Novos amigos
Ensaios e crônicas em português ou inglês sobre artes, literatura, viagens, e o cotidiano na Nova Inglaterra. // Personal essays and crônicas in Portuguese or English about art, literature, travel & day-to-day in New England.
sábado, 14 de novembro de 2020
Novos amigos
domingo, 25 de outubro de 2020
Justiceiros do Mal em Nome do Bem
Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu
Há poucos minutos eu ainda oscilava entre escrever estas
linhas em inglês ou português. Até me veio uma ideia esdrúxula: que tal compor uma
sentença inteira em uma língua e, imediatamente, sua versão na outra? Eu teria uma
crônica para cada um de dois públicos. Nunca soube de nenhum poeta que tivesse
feito algo assim. Não serei eu um pioneiro dessa verve bilíngue em prosa. A
origem da dúvida é a de que neste outono eu leciono dois cursos que me inspiram
a refletir bem além do meu normal. Um deles, na graduação, é todo ministrado em
inglês: “Gênero e Sociedade no Cinema Brasileiro”. O outro, na pós-graduação, é
um seminário que dou em português: “A Crônica Brasileira”. Ambas as turmas me
provocam a pensar de um modo livre, criativo e emocional, tanto nas aulas à
distância, via Zoom, como nas tantas vezes que depois, sozinho, sigo por aí,
pensando com os meus botões.
No curso em inglês, vimos semanas atrás o
documentário Waste Land, sobre o belo trabalho do artista plástico
paulista Vik Muniz junto a uma comunidade de coletores de recicláveis num lixão
do Rio de Janeiro. Também vimos o biofilme Kinsey, sobre o astuto e
pioneiro biólogo e sexólogo norte-americano, Alfred Kinsey. No seminário para
nossos mestrandos e doutorandos discutimos várias crônicas escritas nas décadas
de 1960 e 1970. Dedicamos grande parte do tempo a dez crônicas assinadas por
Clarice Lispector. Como aqueles dois filmes, alguns desses textos claricianos,
principalmente “Literatura e Justiça” e “Mineirinho,” nos compelem a ponderar sobre
os desafios de nossos dias, especialmente nas iniquidades socioeconômicas e nas
múltiplas formas de violência racial.
Além das ideias e confabulações partindo
diretamente das questões discutidas nas aulas, outros questionamentos
relacionados àqueles temas andam mexendo comigo. São derivados de quatro ou
cinco cenas descritas pela mídia. São situações ou desenvolvimentos recentes.
Gostaria de explorá-los um por um aqui, com alguma profundidade, mas não há
espaço nesta crônica. Vou, quem sabe, tentar elaborar alguma síntese ao refletir
sobre eles e suas interligações.
Vamos lá. Alguns dias atrás, eu li que quatro
adolescentes, dois de 12 e dois de 13 anos, abusaram sexualmente de uma garota
de 11 anos em Nova Tupi, um bairro na região Norte de Belo Horizonte. Como se já
não fosse um ato de horror e crueldade, há outros agravantes na notícia. Um
jovem de 23 anos filmou as cenas de sexo oral e penetração forçada. A seguir,
enviou o vídeo aos pais da menina via WhatsApp. Respirem fundo: tem mais uma dose
absurdo e maldade: a mãe de uns dos agressores mais jovens inocentou o filho e
declarou à imprensa que a vítima “não era de boa fama”.
Outra cena abominável da semana foi a de dois
ministros do governo Jair Bolsonaro. Assinaram um manifesto internacional (mas
não global, como gostariam) galvanizando a importância das campanhas de
condenação ao sexo que não seja entre homens e mulheres, e, exclusivamente,
dentro do casamento. Fortificaram, também, um orgulhoso combate a qualquer
forma de aborto, num gesto de aberração anacrônica assinada por autoridades
governamentais de 36 países. Coincidentemente, são todos de governos
autoritários, de direita ou ultra-direita. Essa equipe de cérebros deturpados
no poder, liderada pelo Secretário de Estado norte-americano Mike Pompeo e
patrocinada pela Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, a brasileira
Damares Alves, é formada por gente que eu gostaria de denominar “justiceiros do
mal”.
