lhe dizer.
Hoje em dia as pessoas podem vivenciar uma paixão e de fato escrever ou dizer “eu te amo” de diversos modos – muitas vezes, por meios eletrônicos. As pessoas podem estar distantes, em diferentes cantos do mundo, por exemplo, ou na mesma cidade ou até no mesmo prédio. Aparentemente a mídia social e intelectual (do tipo FaceBook, MySpace, Orkut e YouTube) chegou para ficar e dominar os processos de comunicação e, em particular, de amizade e romance. A inspiração para esta crônica, aliás, veio-me de um link a um vídeo, o comercial de Yasmin Ahmad, documentarista da Malásia, vencedor do Leão de Ouro no Festival de Cannes de 2008. Disponível no YouTube, o vídeo foi postado por uma ex-aluna, uma amiga portuguesa muito querida, Sandra Sousa. Quase que imediatamente espalhei aquele link, www.youtube.com/watch?v=3fo3WJ1orvk, pela minha própria página no FaceBook. Quatro amigas se manifestaram a respeito dele: duas delas, Ana Catarina Teixeira e Débora Ferreira, lá de Utah, nas Montanhas Rochosas; a Catherine Kolar, do norte de Minnesota; e outra, de Londres, a Rosa Mignacca.
O vídeo, de um minuto e 43 segundos, primeiro mostra a pergunta: “Você tem medo de dizer ‘eu te amo’?” Depois escreve em branco sobre uma tela negra: “Tan Hong Min apaixonado,” menino que então será entrevistado em inglês por uma mulher anônima e invisível. Talvez aos seis ou sete anos de idade, ele diz,
“O nome dela é Umi. Umi Qazerina”.
“Por que você gosta dela?”
“Ela tem brincos e rabo de cavalo. Ela é bonita.”
“O que você gostaria de falar para ela?”  
Sorrindo, meio embaraçado, responde:
“Você quer sair comigo?” E acrescenta: “Para um jantar romântico”.
“Ela sabe que você gosta dela?”
“Não. Deixo em segredo.”
“Por quê?”
“Não quero que o mundo inteiro saiba.”
“Por que não?”
“Por que todos iriam rir de mim.”
“Por que eles iriam rir de você?”
“Porque ela não gosta de mim.”
Em seguida, uma garotinha de rabo de cavalo  se apresenta no vídeo:
“Meu nome é Umi Qazerina.”
A entrevistadora pergunta-lhe,
“Quem é seu melhor amigo?”
“Tan. Tan Hong Min.”
Quando a mulher lhe pergunta, “Você gosta dele?”, Umi não responde. Logo vem outra pergunta, “Você tem namorado?”
Ela faz um gesto afirmativo com a cabeça e diz, “Tan Hong Min”.
O rosto de Tan se transfigura num belo sorriso. Seu queixo literalmente cai de felicidade. Ele logo põe a mão direita no braço esquerdo de Umi. Ambos dão meia volta e saem para o mundo, abraçados. O vídeo termina com esses dizeres: “Nossa vida é definida pelo medo ou pelo amor. Ame! =)”
Lembrei-me de meu primeiro puppy-love, um amor de criança: Miriam Magda Carvalho. Acho que era correspondido, sim, mas até hoje não sei. Sei que eu morria de medo de não ser. Eu tinha entre sete e nove anos. Aquele amor nasceu e morreu platônico, mas a amizade jamais acabou. Pena que aquelas palavras mais doces nunca foram ditas. Umi e Tan, esses dois simpáticos baixinhos do século XXI, era do email e do FaceBook, tiveram mais sorte: um cupido eletrônico e internacional. Bom para eles! Você, não arrume desculpas, não. Abra o coração, sem medo e sem ilusão!



segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Paixão: sina e esperança


Amália Rodrigues (1920-1999), a mais famosa fadista portuguesa, morou, cantou e gravou por uns tempos no Brasil. Ela até mesmo se casou com um brasileiro em 1961. Seu extraordinário legado musical no nosso país foi de grande influência para Caetano Veloso, cantor-compositor que escreveu fados que já fazem parte do mais belo cancioneiro luso-brasileiro de todas as épocas. Na década de 1960 esses dois expoentes da música lusófona criaram pérolas poético-musicais que estabelecem um diálogo sobre a paixão, tema central de um curso que atualmente ensino no Programa de Pós-Graduação em Estudos Luso-Afro-Brasileiros da Universidade de Massachusetts Dartmouth. Na aula inaugural tivemos a oportunidade de compartilhar nossos próprios conceitos sobre o tema tendo em mente, também, a poética de Vinicius de Moraes, obra que estamos estudando paralelamente às investigações sobre a paixão.
Há poucas dúvidas sobre a hipótese de que o termo grego que dá origem à palavra paixão seja pathos. Entretanto, a etimologia consensual de qualquer palavra não encerra nossa busca pela compreensão dos conceitos atribuídos, ao longo dos séculos, a um dado vocábulo do nosso léxico contemporâneo. Não há espaço aqui para desdobramentos filológicos detalhados. Resta-nos dizer que o conceito de paixão – assim como foi o de pathos na Grécia antiga e na Grécia clássica – provavelmente para sempre será caracterizado por inúmeras e profundas contradições. Uma das idéias mais remotas acerca da paixão (isto é, de pathos) é a de passividade, de entrega do ser a uma força superior que o rege, que o subjuga. Inclinação ou tendência natural do ser (ou ethos, em grego), a paixão pode transformar-se em “força destrutiva por desmedida”, segundo a filósofa Marilena Chauí (42). Um conceito mais moderno, porém, é o de que a paixão pode ser a grande força motriz do ser humano. O filósofo francês Gérard Lebrun nos lembra que “paixão e razão são inseparáveis” (18), e que para o filósofo idealista alemão Georg Hegel (1870-1931) em Estética, “[n]ada de grande se faz sem paixão” (Lebrun 18).
Para inspirar nossas discussões preliminares sobre esses dois conceitos de paixão enfocamos o inesquecível e tipicamente dramático fado “Estranha forma de vida”, de Amália Rodrigues e Alfredo Marceneiro; e a balada “Coração vagabundo”, de Caetano Veloso. A visão passiva de uma vítima da paixão surge no primeiro verso na letra de Amália Rodrigues: “Foi por vontade de Deus”. O jeito de ser apaixonado e a dor da paixão do “eu” poético inerte e agonizante são, pois, desígnios de Deus. Uma hipérbole sugere, a seguir, que ninguém mais sofre nesse mundo, apenas a persona do poema: “Que todos os ais são meus”. Sua auto-imagem cria uma visão de um “eu” que sofre como um caso de vida excêntrico, de exceção, como se a dor não fizesse parte da condição humana: “Que estranha forma de vida”. A ilusão estéril e anódina é característica marcante da vida dessa persona: “Vive de vida perdida”.
Acreditando no desejo de Deus como causa de seu sofrimento (conforme o primeiro verso do poema), a persona agora, falando ao seu próprio coração, pondera o poder supernatural, metafísico, de uma varinha de mágico como solução para seus males: “Quem lhe daria o condão”. Simbolizada pelo coração, a paixão é então retratada como uma parte do ser sobre a qual a persona não tem poder nem relação de contigüidade. A paixão é autônoma e dirige a vida do apaixonado: “Coração independente/ Coração que não comando”. Para ela, a paixão é mesmo cega e constantemente sofredora: “Vives perdido entre a gente/ Teimosamente sangrando”. Em face da ignorância e estupidez da paixão que lhe assola e desorienta a vida, a persona do poema prefere morrer: “Pára, deixa de bater/ Se não sabes onde vais/ Eu não te acompanho mais”.
Por outro lado, “Coração vagabundo,” canção meio bossa-novista de melodia lenta e triste, foi escrita quase que na mesma época em que surgiu o clássico “Estranha forma de vida” e inicialmente gravada por Caetano Veloso para o seu primeiro LP Domingo (de parceria com Gal Costa). Ao contrário do que se diz no poema português, entretanto, a teimosia não reside no sofrimento, mas sim na esperança de atingir sua plenitude romântica: “Meu coração não se cansa/ De ter esperança/ De um dia ser tudo o que quer”. Caetano compõe a imagem de um ser apaixonado que se vê livre para amar como uma criança, cuja inspiração e fé em melhores dias não desfaleceram por causa da dor e frustração de um amor que morreu: Meu coração de criança/ Não é só a lembrança/ De um vulto feliz de mulher/ Que passou por meus sonhos/ Sem dizer adeus/ E fez dos olhos meus/ Um chorar mais sem fim”. O poema se fecha com a hipérbole da volúpia que habita um coração apaixonado, que dá sentido à vida de quem espera e deseja viver intensamente todas as oportunidades que o mundo lhe oferece: “Meu coração vagabundo/ Quer guardar o mundo/ Em mim”.
Apesar das enormes diferenças entre as visões da paixão em um e outro poema, uma semelhança é inegável. Como no poema de Amália Rodrigues, a persona por detrás dos versos de Caetano Veloso retrata seu coração como uma parte do seu ser que é repleta de determinação, cheia de vontade própria. Apesar do título aparentemente pejorativo e sua melodia ostensivamente melancólica, “Coração vagabundo” é consoante com a visão otimista de Benedict de Espinosa (1632-1677), filósofo judeu que nasceu de pais portugueses refugiados na Holanda. O autor de Ethica dizia não desprezar os perigos da obsessão criada pela paixão, que tanto atemorizam e maltratam o ser humano, mas acreditava na nossa capacidade de “excluir a coisa que causa medo” (Chauí 79), a sina que assombra a “estranha forma de vida” de Amália Rodrigues, e “presentificar aquela que causa esperança” (79), a fé que anima o “coração vagabundo” do músico-poeta da Bahia. Para Espinosa, explica Chauí, é necessário “fortalecer uma paixão da alegria: a esperança” (Chauí 79-80). É hora de se perceber que a diligência pode mais que a passividade. Espinosa, portanto, conclui: “as coisas necessárias são mais fortes do que as contingentes” (Chauí 80).

