sábado, 14 de novembro de 2020

Novos amigos


 

Novos amigos


Dário Borim Jr.

Ontem apanhei meu guarda-chuva verde e saí pra dar uma voltinha pela vila onde moro, aqui ao sul de Massachusetts. Fui tirar umas fotos das folhas do outono que se esconde aos poucos, a maioria embelezando em última instância o chão onde caíram. Foi minha maneira de homenageá-las e guardá-las para apreciação por pelo menos mais uns dias (possivelmente por alguns anos), pois o vento, as vassouras e os aspiradores elétricos não as iam deixar durar mais que poucos dias. Fico com a mesma impressão que talvez tivesse Claude Monet cento e pouco anos passados. Precisamos captar esse brilho e nos iluminarmos a alma.
Este ano de 2020, mais do que nunca, quero ir ver as cores, as formas e os movimentos fora de casa, onde basicamente trabalho, como e durmo! Talvez essa fome de viver mais e melhor ocorra porque esteja eu, como quase nós todos, um tanto mais sensível. Sem oportunidade para ver meus amigos, ou me divertir como antes da pandemia, o que fazia vendo shows, dando risadas, etc., eu agora -- mais do que nunca, como dizia --faço novos amigos entre as plantas, os passarinhos, os insetos, as núvens, os rios, o mar, a lua, e muito mais. Que sorte!
E vou fotografando o que posso, o que é minha maneira de amar a tudo aquilo tão belo e de graça, sem riscos de contágio, a não ser o contágio do deslumbre, da admiração, e do respeito ao que nasce tão formoso, mas, como tudo, morre e às vezes renasce no ano seguinte, talvez, se o ser humano não destrói tal harmonia e diversidade, queimando ou roçando os campos, expulsando ou matando os animais. Hoje em dia estou tentando viver cada dia mais nesse plano da contemplação que me leva a pensar e a escrever como forma de viver mais livre e mais prazerosamente, dentro dos limites desses nossos tempos de crise e risco, de isolamento e saudade.

domingo, 25 de outubro de 2020

Justiceiros do Mal em Nome do Bem

 



Dário Borim Jr.

dborim@umassd.edu  

Há poucos minutos eu ainda oscilava entre escrever estas linhas em inglês ou português. Até me veio uma ideia esdrúxula: que tal compor uma sentença inteira em uma língua e, imediatamente, sua versão na outra? Eu teria uma crônica para cada um de dois públicos. Nunca soube de nenhum poeta que tivesse feito algo assim. Não serei eu um pioneiro dessa verve bilíngue em prosa. A origem da dúvida é a de que neste outono eu leciono dois cursos que me inspiram a refletir bem além do meu normal. Um deles, na graduação, é todo ministrado em inglês: “Gênero e Sociedade no Cinema Brasileiro”. O outro, na pós-graduação, é um seminário que dou em português: “A Crônica Brasileira”. Ambas as turmas me provocam a pensar de um modo livre, criativo e emocional, tanto nas aulas à distância, via Zoom, como nas tantas vezes que depois, sozinho, sigo por aí, pensando com os meus botões.

No curso em inglês, vimos semanas atrás o documentário Waste Land, sobre o belo trabalho do artista plástico paulista Vik Muniz junto a uma comunidade de coletores de recicláveis num lixão do Rio de Janeiro. Também vimos o biofilme Kinsey, sobre o astuto e pioneiro biólogo e sexólogo norte-americano, Alfred Kinsey. No seminário para nossos mestrandos e doutorandos discutimos várias crônicas escritas nas décadas de 1960 e 1970. Dedicamos grande parte do tempo a dez crônicas assinadas por Clarice Lispector. Como aqueles dois filmes, alguns desses textos claricianos, principalmente “Literatura e Justiça” e “Mineirinho,” nos compelem a ponderar sobre os desafios de nossos dias, especialmente nas iniquidades socioeconômicas e nas múltiplas formas de violência racial.

Além das ideias e confabulações partindo diretamente das questões discutidas nas aulas, outros questionamentos relacionados àqueles temas andam mexendo comigo. São derivados de quatro ou cinco cenas descritas pela mídia. São situações ou desenvolvimentos recentes. Gostaria de explorá-los um por um aqui, com alguma profundidade, mas não há espaço nesta crônica. Vou, quem sabe, tentar elaborar alguma síntese ao refletir sobre eles e suas interligações.

Vamos lá. Alguns dias atrás, eu li que quatro adolescentes, dois de 12 e dois de 13 anos, abusaram sexualmente de uma garota de 11 anos em Nova Tupi, um bairro na região Norte de Belo Horizonte. Como se já não fosse um ato de horror e crueldade, há outros agravantes na notícia. Um jovem de 23 anos filmou as cenas de sexo oral e penetração forçada. A seguir, enviou o vídeo aos pais da menina via WhatsApp. Respirem fundo: tem mais uma dose absurdo e maldade: a mãe de uns dos agressores mais jovens inocentou o filho e declarou à imprensa que a vítima “não era de boa fama”.

Outra cena abominável da semana foi a de dois ministros do governo Jair Bolsonaro. Assinaram um manifesto internacional (mas não global, como gostariam) galvanizando a importância das campanhas de condenação ao sexo que não seja entre homens e mulheres, e, exclusivamente, dentro do casamento. Fortificaram, também, um orgulhoso combate a qualquer forma de aborto, num gesto de aberração anacrônica assinada por autoridades governamentais de 36 países. Coincidentemente, são todos de governos autoritários, de direita ou ultra-direita. Essa equipe de cérebros deturpados no poder, liderada pelo Secretário de Estado norte-americano Mike Pompeo e patrocinada pela Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, a brasileira Damares Alves, é formada por gente que eu gostaria de denominar “justiceiros do mal”.

O tal time não inclui representantes de menos que um quinto dos 167 países que constituem as Nações Unidas, mas, mesmo assim, essa gente me dá calafrios de vergonha e medo. Os disparates são inúmeros. Talvez valha reiterar que enquanto milhares de mulheres morrem por terem-se engravidado, pois não têm acesso a clínicas autorizadas, gratuitas e profissionalmente preparadas, algumas daquelas autoridades veem certa (sórdida) missão divina tanto na salvação dos fetos, quanto na condenação de “criminosas” e “criminosos” à pena de morte. Ao mesmo tempo, essas criaturas que falam em nome de Deus também defendem em voz alta a abstinência sexual completa antes ou fora do casamento como solução preventiva ao aborto. Abstinência sexual compulsória tem seus muitos problemas, é claro, inclusive os riscos de obsessões advindas da proibição, e os dolorosos transtornos de homens e mulheres que se amam e se casam ainda virgens, para algum tempo depois um deles ou ambos se reconhecerem como homossexuais.

Dentro desse cenário de restrições e retrocessos, estão na mira dos poderosos da Polônia, Hungria, Uganda, Arábia Saudita, Brasil ou Estados Unidos (entre outras nações ditas civilizadas), o casamento ou o reconhecimento da união estável entre pessoas homoafetivas. Correm enorme perigo todos os seus direitos humanos já arduamente obtidos e assegurados por lei, entre os quais os incentivos fiscais e as vantagens de cofiliação a planos de saúde. Membros de minha família, amigos e vizinhos estão justificavelmente apreensivos, no momento em que o Congresso dos Estados Unidos está pronto para confirmar Amy Barrett, uma juíza católica que lê a bíblia e a constiuição do país literalmente, como nova membro da Suprema Corte. Ela se apresenta e age judicialmente  "originalista" – mesmo que ambos os documentos aos quais tem professa lealdade tenham sido escritos ou em épocas em que se queimavam e se apedrejavam homossexuais e adúlteros em praça pública, ou se exterminavam os nativos na conquista do oeste e se mantinha viva e ferrenha uma das instituições mais abomináveis da história da humanidade, a escravidão.

Finalmente, resta um sopro de esperança, pois nem tudo são sombras e espinhos nessa árdua e penosa caminhada em meio a uma pandemia sanitaria e política que avassala quase todos os cantos do mundo. De repente ouve-se do Vaticano uma voz de solidariedade e respeito humano, em defesa das relações homoafetivas. Papa Francisco, volta a contrariar os conservadores de plantão, claro, os filhos, netos, e bisnetos de Deus que dão continuidade à mesma linha de gerações que sobrevive às custas das fortunas herdadas sob a milenar harmonia entre justiceiros do mal em nome do bem, pontífices, monarcas, ditadores e fascistas.