O tal time não inclui representantes de menos
que um quinto dos 167 países que constituem as Nações Unidas, mas, mesmo assim,
essa gente me dá calafrios de vergonha e medo. Os disparates são inúmeros.
Talvez valha reiterar que enquanto milhares de mulheres morrem por terem-se
engravidado, pois não têm acesso a clínicas autorizadas, gratuitas e
profissionalmente preparadas, algumas daquelas autoridades veem certa (sórdida)
missão divina tanto na salvação dos fetos, quanto na condenação de “criminosas”
e “criminosos” à pena de morte. Ao mesmo tempo, essas criaturas que falam em
nome de Deus também defendem em voz alta a abstinência sexual completa antes ou
fora do casamento como solução preventiva ao aborto. Abstinência sexual
compulsória tem seus muitos problemas, é claro, inclusive os riscos de
obsessões advindas da proibição, e os dolorosos transtornos de homens e
mulheres que se amam e se casam ainda virgens, para algum tempo depois um deles
ou ambos se reconhecerem como homossexuais.
Dentro desse cenário de restrições e
retrocessos, estão na mira dos poderosos da Polônia, Hungria, Uganda, Arábia
Saudita, Brasil ou Estados Unidos (entre outras nações ditas civilizadas), o
casamento ou o reconhecimento da união estável entre pessoas homoafetivas. Correm
enorme perigo todos os seus direitos humanos já arduamente obtidos e assegurados
por lei, entre os quais os incentivos fiscais e as vantagens de cofiliação a
planos de saúde. Membros de minha família, amigos e vizinhos estão
justificavelmente apreensivos, no momento em que o Congresso dos Estados Unidos
está pronto para confirmar Amy Barrett, uma juíza católica que lê a bíblia e a
constiuição do país literalmente, como nova membro da Suprema Corte. Ela
se apresenta e age judicialmente "originalista" – mesmo que ambos os
documentos aos quais tem professa lealdade tenham sido escritos ou em épocas em
que se queimavam e se apedrejavam homossexuais e adúlteros em praça pública, ou
se exterminavam os nativos na conquista do oeste e se mantinha viva e ferrenha
uma das instituições mais abomináveis da história da humanidade, a escravidão.
Finalmente, resta um sopro de esperança, pois
nem tudo são sombras e espinhos nessa árdua e penosa caminhada em meio a uma
pandemia sanitaria e política que avassala quase todos os cantos do mundo. De
repente ouve-se do Vaticano uma voz de solidariedade e respeito humano, em
defesa das relações homoafetivas. Papa Francisco, volta a contrariar os
conservadores de plantão, claro, os filhos, netos, e bisnetos de Deus que dão
continuidade à mesma linha de gerações que sobrevive às custas das fortunas
herdadas sob a milenar harmonia entre justiceiros do mal em nome do bem,
pontífices, monarcas, ditadores e fascistas.
PS: Entre outras
fontes, veja: 1) https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/10/22/interna_gerais,1197125/menina-estuprada-por-adolescentes-norte-bh-pais-recebem-video-whatsapp.shtml
e 2) https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/brasil-se-une-a-egito-indonesia-uganda-hungria-e-eua-em-declaracao-contra-o-aborto.shtml
segunda-feira, 6 de julho de 2020
Podres e Poderes em Tempos de Pandemia
sexta-feira, 22 de maio de 2020
Teaching and Learning from a Pandemic
sexta-feira, 29 de novembro de 2019
Ai, Jesus! (Uma crônica-sacrilégio)
A imagem icônica e majestosa de Jesus Cristo o Redentor de braços abertos sobre a Baía da Guanabara anoiteceu vestida de um uniforme rubro-negro, menos de uma semana atrás. O reconhecimento celestial de uma glória assaz mundana não foi por acaso. Por conta do que de mágico anda acontecendo em campos de futebol do Brasil e Peru, aqui vai um “causo” sobre a questão, como dizemos em Minas. É uma piada da vida real que nasceu inspirada pelo que ouvi ontem de um amigo português, o Francis Mendes. Ele deve ser parente em algum braço da minha multiétnica e transnacional árvore genealógica! Seria ele um descendente de novos-cristãos? Quem sabe um ex-judeu, supostamente como nós mesmos, netos do saudoso Adolpho Prado Mendes?