Obras citadas
Chauí, Marilena. “Sobre o medo.” Adauto Novaes, ed. Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 33-83.
Lebrun, Gérard. “O conceito da paixão.” Os sentidos da paixão. Adauto Novaes, ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 12-32.
Rodrigues, Amália. “Estranha forma de vida”. Estranha forma de vida: o melhor de Amália Rodrigues. EMI, 2007.
Veloso, Caetano. “Coração vagabundo”. Domingo. Universal, 1967.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Cartas de Vinicius



Dário Borim Jr.


Para minha surpresa, já me perguntaram se também gosto de livros. Isso porque algumas pessoas se impressionam com o meu amor pela música, apesar de não ser músico, enquanto ganho a vida como professor de literatura. Paradoxalmente é assim mesmo que me justifico: é de tanto amor por música, e de tão pouca paciência para absorvê-la através do lento aprendizado de um instrumento, que nunca fui além de um curso de teoria musical em Belo Horizonte nos anos 70.

Adoro cantar, um prazer imediato, apesar de minhas limitações. Mas gostaria mesmo é de aprender a tocar piano em um mês, ou violão em 15 dias. Não dá, não é tia Selma? Do mesmo modo como eu canto, meu amor por literatura também me dá recompensa imediata, tanto na hora de ler quanto na de escrever. Neste caso, gosto mesmo é do processo, e não sinto impaciência nenhuma diante do tempo que possa transcorrer até que algo meu seja publicado ou até que a última página de um livro seja virada. Aliás, meu longo prazer ao escrever não se compara nem mesmo ao efêmero encanto que tenho ao ver minhas palavras inscritas num blog, jornal, livro ou revista. Pra ser sincero, muitas vezes nem gosto de me vê-las ali. Passo os olhos e prossigo com meus afazeres.