PS: Entre outras fontes, veja: 1) https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/10/22/interna_gerais,1197125/menina-estuprada-por-adolescentes-norte-bh-pais-recebem-video-whatsapp.shtml e 2) https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/brasil-se-une-a-egito-indonesia-uganda-hungria-e-eua-em-declaracao-contra-o-aborto.shtml

 


segunda-feira, 6 de julho de 2020

Podres e Poderes em Tempos de Pandemia

Dário Borim Jr. 



Até ontem, dia 5 de julho de 2020, diz a Universidade Johns Hopkins, havia pouco mais de 11 milhões e trezentos mil casos confirmados de COVID-19 pelo mundo afora. Já foram bem mais de meio milhão de mortos depois de passado apenas meio ano, afirma a mesma instituição de inquestionável renome ético e científico. Para mim, é, ao mesmo tempo, aterrecedor e misterioso como que para muitas pessoas tais dados não importam, pois, elas dizem por aí, “a maioria dos casos da doença é coisa passageira” ou “a pandemia é histeria da mídia sensacionalista e mentirosa”.
Que cataclismo ou mesmo que tragédia quase apocalíptica já teríamos vivido, se mais chefes de estado pensassem assim tão levianamente, como o fazem os dois arrogantes, insensíveis e maquiavélicos idiotas que, por “coincidência apenas” (desculpem a ironia), fazem de tudo, igual e simultaneamente, para promover seus egos e incentivar as suas reeleições ao seduzir seus alienados apoiadores e (des)comandar, sem nenhum escrúpulo, as duas nações mais infectadas do planeta, os Estados Unidos e o Brasil. Esses são, aliás, os dois países dos quais sou cidadão, pateticamente envergonhado e temeroso pelo presente abominável e pelo provável futuro de enormes sofrimentos sob os efeitos de um único agente invisível, um vírus a desorganizar ou mutilar a sociedade global, essa mesma que andava, até pouco tempo, muito orgulhosa de sua poderosa tecnologia e avanços científicos.
Entre tantos motivos para lamentarmos o momento em que vivemos, como a perda apressada e isolada de nossos queridos, o desemprego maciço, a solidão aguda, os transtornos psíquicos, a violência doméstica, o alcoolismo, o desespero e a fome que assolam meio mundo, é preciso perceber e reiterar outras transformações que também têm seu impacto sobre a comunidade mundial. Por exemplo, nunca vi tantos pais e filhos andando juntos na rua de minha pequena cidade, ou mães e filhas pedalando suas bicicletas nas estradas rurais. Aliás, nunca vi tantas bicicletas e tantas pessoas fora de casa, ou vizinhos conversando entre si, sem pressa. Nunca vi tantas empresas privadas doando altas somas de dinheiro para amenizar os riscos de médicos e enfermeiros, além de outros trabalhadores essenciais. Nunca vi tanto céu azul sem os riscos brancos de aviões que nos proporcionam viagens inesquecíveis, sim, mas que também destroem as camadas de ozônio sobre nós. Nunca vi tanta gente falar da saudade de amigos e familiares e, particularmente, de seus abraços apertados. É ausência do calor humano que vem do que vem do carinho e da empatia, que na sua falta, estudos comprovam, pode até matar um recém-nascido.
Tudo na vida tem os seu momentos e seus ímpetos de ação e reação, e assim são milhares de indivíduos hoje dedicados às pesquisas que certamente nos trarão vacinas e outros medicamentos capazes de aniquilar a presença nefasta do vírus assassino. Além dessas disposições positivas, destaca-se uma crescente consciência de que estamos todos no mesmo barco, que aquilo que ameaça a vida de uma pessoa carente de conforto material também ameaça a vida de uma pessoa abastada, como na hora de comprar algo ou receber uma diarista para limpeza da casa. Cresce também a noção de que saúde deve ser o bem de toda a humanidade, que algo tem que ser feito para que o pobre também tenha um ambiente doméstico salubre, com água corrente e água potável, com acesso a hospitais e alimentação sadia, pois, se não for suficiente o fato de sermos,  todos, humanos e merecedores dessas condições de vida decentes, não haverá trabalhadores para as colheitas, para as fábricas, para as lojas, para a entrega do que compramos online, para a limpeza das casas e dos hospitais onde tanto os ricos como os pobres estarão dependentes do trabalho alheio.
Por fim, com certo otimismo apuram-se nestes dias novos poderes de uma conscientização dos problemas mais sérios e sistêmicos, aqueles de enormes proporções, em boa parte das nações os podres do mundo. Uma noção mais acurada da própria disparidade socioeconômica e suas consequências, como a desigualdade entre as escolas e as oportunidades de ascensão profissional, como, também, das práticas seculares de cunho racista, agora afloram num período da história quando se faz necessário repensar e reestruturar as instituições, a distribuição de renda, e a mentalidade de cada um de nós, pelo que é justo e necessário diante de um planeta que passa e vai continuar a passar por gigantescos desafios (calamitosas tempestades, secas, enxentes, e outras pandemias, por exemplo), de onde e quando, acredito, não haverá muita saída, talvez nem num refúgio armado, blindado e subterrâneo suficientemente seguro para os ricos e egoístas de qualquer nação.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Teaching and Learning from a Pandemic


Teaching and Learning from a Pandemic
Dário Borim Jr
dborim@umassd.edu 

The spring semester of 2020 will indelibly remain in the minds of all people who have worked and /or lived at our school for that period. Their family and friends may also have stored very grave memories. When I think of my experiences while teaching in that semester, I recall most of all the abrupt transition from seeing and enjoying my students’ presence in the classroom to a pool of doubt whether they would weather the drastic changes in how we all interacted and, particularly, in how they would continue to learn from me and from each other. For me, that transition proved to be much less a matter of pedagogy than a question of numberless challenges in my students’ personal and private lives.
As an immigrant here in southeastern Massachusetts with a son living in Morocco and, most of my extended family, in Brazil, I have been, for several years, quite used to talking over a computer screen and managing to feel close that way to my dear ones who live thousands of miles away. I am still a bit self-conscious in front of a camera, but not too badly. Of course, I am not shy, though, in front of a microphone, since I have been doing Brazilliance, my radio show, for nearly two decades. How about my students? This technological ease at seeing and chatting is something that, maybe, most of my students acquired very quickly in spring 2020, if they did not have it before, anyway. 
What may have been difficult for many of our UMass Dartmouth students, however, were the financial and circumstantial parts of that transition. Was the Internet available – and unlimited – right away to them after they were not allowed to return to campus? Did they have to look after some younger siblings at home? Did they have to find a low-pay part-time job in these times of rampant, staggering unemployment, in order to help their parents who had lost their jobs?  Were they now living in a house where there was a quiet room or an isolated room at all? Were they sleeping in their cars for the lack of bedroom or even a couch at a friend’s or a relative’s house? Did they have a laptop/desktop to avoid struggling with a phone, a device that was not theoretically meant to type a paper, let alone do research for it?
The answers to these questions for some of my students were probably yes, to others, no, but I, at any rate, tried hard to earn their trust, so that they could confide in me and open up about their hardships. Some did share some aspects of their stories. One of them is a nurse. For various reasons, some quite presumable in times of COVID-19, she had to work many more hours than she was doing (or could be doing as a full-time student) in the first half of the spring semester. She appeared to be struggling with depression and fear of succumbing to the virus herself. Another student had a few younger sisters and a jobless, stay-at-home father spoke too often and too loudly under the same roof. One last student to mention seemed very troubled one day. I suggested we talked after class, and I was able to help a tiny bit. Her immigrant mother had acquired a medical problem and needed assistance, but she had lost her health plan. With my wife on my side I did some online research and discovered two facilities in the vicinity of their home where they could have free care.
Those stories I heard from my students were plenty, and I shared some of mine (like a Zoom meeting with relatives on the image above). While my students’ stories have much to do with their experiences in going back home and having to learn online under immense pressure, recounting them is not the only purpose of this writing.  The last point I want to make, in short, is that despite the odds, huge odds, my teaching under the pandemic was relatively easy, gratifying, and rewarding. It was easy because I had been teaching both POR 301 (a class in writing and conversing) and POR 334 (a survey-introduction class in Brazilian literature) as blended courses, so the transition to online instruction was not a big deal. We had activities to perform synchronously and, others, asynchronously.
In reality, through the use of the magical Zoom platform, videoconferencing resulted in more participation in each class meeting than I had expected. My students were more often present to online sessions than they were to their face-to-face counterparts.  It was very definitely gratifying to know the students were there, and they were clearly interested. Unfortunately, though, some did not keep their cameras on, probably because they had to save data on their Internet bill. For me, it was very rewarding to witness my students’ ability to succeed, to overcome their shyness and fears, and to partake in our discussions about conjunctions, spelling, Ana Miranda, Graciliano Ramos, or Mia Couto.  Overall, I was left with a sense that I did my job as an instructor as proficiently as I had hoped, and that I had acted humbly but warmly as a human being who truly cared about my students’ well-being.



sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Ai, Jesus! (Uma crônica-sacrilégio)


Ai, Jesus!
(Uma crônica-sacrilégio)


A imagem icônica e majestosa de Jesus Cristo o Redentor de braços abertos sobre a Baía da Guanabara anoiteceu vestida de um uniforme rubro-negro, menos de uma semana atrás. O reconhecimento celestial de uma glória assaz mundana não foi por acaso. Por conta do que de mágico anda acontecendo em campos de futebol do Brasil e Peru, aqui vai um “causo” sobre a questão, como dizemos em Minas. É uma piada da vida real que nasceu inspirada pelo que ouvi ontem de um amigo português, o Francis Mendes. Ele deve ser parente em algum braço da minha multiétnica e transnacional  árvore genealógica! Seria ele um descendente de novos-cristãos? Quem sabe um ex-judeu, supostamente como nós mesmos, netos do saudoso Adolpho Prado Mendes?

O Francis me disse que um canal de TV de Portugal estava colhendo alguns louros nacionalistas por conta do gigantesco sucesso do técnico lusitano Jorge Jesus, do Flamengo, equipe de futebol do Rio de Janeiro. O Mengo, apelido carinhoso do time considerado o mais popular do Brasil, conseguiu a incrível e histórica façanha de obter dois títulos extremamente prestigiosos em menos de 24 horas: campeão da Taça Libertadores da América e da Série A do Campeonato Brasileiro. A primeira conquista foi sacralizada em partida realizada em Lima, Peru, onde seu artilheiro GabiGol marcou duas vezes em dois minutos de prorrogação, virando o placar do jogo quando as esperanças flamenguistas sumiam morro abaixo. Meu amigo Francis até já tinha perdido a fé em Jesus e desligou a TV antes de presenciar o sucesso rubro-negro. Não pôde, pois, vislumbrar um milagre em tempo real. Disse-me que Jesus era meio pé-frio; já perdera muitas decisões de campeonato pela carreira afora. A segunda apoteose em menos de 24 horas aconteceu pela matemática dos pontos corridos do dito Brasileirão, certamente a liga de futebol mais disputada do mundo, por conta de seu elevado número de participantes com reais chances de terminar a competição em primeiro lugar: mais motivo para o êxtase rubro-negro!

Não é pecado, acho, dizer que o Jesus português é hoje venerado ao sul do equador. Disse o próprio, outro dia, que ainda vai virar “uma lenda na história do futebol canarinho”. Ele é a quem os torcedores cariocas chamam de Mister – será que é porque o homem é um raro estrangeiro no comando de equipes futebolísticas brasileiras, e por isso, um tipo “gringo”? Como se revela pelo seu sotaque, às vezes difícil para o brasileiro entender (tanto que de vez em quando as emissoras brasileiras usam legendas para ajudar os tupiniquins), Jesus é com certeza de lá, de além-mar, da terra dos nossos patrícios. Curiosamente ele até foi técnico, por muito tempo, do “Flamengo” de Portugal, o clube de maior número de “adeptos”, o também apaixonadamente vermelho Benfica.

Muito bem: vamos ao causo, o mote dessa falsa crônica-sacrilégio. Uma emissora de TV portuguesa, disse-me Francis, estava transmitindo a festa histórica e homérica no Rio de Janeiro e muito além, com muito samba e muita cachaça. Ela principalmente ocorria, naquela segunda-feira, nas praças e avenidas do centro da ex-capital do país. Milhões, sim, milhões, de flamenguistas homenageavam os jogadores e a comissão técnica da equipe campeã. Todos se viam, de repente, simplesmente no céu. Aí um repórter lusitano se aproximou para entrevistar um torcedor muito exaltado, provavelmente já meio bêbado, como outros milhares de torcedores. Perguntou-lhe:: “Então, pois, o que achas do Jesus?” O carioca não pensou duas vezes: “O Jesus? O Jesus é FODA”!

Imaginem aquela situação, uma chula (mas falsa) blasfêmia de tal ordem – em transmissão ao vivo para todo o país Ibérico! Coisa de carioca, ou coisa do futebol, diria o Nelson Rodrigues! Mesmo muitos mineiros da gema, como eu, também puderam sentir um gostinho da vitória em Lima. Afinal de contas, a partida que decidiu o título foi contra o River Plate, da Argentina. Como os portugueses, eu também tirava uma casquinha de orgulho nacionalista, já que é extradoce e, muitas vezes, comovente, vencer os rivais portenhos no futebol. A richa é velha, mas não se esvai com o tempo. É como vinho: só melhora!

Naquela hora do jogo de “sapassado”, em bom mineirês, estávamos todos unidos na justa e gloriosa missão de superar, em terras peruanas, os nossos “hermanos”, como carinhosa e ironicamente chamamos os argentinos. Aliás, juntos estaremos outra vez, mineiros e flamenguistas, logo em dezembro, quando o Flamengo, de Mister Jesus, o Foda, poderá vencer a equipe inglesa do Liverpool, em Qatar. Quem sabe o clube carioca será, com alguma ajuda divina, o Campeão Mundial de Interclubes de 2019? De fato, lá em Minas há muitos flamenguistas, uns até bem chatos, de tão fanáticos. Tem problema não. Lá em Minas tem de tudo. Só não tem mar de verdade. Mas pra quê mar – ai, Jesus – se temos um mar de estrelas vistas de tantas e tão belas montanhas que acariciam os olhos e refrescam ainda mais a alma da gente?

domingo, 21 de abril de 2019

Os loucos, a égua, e uma porção de rato // The Madmen, the Mare, and a Handful of Mice (Bilingual)

Brazzil
June 2001
Short Story


Os loucos, a égua,
e uma porção de ratos

Quando os americanos e russos começaram a explorar  o espaço sideral, nós demos ao Marechal uma garrafa velha e suja, cheia de um líquido amarelado. Aquela leva de desalmados havia contribuído  para o presente com uma amostra quente de urina.