O Francis me
disse que um canal de TV de Portugal estava colhendo alguns louros
nacionalistas por conta do gigantesco sucesso do técnico lusitano Jorge Jesus,
do Flamengo, equipe de futebol do Rio de Janeiro. O Mengo, apelido carinhoso do
time considerado o mais popular do Brasil, conseguiu a incrível e histórica
façanha de obter dois títulos extremamente prestigiosos em menos de 24 horas:
campeão da Taça Libertadores da América e da Série A do Campeonato Brasileiro.
A primeira conquista foi sacralizada em partida realizada em Lima, Peru, onde
seu artilheiro GabiGol marcou duas vezes em dois minutos de prorrogação,
virando o placar do jogo quando as esperanças flamenguistas sumiam morro
abaixo. Meu amigo Francis até já tinha perdido a fé em Jesus e desligou a TV
antes de presenciar o sucesso rubro-negro. Não pôde, pois, vislumbrar um milagre
em tempo real. Disse-me que Jesus era meio pé-frio; já perdera muitas decisões
de campeonato pela carreira afora. A segunda apoteose em menos de 24 horas aconteceu
pela matemática dos pontos corridos do dito Brasileirão, certamente a liga de
futebol mais disputada do mundo, por conta de seu elevado número de
participantes com reais chances de terminar a competição em primeiro lugar:
mais motivo para o êxtase rubro-negro!
Não é pecado, acho, dizer que o Jesus português é hoje venerado ao sul do equador. Disse o próprio, outro dia, que ainda vai virar “uma lenda na história do futebol canarinho”. Ele é a quem os torcedores cariocas chamam de Mister – será que é porque o homem é um raro estrangeiro no comando de equipes futebolísticas brasileiras, e por isso, um tipo “gringo”? Como se revela pelo seu sotaque, às vezes difícil para o brasileiro entender (tanto que de vez em quando as emissoras brasileiras usam legendas para ajudar os tupiniquins), Jesus é com certeza de lá, de além-mar, da terra dos nossos patrícios. Curiosamente ele até foi técnico, por muito tempo, do “Flamengo” de Portugal, o clube de maior número de “adeptos”, o também apaixonadamente vermelho Benfica.
Muito bem: vamos ao causo, o mote dessa falsa crônica-sacrilégio. Uma emissora de TV portuguesa, disse-me Francis, estava transmitindo a festa histórica e homérica no Rio de Janeiro e muito além, com muito samba e muita cachaça. Ela principalmente ocorria, naquela segunda-feira, nas praças e avenidas do centro da ex-capital do país. Milhões, sim, milhões, de flamenguistas homenageavam os jogadores e a comissão técnica da equipe campeã. Todos se viam, de repente, simplesmente no céu. Aí um repórter lusitano se aproximou para entrevistar um torcedor muito exaltado, provavelmente já meio bêbado, como outros milhares de torcedores. Perguntou-lhe:: “Então, pois, o que achas do Jesus?” O carioca não pensou duas vezes: “O Jesus? O Jesus é FODA”!
Imaginem aquela situação, uma chula (mas falsa) blasfêmia de tal ordem – em transmissão ao vivo para todo o país Ibérico! Coisa de carioca, ou coisa do futebol, diria o Nelson Rodrigues! Mesmo muitos mineiros da gema, como eu, também puderam sentir um gostinho da vitória em Lima. Afinal de contas, a partida que decidiu o título foi contra o River Plate, da Argentina. Como os portugueses, eu também tirava uma casquinha de orgulho nacionalista, já que é extradoce e, muitas vezes, comovente, vencer os rivais portenhos no futebol. A richa é velha, mas não se esvai com o tempo. É como vinho: só melhora!