Não posso reclamar: apesar de minhas distintas atitudes em relação a elas, amo-as ambas, igualmente, e por isso música e literatura se fundem na minha vida pessoal e profissional. Nesses últimos meses tenho dedicado parte do meu tempo à preparação para um seminário que darei no Programa de Pós-Graduação em Estudos Luso-Afro-Brasileiros da Universidade de Massachusetts Dartmouth. Chama-se “Arqueologia da Paixão em Vinicius de Moraes”. Naturalmente ali se combinam o cancioneiro e a poética de um dos grandes nomes da cultura brasileira. Para ministrar tal curso tenho lido vários volumes que incluem a biografia, poesia, o teatro, a música, e as crônicas do Poetinha.

A obra que iniciei hoje, entretanto, é Querido poeta: correspondência de Vinicius de Moraes (Companhia das Letras, 2003). Trata-se de um tipo leitura que me diverte e me fascina: uma coletânea organizada por Ruy Castro com mais de 200 cartas — ou do Poetinha ou para ele redigidas em mais de meio século. Para o deleite dos interessados, elas foram cedidas por parentes e amigos e arquivadas junto à Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Entre muitas outras revelações, essas cartas expõem um Vinicius de Moraes que pouco se encontra na sua obra poética: o diplomata, o pai, o filho, o irmão e o esposo.

A primeira carta reproduzida foi escrita pelo Poetinha a sua mãe, d. Lydia, quando ele tinha 19 anos. Conta de uma viagem a Itatiaia, cidade na região serrana do estado do Rio de Janeiro, hoje em dia, mais uma vez, tão tragicamente castigada pelas chuvas. E já chovia muito por lá em novembro de 1932 (quase 80 anos atrás). Sobre a estrada de terra morro acima, super estreita e escorregadia, as rodas do caminhão em que Vinicius viajava tinham correntes duplas, para maior tração, mas os precipícios eram enormes e se abriam logo às margens dos pneus, para o pavor dos passageiros da cidade grande. “Resultado: de músculos contraídos, com ave-marias na boca a cada curva, o vosso filho viu a morte perto do seu nariz durante uma hora e dez minutos” (17).

Diz o poeta: "Esse caminho, conforme nos disse o tal chofer, que e' a cara de são Pedro, não e' nada perigoso quando está seco. 'Quando está molhado', nos disse o animal, é apenas um bocadinho'. Imagina. Não assustes, porém. Para a volta já providenciamos cavalos mansos" (18).
“Depois da tempestade, vem porém a bonança”, acrescenta Vinicius (18). Daí surge uma bucólica descrição do hotel e de outras maravilhas do lugar, também com sensibilidade e humor: "Estou escrevendo esta num caramanchão poético e fresco, com sabiás discutindo perto. Uma delicia. Da' vontade de fazer uma poesia que preste. Mas a preguiça é muita" (19).

De fato há um universo de enredos e emoções em Querido poeta, mas aqui tenho somente um cantinho de jornal para representá-lo. Termino, então, com uma dose homeopática do amor do poeta pela família e amigos. Em 1938, aos quase 25 anos de idade, Vinicius partiu de navio para estudar literatura em Oxford, na Inglaterra. A bordo do Highland Patriot, ainda subindo pela costa brasileira, já sente saudades, e escreve à mãe: “Mais do que nunca, só o amor das pessoas conta para mim. É tão simples que chega a ser difícil explicar por quê” (53).

Apesar de apaixonado por uma paulista, Tati (Beatriz Azevedo de Mello), com quem logo se casaria por procuração, o poeta confessa os sentimentos pelo irmão: “Não creio que haja pessoa no mundo de quem eu goste tanto quanto do Helius. No entanto, você viu como nos despedimos? Um simples aperto de mão” (53). Então conclui, sobre os que ficaram para trás: “É que a ausência não é tudo. Há, mais fundo e mais forte, uma coragem de amar perigosamente, mesmo através do incompreensível. As pessoas tocam a vida pra frente, repousadas umas no amor das outras. É formidável isso. Vocês me deram uma grande lição” (54).

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