Dário Borim
"Esta cidade é de amargar", a gente costumava reclamar o tempo todo no Grupo Escolar Alfredo Galdino, em Paraguaçu, uma cidade de quase 10.000 habitantes no sudeste do Brasil. Pior que aquele marasmo de cidade pequena nos meados dos anos 60, só mesmo um lugar na face da terra: a própria Paraguaçu debaixo de chuva, já que tínhamos que ficar em casa, de papo para o ar.
O que tenho a dizer é vergonhoso, mas não aconteceu por acaso: muitos de nós, garotos que não sabiam como estragar a infância diante da TV, adorávamos insultar e fazer galhofa dos excêntricos da cidade. Os adultos já tinham avisado que havia tantos doentes mentais em Paraguaçu porque primos tinham se casado com primas, tios com sobrinhas, etc. e tal. Isso não significava lá muita coisa para nós. Nós estávamos sempre aborrecidos com a falta do que fazer. Então a gente descontava naqueles que se davam bem com a mansidão geral. Os malucos, então, viravam o principal alvo de nossa frustração coletiva.
É verdade que nossos pais não se cansavam de bater na mesma tecla, lembrando que era rude incomodar qualquer pessoa, principalmente os inocentes que aparentemente careciam de um parafuso ou dois na moringa. E era perigoso, também, porque os doentes mentais não eram responsáveis por suas ações. Mas e daí? Nós éramos umas pestes e precisávamos gastar energia de algum modo.
Na verdade gostávamos de alguns aluados. Um deles era Marechal o Lenhador, um negro de sorriso largo, com cinqüenta e tantos anos de idade. Eu pessoalmente achava que aquele homem tinha algo de sensacional. Gostava do seu cheiro, por causa do charuto barato que morava nas beiras dos lábios, aceso ou apagado. De cabelos grisalhos, ele demonstrava um certo orgulho e com freqüência nos divertia a troco de nada. Empossando o mesmo velho uniforme, como se nunca saísse de moda, aquele senhor gordinho e tranqüilo fazia brilhar e chacoalhar todo tipo de bugiganga, entre medalhas de mentira, pequenas flâmulas, broches de material de terceira, e, curiosamente, até mesmo um bracelete de escravo (de verdade).
Bem, o que importa mesmo é que o velho adorava contar estórias que pareciam não ter mais fim. Você tinha que ter muita paciência. Ao cumprimentar a todos que encontrava pelas ruas, o Marechal descortinava seu sorriso cativante, ao mesmo tempo doce e natural (apesar da saudade dos dentes de outrora). Então logo tentava revelar para fulano e cicrano o seu passado mítico, recheado de lorotas envelhecidas mas nunca esquecidas no folclore infantil dos nossos dias.
Alguns dos enredos mais repetidos eram aqueles da sua apaixonada mas infrutífera contribuição à campanha pela liberdade dos escravos nos idos anos de 1850. Também contava passagens de sua impecável campanha militar durante a Guerra do Paraguai, na década seguinte. Cem anos mais tarde (dava pra acreditar?), lá estava ele, em Paraguaçu: uns biscates no correr do dia, e muita ostentação pela noite afora, por conta da sua desgastada honra de ex-militar, agora catador de lenha das padarias locais.
A criançada não tinha muita consciência. Ele gostava da gente, e nós às vezes acreditávamos naquele mentiroso de carteirinha. Mas também pregávamos umas peças no pobre coitado. Quando os americanos e russos começaram a explorar o espaço sideral, nós demos ao Marechal uma garrafa velha e suja, cheia de um líquido amarelado. Para nosso deleite, dissemos a ele que um amigo seu lhe tinha mandado água da Lua. E era disso que o homem se gabava por todo canto da cidade. Aquela leva de desalmados havia contribuído para o presente com uma amostra quente de urina.
Havia outro pirado na cidade, com quem convivíamos quase que diariamente. Esse companheiro, com idade na faixa dos vinte e poucos anos, representava uma estranha combinação de hippie californiano e bandido de filmes de bang-bang. Como o Marechal, ele também aparecia nas ruas vestindo uma roupa estilizada. Além das botas de vaqueiro, com pequenos sinos nos calcanhares, ele usava uma camiseta de malha branca com um enorme símbolo de paz e amor azul na altura do peito. Uma correia púrpura segurava uns jeans bem desbotados e remendados — talvez sua única calça. Longos cabelos loiros, quase sempre oleosos, às vezes cobriam os olhos azuis grandes, pálidos e irrequietos. Nós todos o chamávamos de Bandido da Lua, mas ele não se importava. O Bandido adorava a gente. Nos papéis de índios, bêbados ou policiais, abríamos fogo uns contra os outros (só de brincadeira), e fazíamos tudo para que ele, o bandido, sempre nos matasse.
O pessoal da cidade soltava diferentes estórias sobre o que causara a doença mental do Bandido. Alguns diziam que ele tinha caído de bicicleta e batido a cabeça no paralelepípedo; para outros, o problema vinha do alcoolismo do seu pai. De qualquer modo, as pessoas da cidade não se importavam tanto com a origem dos problemas do Bandido, mas, sim, com as conseqüências.
Com certeza, o prazer maior de cada dia daquele Bandido era arriscado. Costumava entrar para um lugar público, um bar ou mercearia, por exemplo, cobrindo o rosto com um lenço vermelho. "Mãos ao alto, pessoal", ele gritava, apontando o indicador para diferentes pessoas a cada instante, como se a sua mão direita por si só constituísse um revólver. Poucos segundos após assustar a todos os presentes, principalmente aqueles que nunca ouviram falar da loucura do rapaz, o Bandido da Lua era tomado por um certo riso encabulado. Em seguida se desculpava: "Sinto muito, gente boa, mas está tudo bem. Isso aqui foi só uma brincadeira".
O tiro imaginário do Bandido da Lua estava condenado a sair pela culatra um dia, todo mundo achava. E realmente aconteceu. Foi quando ele pulou para dentro do Banco do Estado de Minas Gerais e repetiu o esquema tradicional. O guarda-de-segurança tinha mudado de outra cidade. Era jovem e imaturo, e, provavelmente, bastante nervoso. A cena do Bandido acontecia às suas costas. O guarda deu um giro e um tiro quase certeiro. A bala atingiu o rapaz fantasiado na orelha direita, despedaçando-a. Ela ainda lhe fraturou uma pequena parte posterior do crânio, mas nada mais.