Naquela hora do jogo de “sapassado”, em bom mineirês, estávamos todos unidos na justa e gloriosa missão de superar, em terras peruanas, os nossos “hermanos”, como carinhosa e ironicamente chamamos os argentinos. Aliás, juntos estaremos outra vez, mineiros e flamenguistas, logo em dezembro, quando o Flamengo, de Mister Jesus, o Foda, poderá vencer a equipe inglesa do Liverpool, em Qatar. Quem sabe o clube carioca será, com alguma ajuda divina, o Campeão Mundial de Interclubes de 2019? De fato, lá em Minas há muitos flamenguistas, uns até bem chatos, de tão fanáticos. Tem problema não. Lá em Minas tem de tudo. Só não tem mar de verdade. Mas pra quê mar – ai, Jesus – se temos um mar de estrelas vistas de tantas e tão belas montanhas que acariciam os olhos e refrescam ainda mais a alma da gente?
domingo, 21 de abril de 2019
Os loucos, a égua, e uma porção de rato // The Madmen, the Mare, and a Handful of Mice (Bilingual)
June 2001Short Story
Os loucos, a égua,
e uma porção de ratos
Quando os americanos e russos começaram a explorar o espaço sideral, nós demos ao Marechal uma garrafa velha e suja, cheia de um líquido amarelado. Aquela leva de desalmados havia contribuído para o presente com uma amostra quente de urina.
Dário Borim
The Madmen, the Mare, and a Handful of Mice
When Americans and Russians started to explore outer space, we gave Marshall an old dirty bottle, filled with a yellowish liquid. Of course many of us kids, vile little bastards, had chipped in the gift with the hottest of our urine.
Dário Borim
Deus e o Diabo na Terra do Carnaval // God and Satan in the Land of Carnaval (Bilingual)
Deus e o Diabo na Terra
do Carnaval
February 2003
Carnaval em Paraguaçu. Ao som da excelente batucada promovida
pelos músicos da Liga Operária, rugíamos, pulávamos e
lutávamos como felinos esfomeados. Às vezes corríamos e
cacarejávamos em ótimo astral, feito um bando de galos e
donzelas garnisé. Era uma festa total no terreiro da alegria e da descontração.
Dário Borim Jr.
O Carnaval do Brasil, como os de outras nações, tem seus disparates. Lá homem adora se vestir de mulher, pobre se fantasia de rico, e pecado é santificado pelos jovens em praça pública. Será que todo ano Deus faz algum pacto com o diabo e fecha os olhos por somente quatro dias? Não creio, mas parece, porque é muito milagre para um santo só. Por conta de umas afinadas batidas de surdo (e de limão, claro), mais vale é habitar ou sonhar com um mundo onde a alegria e as alegorias de paz e cidadania são produzidas ou patrocinadas por incomparáveis artistas, incorrigíveis malandros e incrivelmente bem-intencionadas — e bem-humoradas! — autoridades.
Nos carnavais das décadas de 1960 e 1970, a Prefeitura da minha pacata cidade natal, Paraguaçu, contava com uma legião de voluntários e organizava dois desfiles de rua: um no domingo, e outro na terça-feira. Claro que tinha mais. Cada um dos três clubes da chamada Princesinha do Sul de Minas oferecia duas matinês para as crianças e quatro noitadas para os maiores de 14 anos. Conjuntos e orquestras tocavam ao vivo, das 11 da noite às 5 horas da manhã. A estratificação da sociedade revelava-se, em parte, através dos próprios nomes das associações. Uma facção da classe trabalhadora ia para a Liga Operária; outra, de indivíduos menos sacrificados economicamente, freqüentava o Democrata; enquanto que a classe média mais abastada e a elite dançavam no Ideal Clube. Nas ruas, a espontaneidade era sempre uma das melhores características da Festa de Momo. Entre oito e meia-noite, os tímidos e os extrovertidos, bem como os cultos e os iletrados, saíam todos para a colorida Praça Oswaldo Costa, onde dançavam, bebiam e apreciavam a maluquice geral.