O Dr. Oscar Gabeira tratou bem da vítima. Afinal de contas, o Bandido não foi tão azarado. Aquela experiência quase trágica o transformou em um moço bastante calmo. Hoje em dia ele detesta fingir de criminoso, e ele não tolera qualquer brincadeira de mau gosto.
Entre outros excêntricos bem conhecidos, havia ainda o baixinho e barulhento Anísio, também conhecido como o Anão Desmiolado. Ele não mora mais em Paraguaçu. No verão de 1990 eu o encontrei. Nós dois visitávamos nossa terra natal. Quando lhe perguntei se tinha saudade de Paraguaçu, Anísio disse que sim, mas que não estava interessado em voltar para lá.
O que ouvi de Anísio a seguir me deixou ao mesmo tempo embaraçado quanto ao seu passado e suspeito quanto ao seu presente. De fato, ele parecia bem em controle de suas faculdades. Soava bem franco, aliás. Disse que gostava de Poços de Caldas, uma cidade turística de certo charme, ali pelas montanhas do Sul de Minas. Mal escondendo uma desconfortável onda de vaidade, Anísio olhou para o chão e comentou em voz baixa: "Sou um bom porteiro em um pequeno hotel lá. É ótimo. Ninguém me enche a paciência. Ninguém sabe que eu sou louco". Não sei por quais transformações ele passara, mas sem dúvida percebia que elas o tornaram uma pessoa diferente: bem mais gentil e reservado do que aquele Anão Desmiolado que todos conhecíamos de décadas atrás.
Nos anos 60 e princípios dos anos 70, ele parecia que gastava toda a sua energia juvenil na esfera pública. Para a maioria das pessoas, acho, ele era tão alegre quanto inconveniente. O rapaz era espalhafatoso em quase todo sentido da palavra. Adorava cantar canções bregas do tipo "Receba as flores que lhe dou / em cada flor um beijo meu". Quando não estava carregando um autofalante portátil, velho e enferrujado, ele fechava o punho direito e levava à boca, fingindo que se tratava de microfone. Sua voz não era nada má, mas desconhecia limites. Com sua voz volumosa no ar preguiçoso de Paraguaçu, Anísio ocasionalmente parava de cantar para se dirigir a qualquer pessoa na rua, sem se importar se estava interrompendo conversas alheias.
O Anão Desmiolado era um cantor desassossegado, por certo, mas também um animado vendedor ambulante. Subindo e descendo as ladeiras da cidade, ele não apenas vendia broas de milho que guardava em uma cesta de bambu, como também anunciava a programação semanal do Cine Íris, a única sala de projeção de Paraguaçu. "Não percam, meus caros! É só hoje à noite. É Benhur, um sensacional filme com Xarton Réuston e todos aqueles leões romanos". Em frente a um de nós, vinha mais propaganda: "É só hoje, queridinho. Vai lá e traz lá papai e mamãe para o Cine Íris hoje à noite".
Naqueles anos, as pessoas diziam que apenas duas coisas deixavam o Anísio ainda mais louquinho. Era o time de futebol do Palmeiras (e como gostava de discutir sobre as partidas e os talentos superiores dos seus jogadores!); e era bobagem, a qualquer hora e em qualquer lugar (uma ereção em público não parecia incomodá-lo nem um pouco!).
Para nós, o Anão Desmiolado era uma personagem favorita em uma série de estórias que escutávamos, inventávamos e espalhávamos sobre certas pessoas da cidade. Não queríamos causar nenhum mal a ninguém; era só uma questão de entreter-nos uns aos outros um bocadinho. O Anão era especial porque, acima de tudo, nos tinha dado uma experiência fantástica, o tipo de aventura que virou fofoca e motivo de orgulho para nós por vários anos.
As pessoas mais velhas já tinham dito que o homem era um "tarado". A gente pensava que ele era mesmo estranho, por cantar e gritar nas ruas, mas a gente não entendeu direito a advertência que nos passaram os adultos. Tínhamos que ver para ter uma idéia do que se tratava. E olha que foi coisa do outro mundo.
Um fim de tarde, depois das aulas, cinco de nós fomos brincar de esconde-esconde no quintal ao lado da loja de meu pai. Era lá que as pessoas da roça "estacionavam" seus cavalos para que elas pudessem comprar roupas e sapatos. Depois de pular o muro, ouvimos um som estranho, um tipo de grunhido vindo do outro lado da cerca de bambu, um espaço estreito e cheio de estrume ao fundo do lote.
De imediato, todos fixamos o olhar naquela direção. O que vimos nos fez segurar o ar e arregalar os olhos por alguns segundos. Julinho, o mais falador da turma, suspirou que aquilo parecia uma figura do livro de História: um cavalo de duas cabeças, uma em cada extremidade do bicho. Mas na verdade era o famoso Anísio. O Anão Desmiolado se encontrava de pé sobre duas pilhas de tijolos, enquanto penetrava uma jovem e satisfeita égua.
Bom, vou dizer uma coisa: o Anão logo descobriu que tinha espiões atrás dele e, então, pirou de verdade. Acho que nenhum de nós jamais tivera que pôr tanta fé nas pernas. Isto foi segundos depois do diabo do Julinho ter a coragem de gritar, "Ah, mas que vergonha senhor Anísio, Anão Desmiolado. Então o senhor está executando a pobre da égua! Vou contar pra cidade inteira, seu desgraçado!"
Rapidinho nós garotos já estávamos fugindo daquela cena de pecado rural. Movíamos sob o telhado baixo e empenado da loja. Lá em baixo meu pai fazia dinheiro e pagava contas; aqui em cima era outra manobra de sobrevivência. O próximo desafio era lidar com as enormes teias de aranha tropicais grudando no rosto, braços e pernas. Engatinhando naquela superfície de laje fria, escura e empoeirada, às vezes resvalávamos a cabeça e as canelas em pregos enferrujados, ou algo parecido. O edifício era grande, e acabamos levando um tempo para atravessá-lo até cairmos na liberdade das ruas. Por fim, conseguimos. Com aquele Anão Desmiolado na nossa cola, apressamos o expediente, como se fôssemos uma porção de ratos fugindo de um edifício em chamas.

The Madmen, the Mare, and a Handful of Mice

When Americans and Russians started to explore outer space, we gave Marshall an old dirty bottle, filled with a yellowish liquid. Of course many of us kids, vile little bastards, had chipped in the gift with the hottest of our urine.

Dário Borim
"This town just stinks," we used to say it all the time at Alfredo Galdino Elementary School, where, in the mid-1960s, most of us had the same opinion about Paraguaçu, a town of approximately 10,000 people in southeastern Brazil. Worse than that sluggish little town, there was only one spot in the entire world: Paraguaçu itself, in the rain, since we would have to stay home, shooting the breeze.
It was a shame, but not by chance, that so many of us kids, who still did not know how to waste childhood in front of the TV, took to insulting and playing pranks on the mad folks in the streets. Grown-ups had told us there were so many loonies in Paraguaçu because cousins had married their cousins, uncles their nieces, and so on. That did not mean much to us. We were bored by the lack of action in town, so we took it out on those who got along with that drowsiness. The lunatics became our dearest target.
It's true our parents never tired. They often reminded us that it was rude to bother anyone, especially the innocent guys that apparently had a screw loose in their heads. It was dangerous too, because the eccentrics weren't responsible for what they did. But who cared? We were naughty, and we needed to do something to keep going.
We actually liked some of the loonies. One of them was Marshall, a black man of broad smiles, in his late fifties. I personally thought he looked cool and smelled great, just because of the cut-rate cigar he constantly kept in either corner of his mouth, lighted or laid out for display. Gray-haired Marshall was proud, and he entertained us quite often, free of charge. Wearing the same old uniform, as if it were not going out of style, the chubby mellow man shone and clattered with all sorts of junk, such as miniature banners, make-believe medals, cheap brass brooches, and, rather curiously, even a slave bracelet (the real thing).
Well, what matters is that the old man loved telling long, long stories. You had to be patient. Upon greeting anyone in the streets, he would unveil an endearing, sweet and natural smile (even if he missed the good old teeth of yesteryears). Then, Marshall would immediately try to unfold, again and again, his mythic past through imaginary tales, which, no matter how old, would remain a vital part of our folklore. Some of his repetitive narratives had to do with his passionate but fruitless contribution to the slaves' struggle for freedom, in the 1850s, or the adventures of his impeccable military campaign in the Paraguayan War, in the next decade. One hundred years later (would you believe it?), there he was, in Paraguaçu: daytime doing odd jobs, nighttime showing off his worn-out officer status as a Marshall that collected firewood for the local bakeries.
We kids did not know better. He liked us, and we sometimes believed that full-time liar. But we played our tricks on the poor guy too. When Americans and Russians started to explore outer space, we gave Marshall an old dirty bottle, filled with a yellowish liquid. For his delight, we told him that an old friend of his had sent him some water from the Moon. And that's what Marshall would boast about everywhere in town. Of course many of us kids, vile little bastards, had chipped in the gift with the hottest of our urine.
There was also a guy we hung around with. This buddy, nearly twenty years old, stood for a strange combination of hippie and gangster. He would also turn up in the streets in stylized attire. Besides the high cowboy boots, with unusual jingle bells by the ankles, he wore a white T-shirt with a huge peace-and-love symbol in blue ink on the upper front side. A purple waistband tied his only, worn-out pair of jeans. Long, curly blonde hair, nearly always greasy, sometimes covered his wobbly, big pale blue eyes. We called him Butt-Head the Gunslinger, but he did not mind. He loved us, since we played battles with him and made sure he, the bandit, always killed us, Indians, drunkards or cops.
The townsfolk circulated different rumors about what caused Butt-Head to be crazy. Some said he had a bicycle accident and hit the cobblestone with his head; some said his Dad was a terrible alcoholic. Just the same: in reality, Paraguaçu people did not care much about the origins of his problems, but their consequences.
For sure the Gunslinger's greatest daily thrill was risky. He'd run into a public place, like a bar or a grocery store, hiding his face with a red handkerchief. "Hands up everybody," he shouted, pointing out at different people as if his right hand itself were a revolver. Seconds after scaring everyone, especially those who hadn't learned about him, the Gunslinger would burst into a self-conscious chuckle. He would then apologize, "Sorry, folks. You're okay. This was just a joke."
Butt-Head the Gunslinger's tricks were likely to backfire one day, townsfolk often said. And it did. That was when he popped into the Minas Gerais State Bank and repeated the traditional skit. The security guard had recently moved from out of town. He was kind of young and silly, and probably very nervous too. The scene was happening behind his back. He turned around and shot Butt-Head. The bullet hit him in the right ear, bursting it into pieces. It still chipped the rear of his skull, but nothing else.
Dr. Oscar Gabeira took care of him. Gunslinger was not too unfortunate, after all. The nearly tragic experience turned him into a mellow young man. Today he hates acting as an outlaw; he can't stand any foul play.
Among the other popular lunatics there was the short and loud Anísio, the guy known as the Crazy Dwarf. He no longer lives in Paraguaçu. In the summer of 1990 I met him while both of us visited our hometown. When I asked him if he missed Paraguaçu, he said he did but was not willing to move back.
What Anísio said next made me feel just as awkward about his past as suspicious about his present. He looked very much in control of himself. He sounded quite candid, actually. He said he liked living in Poços de Caldas, a quaint neighboring city in the south of Minas. Barely hiding an uneasy sense of pride, he looked down and commented in low-key: "I'm a good doorman at a small hotel there. It's great. Nobody bugs me. Nobody knows I'm crazy." I did not know what sort of changes Anísio had gone through, but I certainly recognized they had made him quite a different person: much more gentle and reserved than he had ever been.
In the 1960s and early 1970s, though, he would spend all his youthful energy in the public sphere. To most people, I guess, he was just as cheerful as inconvenient. The guy was boisterous in just about every sense of the word. He loved singing tacky songs through the streets, songs that ran like "Take all these flowers that I want to give you / Through each of them a kiss of mine." When he was not carrying an old, rusty portable loudspeaker, he clenched his right fist, brought it up close to his mouth and pretended to hold a microphone. His voice was not bad at all, but it knew no limits. With his loud music in the lazy air of Paraguaçu, Anísio would approach people in the streets and did not care a bit if he interrupted their conversations.
The Crazy Dwarf was a busy singer for sure, but also a cheerful peddler. Strolling up and town the slopes of town, he sold corn bread in a bamboo basket and advertised the movies showing at the old and only theater house in Paraguaçu: "Don't miss it, folks! It's only tonight. It's `Bengur,' a great movie with our hero `Shurston Herston' and all those big lions in Rome." In front of some of us kids, he added, "It's only tonight, my dear. Bring Mama and Papa to Cine Iris, the cool fantasy house in Paraguaçu."
That was Anísio, who would repeat himself over and over again and pinch and startle any little girl on the cheek, here and there, while saying a long, musical enigma—something like "phe-ee-ee-ka." The initiated knew it was a giddy, distorted rendition of the Portuguese word "filhinha" (little daughter).
Back in the 1960s, people said just two things drove Anísio crazy. It was the Palmeiras soccer team (and how he loved arguing about games and players!); and it was dirty sex, anytime, anywhere (an erection in public did not seem to bother him at all!).
To us kids, the Crazy Dwarf was a favorite character in a series of stories we heard, invented and re-told a thousand times about the townspeople. We did not mean any harm; we just amused one another. The Dwarf was special mostly because we once had an awesome experience with him, the sort of stuff we would gossip and brag about for ages in school.
The older folks said the man was a "sex maniac." We thought he was bizarre by singing and shouting in the streets for nothing, but we could not quite catch what they meant when they warned us about him. We sort of had to see it ourselves to have an idea. And it sure was something else! One late afternoon, after school, five of us were going to play hide-and-seek in the backyard right next to my dad's store. That's where the country people "parked" their horses, so that they could go shopping for shoes and clothes. After hopping in there we heard this strange noise, some kind of groaning coming from beyond the bamboo fence, somewhere on the narrow, manure-filled backside of the lot.
We all looked straight towards that end. What we saw made us hold our breath and stare straight ahead for a few seconds. Julinho, the most opinionated of the group, whispered that the whole thing looked like a picture in his history book: a double-headed horse, one head on each end of the animal. But it was actually the famous Anísio; the short man was standing on two piles of bricks, while penetrating a poor young and satisfied female horse.
Well, I'll tell you what: the Dwarf soon realized he had spies behind him and turned really mad. I guess all of us had never had to trust our legs that way before. This was right after that darn Julinho had the guts to shout, "Huh, what a shame Senhor Anísio, the Crazy Dwarf. So you're screwing the poor mare! Gonna tell the whole town about it, son of a gun."
Pretty soon we kids were trying to flee from the scene of rural sin through the low, creaky, and dreadful wood framework between the concrete ceiling and the red-tile roof of the store. Down below, my dad made the bucks enough to pay his bills; up there, it was another attempt to survive. Next thing we knew was that a whole bunch of tropical cobweb was getting at our faces, arms and legs. Crawling on that dusty, dark stony surface, we bumped our heads and shins against rotten beams and rafters. Now and then, we got a scratch from those darn rusty nails, or something. The building was large. It was tough, and it took us a while to get to the streets. We finally made it, though. With Crazy Dwarf at our heels, we moved fast, as fast as a handful of mice would flee from an old burning house.
Dário Borim is a storyteller with an M.A. degree in Creative Writing and a Ph.D. in Brazilian Literature from the University of Minnesota. He now teaches at the University of Massachusetts Dartmouth. You can reach him at dborim@umassd.edu 

Deus e o Diabo na Terra do Carnaval // God and Satan in the Land of Carnaval (Bilingual)

Deus e o Diabo na Terra
do Carnaval

Brazzil
February 2003

Carnaval em Paraguaçu. Ao som da excelente batucada promovida
pelos músicos da Liga Operária, rugíamos, pulávamos e
lutávamos como felinos esfomeados. Às vezes corríamos e
cacarejávamos em ótimo astral, feito um bando de galos e
donzelas garnisé. Era uma festa total no terreiro da alegria e da descontração.