Naquela primeira noite de Carnaval em 1976, meu irmão José Carlos (o Tatau) e eu pertencíamos a um bloco da pesada: os Homo-sapiens. Éramos um dos maiores e mais extravagantes grupos de foliões. Contando com quase 40 jovens, o grupo de fantasiados dramatizava o seu tema antropológico. Cordões de dentes de plástico nos tornozelos e ossos de galinha no cabelo (ainda tínhamos, todos, muito cabelo) acompanhavam uma túnica de cetim laranja com manchas pretas redondas, semelhantes às de um leopardo. Ao som da excelente batucada promovida pelos músicos da Liga Operária, rugíamos, pulávamos e lutávamos como felinos esfomeados. Às vezes corríamos e cacarejávamos em ótimo astral, feito um bando de galos e donzelas garnisé. Era uma festa total no terreiro da alegria e da descontração.
A música parecia surgir dos quatro cantos da praça, ecoando nas nossas almas adolescentes. O melhor ritmo, porém, ressonava no Bar do Vatinho, para onde convergia a rapaziada mais animada. Ali dançávamos e farreávamos, quando, de repente, uma voz me chamou a atenção para fora do círculo de homens da caverna.
"Alah, Alah, Alah, hundulilah, handulilah", gritava o caro amigo Delson Ribeiro de Andrade. Sem medo, ele se punha de pé numa banqueta do Bar do Vatinho. Ainda assim, conseguia rebolar os quadris ao compasso do samba, enquanto invocava a presença divina de Maomé. Com os cabelos ondulados, agora crivados de confetes, e os olhos castanhos irradiando paz, como que diante de um paraíso em pleno caos Carnavalesco, Delson se vestia de garota havaiana, com muito estilo. Descalço entre outras "garotas tropicais" a esconder os pêlos da face, o vulgo Amarradinho ironizava a lei seca dos árabes e agradecia aos céus por tanta alegria (e cerveja gelada) cintilando no planeta Terra.
A farra continuava sem trégua, mas no domingo à noite, muitos já sentiam a necessidade de assentar por um instante e fazer acontecer outro lado fabuloso da tradição de Carnaval de muitas famílias brasileiras. Antes de sair mais uma vez para o espaço público do Carnaval de rua e dos bailes de salão, era hora de beber e comer umas coisinhas na descontraída intimidade dos parentes e amigos. Desta vez, um grupo de aproximadamente quinze pessoas curtia o frescor de uma noite enluarada. Na varanda lateral da casa de meus pais alguns tomavam a especialidade da estação: whisky com água-de-coco. Dois charmosos coqueiros que ainda cresciam no jardim — quem sabe ameaçando a estrutura da casa — mantinham o nosso estoque em dia. No ano anterior tínhamos colhido, ali mesmo, nada menos que trezentos cocos da Bahia.
Um aspecto divertido daqueles encontros familiares era que certas pessoas, normalmente sérias e reservadas, naquela hora soltavam as rédeas. Muitas vezes este era o caso de meu pai. No espaço doméstico do Carnaval se permitia desfrutar as histórias que filhos, parentes e amigos contavam sob a inspiração maior do elemento alcoólico. Entre tira-gostos e goladas refrescantes, todos eram afetados de um modo ou de outro pelo bom-humor suspenso no ar. Até minha mãe, que aos cinqüenta anos mal suportava meio copo de vinho, deixava transparecer seu contentamento, apesar de uma crescente preocupação com os possíveis excessos dos filhos adolescentes.
As narrativas, retocadas pela animação do relator da vez, muitas vezes retomavam enredos de extravagância e perigo vividos por meu irmão e eu (além de nossos amigos mais aloprados). O cunhado José Côdo recordou, a certo momento, a noite em que minha mãe e sua irmã Guida voltavam a pé para casa, depois de apreciar por algumas horas o baile de Carnaval no Ideal Clube. As duas senhoras passavam pela parte de cima da Praça Oswaldo Costa — os estrondos da música de salão ainda reverberando nos seus ouvidos — quando minha mãe percebeu algumas marcas de sangue no passeio por onde andavam. Quando as duas irmãs viraram a próxima esquina, a da casa de Tia Noêmia, continuaram seguindo as mesmas marcas.