Dário Borim Jr.
O Carnaval do Brasil, como os de outras nações, tem seus disparates. Lá homem adora se vestir de mulher, pobre se fantasia de rico, e pecado é santificado pelos jovens em praça pública. Será que todo ano Deus faz algum pacto com o diabo e fecha os olhos por somente quatro dias? Não creio, mas parece, porque é muito milagre para um santo só. Por conta de umas afinadas batidas de surdo (e de limão, claro), mais vale é habitar ou sonhar com um mundo onde a alegria e as alegorias de paz e cidadania são produzidas ou patrocinadas por incomparáveis artistas, incorrigíveis malandros e incrivelmente bem-intencionadas — e bem-humoradas! — autoridades.
Nos carnavais das décadas de 1960 e 1970, a Prefeitura da minha pacata cidade natal, Paraguaçu, contava com uma legião de voluntários e organizava dois desfiles de rua: um no domingo, e outro na terça-feira. Claro que tinha mais. Cada um dos três clubes da chamada Princesinha do Sul de Minas oferecia duas matinês para as crianças e quatro noitadas para os maiores de 14 anos. Conjuntos e orquestras tocavam ao vivo, das 11 da noite às 5 horas da manhã. A estratificação da sociedade revelava-se, em parte, através dos próprios nomes das associações. Uma facção da classe trabalhadora ia para a Liga Operária; outra, de indivíduos menos sacrificados economicamente, freqüentava o Democrata; enquanto que a classe média mais abastada e a elite dançavam no Ideal Clube. Nas ruas, a espontaneidade era sempre uma das melhores características da Festa de Momo. Entre oito e meia-noite, os tímidos e os extrovertidos, bem como os cultos e os iletrados, saíam todos para a colorida Praça Oswaldo Costa, onde dançavam, bebiam e apreciavam a maluquice geral.
Naquela primeira noite de Carnaval em 1976, meu irmão José Carlos (o Tatau) e eu pertencíamos a um bloco da pesada: os Homo-sapiens. Éramos um dos maiores e mais extravagantes grupos de foliões. Contando com quase 40 jovens, o grupo de fantasiados dramatizava o seu tema antropológico. Cordões de dentes de plástico nos tornozelos e ossos de galinha no cabelo (ainda tínhamos, todos, muito cabelo) acompanhavam uma túnica de cetim laranja com manchas pretas redondas, semelhantes às de um leopardo. Ao som da excelente batucada promovida pelos músicos da Liga Operária, rugíamos, pulávamos e lutávamos como felinos esfomeados. Às vezes corríamos e cacarejávamos em ótimo astral, feito um bando de galos e donzelas garnisé. Era uma festa total no terreiro da alegria e da descontração.
A música parecia surgir dos quatro cantos da praça, ecoando nas nossas almas adolescentes. O melhor ritmo, porém, ressonava no Bar do Vatinho, para onde convergia a rapaziada mais animada. Ali dançávamos e farreávamos, quando, de repente, uma voz me chamou a atenção para fora do círculo de homens da caverna.
"Alah, Alah, Alah, hundulilah, handulilah", gritava o caro amigo Delson Ribeiro de Andrade. Sem medo, ele se punha de pé numa banqueta do Bar do Vatinho. Ainda assim, conseguia rebolar os quadris ao compasso do samba, enquanto invocava a presença divina de Maomé. Com os cabelos ondulados, agora crivados de confetes, e os olhos castanhos irradiando paz, como que diante de um paraíso em pleno caos Carnavalesco, Delson se vestia de garota havaiana, com muito estilo. Descalço entre outras "garotas tropicais" a esconder os pêlos da face, o vulgo Amarradinho ironizava a lei seca dos árabes e agradecia aos céus por tanta alegria (e cerveja gelada) cintilando no planeta Terra.
A farra continuava sem trégua, mas no domingo à noite, muitos já sentiam a necessidade de assentar por um instante e fazer acontecer outro lado fabuloso da tradição de Carnaval de muitas famílias brasileiras. Antes de sair mais uma vez para o espaço público do Carnaval de rua e dos bailes de salão, era hora de beber e comer umas coisinhas na descontraída intimidade dos parentes e amigos. Desta vez, um grupo de aproximadamente quinze pessoas curtia o frescor de uma noite enluarada. Na varanda lateral da casa de meus pais alguns tomavam a especialidade da estação: whisky com água-de-coco. Dois charmosos coqueiros que ainda cresciam no jardim — quem sabe ameaçando a estrutura da casa — mantinham o nosso estoque em dia. No ano anterior tínhamos colhido, ali mesmo, nada menos que trezentos cocos da Bahia.
Um aspecto divertido daqueles encontros familiares era que certas pessoas, normalmente sérias e reservadas, naquela hora soltavam as rédeas. Muitas vezes este era o caso de meu pai. No espaço doméstico do Carnaval se permitia desfrutar as histórias que filhos, parentes e amigos contavam sob a inspiração maior do elemento alcoólico. Entre tira-gostos e goladas refrescantes, todos eram afetados de um modo ou de outro pelo bom-humor suspenso no ar. Até minha mãe, que aos cinqüenta anos mal suportava meio copo de vinho, deixava transparecer seu contentamento, apesar de uma crescente preocupação com os possíveis excessos dos filhos adolescentes.
As narrativas, retocadas pela animação do relator da vez, muitas vezes retomavam enredos de extravagância e perigo vividos por meu irmão e eu (além de nossos amigos mais aloprados). O cunhado José Côdo recordou, a certo momento, a noite em que minha mãe e sua irmã Guida voltavam a pé para casa, depois de apreciar por algumas horas o baile de Carnaval no Ideal Clube. As duas senhoras passavam pela parte de cima da Praça Oswaldo Costa — os estrondos da música de salão ainda reverberando nos seus ouvidos — quando minha mãe percebeu algumas marcas de sangue no passeio por onde andavam. Quando as duas irmãs viraram a próxima esquina, a da casa de Tia Noêmia, continuaram seguindo as mesmas marcas.
Um quarteirão acima, as duas respeitáveis senhoras viraram à direita e continuaram seguindo as bolas de sangue. Mamãe já estava preocupada — afinal de contas, ela é Mendes — quando sua pressão sanguínea subiu pra valer, pois as bolas de sangue cruzaram a rua, subiram as escadas e passaram para o outro lado da porta de entrada de nossa casa. Uma vez dentro da casa, ela nem precisou olhar para o chão. Atravessou a sala e foi direto ao quarto dos meninos.
Minha irmã Silvana falou da rápida e variada sucessão de sentimentos. Primeiro, mamãe é tomada pelo medo, ao ver as marcas subindo as escadas; depois, pelo nojo e a pena de ver o filho mais velho, Tatau, dormindo em uma poça de vomito. Por último, ao acender as luzes e pesquisar bem a situação, mamãe certamente entrou em grande confusão: apesar do sangue acumulado ao lado da cama, o filho de dezoito anos não apresentava qualquer ferimento. Aliás, dormia feito uma múmia, e assim permaneceria por muitas horas manhã adentro. O mistério continuava vivo para alguns dos presentes àquela reunião pré-carnavalesca.
"Mas, e as marcas de sangue?", perguntou minha prima Nilbe. Com uma risada mal contida Silvana explicou que Marcelo Viana, outro Homo-sapiens, tinha percebido que Tatau se encontrava muito bêbado no salão do Ideal Clube e precisava de um bom banho frio. Para Marcelo, a água suja da fonte da Praça Oswaldo Costa era a solução. Mas o Bom Samaritano se deu mal com um caco de garrafa, que lhe cortou o pé no fundo da fonte. Como Marcelo também era chegado ao "mé", naquela noite encontrava-se anestesiado demais para notar qualquer coisa estranha consigo mesmo. Só assim pôde dar continuidade ao seu projeto humanitário, e quase matar d. Lucci Prado Mendes Borim de pavor.
Nenhum show da Terra, não importando se é bom ou se é ruim, deixa de ver, um dia, o seu próprio fim. Mais uma Quarta-Feira de Cinzas, então, chegou como sempre chegava: trazendo fadiga e ressaca. Entre outras mudanças, era hora de voltar para o trabalho e para os estudos. Parentes, amigos e amantes se despediam sem muita alegria, vigor ou poesia. O silêncio profundo desde as sete da manhã era costumeiro, enquanto o sol naquele dia nacional da dor-de-cabeça seguia seu curso normal. Boa parte do comércio permaneceria fechada até o meio-dia. De repente,
"Dleng, dleng, dleng...," mas poucos seres adormecidos sequer tinham ouvido os quatro imensos sinos da Igreja Matriz marcando presença em todas as casas e anunciando que eram dez horas. Por certo não faltou quem praguejasse aquela invasão de lares católicos e não católicos.
Logo a seguir ecoou, por toda a cidade, uma canção falando de anjos e pastores, seguida de um vozeirão:
"Anúncio. O Dr. Félix, oftalmologista de Varginha, estará atendendo a população de nossa cidade nesta quinta-feira..."
Vieram outros três ou quatro anúncios de propaganda e de serviços da Igreja, até que uma pausa se instaurou. Mas durou pouco, pois outra melodia logo alcançava os cantos mais remotos da cidade. Desta feita o tom era bem mais lúgubre:
"Ave Maria, bla, bla, bla..."
Teria Franz Schubert terminado sua famosa peça sacra se soubesse que ela seria recebida nos Trópicos com tantos palavrões?
Quando alguns foliões já tinham conseguido retornar ao sono, apesar do encanto melódico daquela obra clássica, voltou o vozeirão no alto-falante da Igreja Matriz:
"É com grande pesar que anunciamos o falecimento do sr. João de Deus, cujo corpo está sendo velado à rua..."
Para alguns revoltados, aquilo soava como um caso de injustiça divina. Paraguaçu não tinha uma estação de rádio, e a culpa recaía sobre os ombros — digo, os ouvidos — de infelizes bebuns e mocinhas namoradeiras. Mas, talvez fosse a voz de Deus abrindo alas, ao som de um ária triste. Sua mensagem, era, afinal, deveras realista:
"Cuidado, galera! O diabo do samba, do cigarro e da cachaça também mata. E nem tudo é Carnaval".

God and Satan in the
Land of Carnaval

Carnaval in Paraguaçu. We ran around crowing like big roosters
on drugs, or maybe hyper-excited hens in lust. With
toy-teeth laces around our ankles and chicken bones on our heads,
this flock of teenage pals was roaring and jumping, fighting and running.
It was a total blast on that voodoo land of joy and relaxation!