Um quarteirão acima, as duas respeitáveis senhoras viraram à direita e continuaram seguindo as bolas de sangue. Mamãe já estava preocupada — afinal de contas, ela é Mendes — quando sua pressão sanguínea subiu pra valer, pois as bolas de sangue cruzaram a rua, subiram as escadas e passaram para o outro lado da porta de entrada de nossa casa. Uma vez dentro da casa, ela nem precisou olhar para o chão. Atravessou a sala e foi direto ao quarto dos meninos.
Minha irmã Silvana falou da rápida e variada sucessão de sentimentos. Primeiro, mamãe é tomada pelo medo, ao ver as marcas subindo as escadas; depois, pelo nojo e a pena de ver o filho mais velho, Tatau, dormindo em uma poça de vomito. Por último, ao acender as luzes e pesquisar bem a situação, mamãe certamente entrou em grande confusão: apesar do sangue acumulado ao lado da cama, o filho de dezoito anos não apresentava qualquer ferimento. Aliás, dormia feito uma múmia, e assim permaneceria por muitas horas manhã adentro. O mistério continuava vivo para alguns dos presentes àquela reunião pré-carnavalesca.
"Mas, e as marcas de sangue?", perguntou minha prima Nilbe. Com uma risada mal contida Silvana explicou que Marcelo Viana, outro Homo-sapiens, tinha percebido que Tatau se encontrava muito bêbado no salão do Ideal Clube e precisava de um bom banho frio. Para Marcelo, a água suja da fonte da Praça Oswaldo Costa era a solução. Mas o Bom Samaritano se deu mal com um caco de garrafa, que lhe cortou o pé no fundo da fonte. Como Marcelo também era chegado ao "mé", naquela noite encontrava-se anestesiado demais para notar qualquer coisa estranha consigo mesmo. Só assim pôde dar continuidade ao seu projeto humanitário, e quase matar d. Lucci Prado Mendes Borim de pavor.
Nenhum show da Terra, não importando se é bom ou se é ruim, deixa de ver, um dia, o seu próprio fim. Mais uma Quarta-Feira de Cinzas, então, chegou como sempre chegava: trazendo fadiga e ressaca. Entre outras mudanças, era hora de voltar para o trabalho e para os estudos. Parentes, amigos e amantes se despediam sem muita alegria, vigor ou poesia. O silêncio profundo desde as sete da manhã era costumeiro, enquanto o sol naquele dia nacional da dor-de-cabeça seguia seu curso normal. Boa parte do comércio permaneceria fechada até o meio-dia. De repente,
"Dleng, dleng, dleng...," mas poucos seres adormecidos sequer tinham ouvido os quatro imensos sinos da Igreja Matriz marcando presença em todas as casas e anunciando que eram dez horas. Por certo não faltou quem praguejasse aquela invasão de lares católicos e não católicos.
Logo a seguir ecoou, por toda a cidade, uma canção falando de anjos e pastores, seguida de um vozeirão:
"Anúncio. O Dr. Félix, oftalmologista de Varginha, estará atendendo a população de nossa cidade nesta quinta-feira..."
Vieram outros três ou quatro anúncios de propaganda e de serviços da Igreja, até que uma pausa se instaurou. Mas durou pouco, pois outra melodia logo alcançava os cantos mais remotos da cidade. Desta feita o tom era bem mais lúgubre:
"Ave Maria, bla, bla, bla..."
Teria Franz Schubert terminado sua famosa peça sacra se soubesse que ela seria recebida nos Trópicos com tantos palavrões?
Quando alguns foliões já tinham conseguido retornar ao sono, apesar do encanto melódico daquela obra clássica, voltou o vozeirão no alto-falante da Igreja Matriz:
"É com grande pesar que anunciamos o falecimento do sr. João de Deus, cujo corpo está sendo velado à rua..."
Para alguns revoltados, aquilo soava como um caso de injustiça divina. Paraguaçu não tinha uma estação de rádio, e a culpa recaía sobre os ombros — digo, os ouvidos — de infelizes bebuns e mocinhas namoradeiras. Mas, talvez fosse a voz de Deus abrindo alas, ao som de um ária triste. Sua mensagem, era, afinal, deveras realista:
"Cuidado, galera! O diabo do samba, do cigarro e da cachaça também mata. E nem tudo é Carnaval".
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