Carnaval in Brazil has its own peculiar absurdities, just like similar celebrations do in other countries. There, men just love dressing up as women. The poor get away as if they were rich, and certain sins of the youth are sanctified outdoors, usually in public squares. Is it possible that God strikes a deal with Satan, every year, and closes his eyes for just four days? I don't think so, but it looks like it, because Carnaval is too much of a miracle to be bestowed upon us by one saint alone. With some alluring drumbeat in our ears and some delightful caipirinha shots in our throats, it's better not think too deeply. Let's just live in or dream of a world, instead, where enjoyment and allegories of peace and civil rights are produced or sponsored by incomparable artists, incorrigible rascals, and, believe me, well-humored city authorities.
As it happened in many small towns of Minas Gerais in the 1960s and 1970s, the Paraguaçu City Hall and a good legion of volunteers would put on two major street Carnaval parades: one on Sunday, the other on Fat Tuesday. There was more, of course. Each of the three social clubs in town organized two matinees for children and four night parties for fourteen-year-olds or older. Live bands and orchestras performed from eleven in the evening to five in the morning. The stratification of society stood out through the very names of the private clubs. The blue-collar went to League of the Laborer; the better off of the working class, so to speak, attended the Democrat; the middle-class and the elite, in turn, frequented the Ideal Club. The spontaneity of the yearly festival was one of its best assets. Roughly between eight and midnight, the outgoing and the timid, the educated and the illiterate, all went dancing side by side¯whether in the highly decorated central square or at noisy different bars.
On that first Carnaval evening in 1976, my brother (best known as Tatau) and I belonged to a large group of costumed revelers, certainly one of the liveliest sets of buffoons on the streets. Forty of us, The Neanderthals, lived up to our theme, in our orange cotton garments with black leopard spots. We ran around crowing like big roosters on drugs, or maybe hyper-excited hens in lust. With toy-teeth laces around our ankles and chicken bones on our heads (most of us still had good chunks of hair), this flock of teenage pals was roaring and jumping, fighting and running. It was a total blast on that voodoo land of joy and relaxation!
Music from just about everywhere, inflated our buzz. The best rhythm, though, resounded from Bar do Vatinho, the open-air hang-out, a favorite spot for batucada, the jam session for samba dancing. Suddenly I could here somebody babbling,
"Allah, allah, allah, hundulillah, hundulillah." Somebody was shouting again and again in front of the watering hole. It was Delson, one of my dearest childhood friends, swinging his hips to the samba beat. With crispy dark hair and soothing brown eyes, he was a funny dude dressed like a Hawaiian girl. Barefoot, among other "young ladies" doing their best to hide their facial hair, and the rest of the crowd packing onto the sidewalk in front of the bar, Delson now evoked the goodwill of the Muslim divinity and thanked the Holiness for such hurrah.
The party went on without a break. When it was Sunday evening, though, many people already felt the need to slow down for a little while. They would then put together another side of Carnaval¯actually, a fabulous family tradition in Brazil. Before going out once again into the public sphere of that four-day holiday (the streets and the ballrooms), various generations would sit around in a circle to eat and drink in casual intimacy. This time we were sitting on the side porch of my parents' home. While some fifteen of us siblings, cousins and other relatives lingered around, some drank the specialty of the house: whisky mixed with milk from newly-picked Bahian coconuts. The two nearby trees in the front-yard perhaps threatened the stability of the house, but in the meantime they kept us supplied. They were good trees. The year before we had harvested over two hundred coconuts.
One of the amusing sides of these family meetings was that people who didn't habitually drink ended up consuming some booze and then bringing forward the oddest sides of their personalities. This was frequently the case with Dad. Usually adopting an austere pose towards daily matters, he, at Carnaval time, tended to let down his hair. He was actually able to enjoy the spicy stories people told each other between hot canapés and refreshing sips. Even Mom, who at the age of 50 could not drink a glass of wine without feeling a bit dizzy, seemed to enjoy our gatherings all right, despite an occasional look of concern about her teenage boys' probable excess. One could clearly feel her mellow-sweet look of detached appreciation.
The stories, often exaggerated by the enthusiasm of each storyteller in charge, retold the adventures of danger and extravaganza involving my brother and me (apart from our most agitated friends). At a certain point, José Côdo, my future brother-in-law, recalled the day Mom and her sister Guida were going home after spending some time at the Ideal Club. In their late forties, they usually felt they were too old to dance, but they had a particular interest in watching the costume contests and laughing at the widespread silliness throughout the ballroom.
The two ladies were walking through Oswaldo Costa, the town's central square. With loud music echoing through her ears, Mom noticed bloodstains on the sidewalk. She and Guida turned the next corner, so did the spots. One block ahead the ladies turned right¯again they were following the smears. Mom was getting worried. By the middle of the block, she was on the verge of panicking: the bloodstains went marching up our steps and through our door. Inside the house she didn't need to look down at the floor; she went straight to the room of the teenagers, my brother and I.
A couple of years later my sister Silvana spoke of the variety of feelings Mom must have gone through: first, dread at the door; then, pity and disgust at the sight of her older son sleeping in a mass of vomit. At last, Mom was in utter bafflement, for she could see very clearly that her seventeen-year-old was not hurt at all. Mother would be puzzled till the next day, since her son had turned into a mummy and would remain one for quite a few hours. To those on the porch who hadn't ever heard the end of the tale, the mystery was still buried.
"But what about the bloodstains?," my cousin Nilbe wondered aloud.
After a short grin Silvana explained that Marcelo Vianna, another Neanderthal, had thought Tatau was too drunk to be left alone at the club. Trying to be a Good Samaritan, Marcelo decided to give him a cold bath in the central square fountain. The "good boy" ended up cutting, very deeply, his own foot on the bottom of the pool. Rather wasted himself, Marcelo didn't perceive his injury. He carried out his humanitarian deed by delivering the sick and, as we knew it, almost scaring Mom to death.
No show, however good or bad, may go on entertaining us forever. So, it had been a typically quiet Ash Wednesday morning in 1976. Ash Wednesdays bring about fatigue and are normally the most depressing day of the year in Brazil. People realize they have to go back to work and school, and siblings, friends and lovers part. The moveable and renewable fantasy of Carnaval is doomed to turn into crude reality for another year, without as much fun, energy or poetic adventure.
Traditionally a national hangover day, the sun was up but the air was now toned down due to the extravaganza of the night before. It was only ten o'clock, businesses remaining closed till noon at least. All of a sudden, "dleeng, dleeng, dleeng," there came rattling the mighty church. The unrelenting clangs knew no challengers. The four bells entered everyone's home. They trespassed people's privacy as though all of us were Catholic, as if one tenth of the sleeping Christian or pagan souls ever cared about religion on the day after such profane rioting.
"What are these goddamn bells ringing for?," maybe hundreds of people¯especially the town visitors¯were asking themselves at that very moment.
After the annoying twangs, four loudspeakers played some annoying song about angels and shepherds. Then a sober voice broke out:
"Announcement. Dr. Félix Moreira, an optician from Varginha, will be attending in Paraguaçu…."
Another two or three ads, news on church or bureaucratic affairs, and some loud music reached the remotest ends of town. The tone had radically changed:
"Ave Maria, blah, blah, blah…." I wondered if Franz Schubert would have finished this composition had he known that so many people would curse his music one hundred years later in the tropics!
When some folks had finally managed to go back to sleep, thanks to the soothing Austrian mourning aria, they were rudely awakened again. After the music, the loudspeakers' message returned:
"We regret to announce the death of Sr. João de Deus, whose corpse has been veiled at…." It was just unfair, a case, perhaps, of divine injustice. Paraguaçu didn't have a radio station and the burden of such news and ads had to fall on the unhappy revelers and worn-out lovers alone! But maybe it was God's words out there, opening people's minds with a sad tune. His message was, after all, rather realistic:
"Watch out, wild folks. Satan, that hides behind all that samba, all that cigarette, and all that devilish rum-like cachaça, also kills. And there is much more about living than just Carnaval."

"Deus e o diabo na terra do Carnaval," was excerpted from Paisagens Humanas (Paraguaçu, Minas Gerais: Editora Papiro, 2002). This book was launched in Paraguaçu and Belo Horizonte, Minas Gerais, last December.
Dário Borim, the author, is a storyteller with an M.A. degree in Creative Writing and a Ph.D. in Brazilian Literature from the University of Minnesota. He teaches at the University of Massachusetts Dartmouth. You may reach him and get information on how to obtain the book through his e-mail, dborim@umassd.edu   

Mirem-se nas cenas de Atenas

                                                       A colina da Acrópole desde o Hostel Safestay (2025) Ei, senhor Chico Buarque de Holan...